?O objetivo da política cultural inglesa é muito mais o desenvolvimento social e histórico do país do que o desenvolvimento estético da arte?Com a conquista da França logo no terceiro ano da Segunda Guerra Mundial, com a fracassada tentativa de aliança com a ilha, com a distância do inimigo do outro lado do Atlântico e com a dificuldade de ultrapassar a neve russa, Hitler tornou seus canhões especialmente para o Reino Unido. Numa Guerra marcada por bombardeios e mortes em massa, mesmo declaradamente vencedora, a Inglaterra viu seu território em parte destruído, muitos de seus soldados mortos e seu título de nação mais poderosa do mundo rolar de suas mãos para as norte-americanas de sua ex-colônia. Os anos do pós-guerra se apresentaram na mistura entre o orgulho, pela vitória na guerra, e a sensação de decadência do império britânico; entre a esperança pelo dinheiro de Monroe e a tristeza pela morte de seu último grande líder: Winston Churchill.
É sabido que depois de uma grande violência, como pouco antes se viu em maior escala do que nos anos de 39-45, entra-se num estado de apatia em que nem mesmo a memória do momento histórico consegue se firmar. Era necessário não apenas reativar a economia, a política, o mercado, mas também o espírito, a mente e o próprio Tempo. A Inglaterra, então, entrou numa intensa fase de reconstrução em que os monumentos históricos tiveram uma atenção especial numa tentativa de se resgatar a identidade daquela população. No entanto, esse resgate não retomava diretamente os fatos da Guerra recém encerrada, mas a um passado mais distante. Um passado em que as vitórias significavam glória e supremacia e não destruição e decadência. Talvez o acontecimento mais valorizado tenha sido, então, as Guerras Napoleônicas.
Ao contrário de muitos países europeus, que se prenderam demais nos louros de seu passado, a cultura inglesa sempre foi extremamente dinâmica. A tradição e o orgulho nunca foram empecilhos para o afloramento de expressões artísticas novas e instigantes. Haja vista o Rock and Roll ou as obras arquitetônicas contemporâneas que não se intimidam com a Abadia de Westminster. Artistas revolucionários como Francis Bacon ou os da Pop Art não se prenderam a formas consagradas por Constable ou Turner. Nem mesmo o monumento que Shakespeare representa para a cultura britânica foi um obstáculo para inovações literárias feitas por Virginia Woolf, Oscar Wilde ou James Joyce. Assim, além de resgatar o passado, que ninguém duvida o tanto que é respeitado na Ilha, era necessário estimular a cultura daquele presente e futuro. Nesse contexto, como parte de toda a reconstrução que a Inglaterra vinha sofrendo, fundou-se o Arts Council of England e com ele uma política de financiamento e gerenciamento artístico.
O Arts Council of England (ACE) foi fundado para ser ?an independent, non-political body working at arm?s length from the government? (site do Arts Council) com a idéia de desenvolver, apoiar e promover as artes na Inglaterra. É um órgão ligado ao Departamento de Cultura, Mídia e Esportes e dele recebe parte de seu orçamento. No entanto, como diz em sua proposta de existência, o ACE é uma entidade não-política cujo corpo administrativo não responde diretamente ao governo mas à sociedade e ao seu próprio conselho deliberativo. O Departamento de Cultura, Mídia e Esportes tem o poder de participar da escolha do nome dos membros do corpo administrativo, mas deve legitimar essa escolha dentro do próprio meio artístico. Para fazer um paralelo simples com o Brasil, a independência visada pelo ACE funciona mais ou menos como a do Ministério Público frente ao Poder Executivo.
No entanto, essa independência não trouxe a estabilidade que se podia presumir. Nesses quase cinqüenta anos de existência o Arts Council mudou inúmeras vezes, especialmente nos últimos 11 anos, e com cada mudança uma nova idéia de atuação e um novo corpo de trabalho. São várias as razões para isso. Uma que me parece marcante é a dificuldade de adequar o ACE aos problemas políticos envolvendo a Inglaterra e os outros membros do Reino Unido. Como se sabe a convivência de Gales, Inglaterra, Escócia e Irlanda do Norte não é nada pacífica, com mudanças constantes (como a aprovação de um parlamento independente para Gales em 1997 e a declaração da capital do país em Cardiff e não mais em Londres) e o ACE, embora de responsabilidade restrita à Inglaterra, deve adaptar suas políticas a essas turbulências.
De qualquer modo, a última modificação significativa do ACE ocorreu em abril de 2002 passando de um modelo descentralizado para um mais centralizado. Com a mudança os chamados Regional Arts Boards tornaram-se ligados administrativamente ao ACE, que como órgão central tem o poder único de tomar as decisões que vinculam os Boards. São 10 Regional Arts Boards espalhados por toda a Inglaterra com a função de implementar as políticas e gerenciar os eventos decididos pelo ACE. Dado o breve panorama político do órgão vamos partir para seus objetivos e como isso influencia toda a área cultural inglesa.
O Arts Council of England (ACE) recebe seu orçamento direto do governo federal e da loteria nacional. Portanto, são duas as fontes de financiamento que alcançam juntas um montante de mais ou menos 500 milhões de libras ou 750 milhões de dólares por ano fiscal. Esse dinheiro é repassado diretamente para os Regional Arts Boards que devem apoiar e geranciar os projetos do próprio órgão central (como o Royal Ballet, a Filarmônica de Londres, etc) ou aqueles selecionados por este. O órgão usa como critério o apoio a projetos ?aimed at finding out what attracts new people to the arts?. Ou seja, um projeto para ser financiado pelo ACE deve ser capaz de apresentar um tipo de arte que possa trazer mais pessoas para o campo artístico, o que mostra a vontade inglesa de sempre encontrar novas formas artísticas e de sempre atrair mais pessoas para o trabalho neste campo.
Até pelo que já falamos sobre a formação do ACE, percebe-se que o objetivo inglês com sua política cultural é muito mais o desenvolvimento social e histórico do país do que o desenvolvimento estético da arte. Esse é um ponto fundamental, pois tão peculiar. A preocupação quanto à arte por aqueles que a financiam dentro dessa política é voltada muito mais ao desenvolvimento da sociedade em termos econômicos, criando empregos, e de entretenimento ao espírito do que em termos estéticos. Citando o ACE: ?artistic endeavour is important to economic, social and, not least, spiritual wellbeing of the country?. Isso demonstra uma clara divisão no campo das ciências sociais. A política é uma potência destacada da estética e sua competência para julgar se restringe às potências econômicas e sociais. Do contrário, com o envolvimento da política em julgamentos estéticos a cultura seria levada a sofrer uma imposição autoritária e exclusivista como muitas vezes presenciou a História. Independente dessas discussões a política cultural inglesa, em seus vários níveis, encara a arte especialmente como um meio para a integração social, para o desenvolvimento econômico da nação ou do indivíduo. Como mecanismo para tanto o ACE procura prover ao máximo as pequenas organizações culturais dentro das comunidades. Deve-se entender que a idéia de comunidade na Inglaterra, mesmo em Londres, tem o sentido mais tradicional e muito forte como dificilmente conseguimos vislumbrar no Brasil. Estamos justamente pesquisando essas organizações e esperamos em breve dar mais detalhes sobre seu funcionamento.
Hoje, segundo palavras do professor Godfrey L. Brandt (diretor do curso de Management na Universidade de Londres), cerca de 10 por cento da população ativa inglesa está ligada diretamente ao ramo artístico e muito desse percentual dentro das organizações culturais das comunidades. Nessas organizações, inclusive, ocorre oportunidade de se fazer carreira. Como revelam os estudos de Owen Kelly e Eva Wojdat, no livro ?Creative Bits?, muitos dos empregados de organizações começaram como voluntários nas mesmas. Ainda segundo o professor Brandt a indústria cultural está ainda em franca expansão e hoje é a que mais cresce em todo Reino Unido, acima, inclusive, da tradicional indústria têxtil e da lucrativa indústria bélica. Com isso, mais empregos e desenvolvimento social podem ser criados dentro da área cultural.
Com toda essa preocupação quanto aos resultados sociais a serem alcançados pelos empreendimentos culturais a utilização de pesquisa de casos é muito estimulada. Retomando o livro citado acima ?Creative Bits? somos expostos a uma metodologia muito aceita no Reino Unido e que nos parece muito relevante. Quando estudam o impacto de empreendimento social numa comunidade, os autores Owen Kelly e Eva Wojdat procuram as seguintes categorias de impacto. O primeiro critério é o do desenvolvimento pessoal e individual e se refere na prática ao: aumento de oportunidades de emprego; desenvolvimentos na carreira dos participantes ou usuários do projeto; aquisição de novas habilidades técnicas; identificação pelos participantes da necessidade de mais treinamentos; realce do status e aumento da auto-confiança. O segundo critério é o da coesão social em que se procura enxergar se o projeto cultural gerou aumento no senso de comunidade e no senso de responsabilidades compartilhadas. O critério de potencialização da comunidade se refere ao desenvolvimento da participação ativa das pessoas dentro da comunidade. O próximo critério é o da imagem local que se refere ao melhoramento da imagem da localidade para aqueles que vivem nela e para os que a miram. Também é critério a imaginação e a visão que visa a analisar o envolvimento dos participantes ou usuários de um projeto em um novo projeto cultural. Por fim, dá-se o critério da saúde e bem-estar que pode ser encarado de forma ampla.
Um problema que podemos notar nessa metodologia é que ela é estritamente qualitativa, ou seja, não consegue quantificar o benefício de um projeto cultural. Em projetos analisados no livro ?Creative Bits? notou-se aumento de oportunidade de emprego, mas não se diz quanto aumentou; quantas pessoas foram empregadas e em que condições. De qualquer modo é uma bela amostra de que um projeto cultural, por menor que seja, causa positivos impactos sociais.
Com isso concluímos com o que propusemos de mais fundamental nessa brevíssima análise dos objetivos do sistema cultural inglês, ou seja, o alcance social do projeto que se implementa. O tema de um projeto está especialmente atrelado aos benefícios sociais e econômicos para a população participante. Positiva ou negativa essa é uma bela questão para se pensar quando discutimos o apoio à cultura no Brasil.
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Michel Nicolau