“Na Inglaterra, as autoridades locais são um bom exemplo de como se fazer arte na sua comunidade. […] No Brasil, pouco se fala dos órgãos regionais que apoiariam esta arte”A estrutura governamental de apoio à cultura na Inglaterra envolve uma série de órgãos e uma sistemática pouco familiares à realidade brasileira. No entanto, ao mesmo tempo que essas diferenças devem impedir a cópia (típica de país culturalmente dominado) devem estimular o estudo. O sistema regional de apoio à cultura inglês é, sem dúvida, um caso muito pertinente e atual para se reparar.
Se começarmos pelo topo da estrutura cultural inglesa, encontramos o Departamento de Cultura, Mídia e Esportes (DCMS) com o patamar de ministério. Dentro desse departamento, além daquilo que seu próprio nome já indica, cuida-se ainda das áreas do patrimônio histórico, turismo, museus, bibliotecas e loteria nacional. Isso dá a noção da grandeza e da força que o DCMS concentra. Como órgão conexo a esse Departamento, mas que atua de forma autônoma, está o Arts Council of England (ACE) com orçamento vinculado ao DCMS mas com poder discricionário pleno para aplicar seus fundos. Como secretarias suas, o ACE possui os dez Regional Arts Boards (RAB) que tem como função levar as ações do governo central a cada região da Inglaterra.
Basicamente essa é a estrutura federal (que só nos interessa agora como apoio para o que vamos discutir a seguir) onde já se nota que a regionalização das ações do governo quanto à arte têm sempre no fim da linha a região, ou mais propriamente as comunidades. No entanto, é na estrutura administrativa dos municípios em que encontramos a tendência regional de apoio à cultura mais marcante. Peguemos Londres como exemplo e, para que levemos nossa análise adiante, entendamos um pouco como funciona seu sistema político-administrativo. A capital inglesa, na verdade, é formada pela união de diversas pequenas unidades chamadas Royal Boroughs*. Isso se deve à antigüidade da estrutura política de Londres que data da idade média, quando as cidades ainda eram vistas como burgos, palavra com a mesma raiz de borough. Cada um desses Boroughs possui suas próprias estruturas administrativas e são regidos por uma assembléia (Council), também conhecida como autoridades locais. São 32 Boroughs divididos nos inner (de dentro) e outer (de fora) assim classificados conforme sua proximidade com o trigésimo terceiro Borough chamado de Cidade de Londres. Esse Cidade de Londres, embora possa confundir, é apenas mais um Borough, embora seja o principal, e não pode ser confundido com a Londres que acostumamos a conhecer. Por exemplo, o Big Bem se situa no Borough de Westminster e não no da Cidade de Londres.
São as autoridades locais que recebem a maior parte dos impostos dos munícipes, como o imposto sobre a moradia. Também são eles os responsáveis (ou co-responsáveis) pelas principais atuações governamentais na cidade, como educação (contróem e mantém as escolas públicas), limpeza, manutenção dos parques e ruas a si adstritos, segurança (pois o policiamento é de co-responsabilidade das autoridades locais, embora sob um gerenciamento central), iluminação, saúde, etc e, evidentemente, cultura. O orçamento desses para a cultura é pequeno e suas funções são difíceis de definir. No entanto, é nos Boroughs que a arte se torna regionalizada e se aproxima do julgamento e da apreciação da comunidade. Essa aproximação permite ao mesmo tempo uma maior interação da sociedade nas artes e uma maior cobrança por resultados que satisfaça a mesma sociedade. Isso pode levar à excelência e/ou à censura.
Cada autoridade local desenvolve seu próprio esquema de relacionamento com a arte. Não há lei federal que vincule essas autoridades a qualquer mandamento para cultura, mas apenas recomendações. Assim, alguns Boroughs têm um departamento próprio e autônomo. No entanto, sua grande maioria tem o escritório de arte (arts office) ligado a um outro departamento que pode variar conforme característica de cada Borough. Essa variação demonstra qual a objetivo que cada comunidade tem com a arte.
Vamos pegar como exemplo um Borough em especial, o de Fulham e Hammersmith, situado próximo ao centro de Londres. Esse Borough é de tamanho mediano, com uma boa estrutura social (assim demonstra vários indicadores) e estável do ponto de vista político, tendo sempre sido governado pelo partido trabalhista. Por este fato, não pode ser considerado conservador, mas ao mesmo tempo seria muito considerá-lo liberal ou inovador. Também possui um vívido comércio embora não pode deixar de ser visto como uma vizinhança bem familiar. Portanto, é um Borough comum, sem nada de extraordinário, o que serve bem para um análise que não quer se viciar em exceções.
Em Hammersmith e Fulham o escritório de arte está vinculado ao departamento da educação. No entanto, antes já foi parte do departamento do lazer e por pouco não foi parar no do meio-ambiente, conforme a visão social que as autoridades locais têm para arte. No caso atual, o escritório de arte desenvolve diversos projetos com o departamento de educação e chega a ter sua base dentro de uma escola do Borough. No entanto, é necessário que evitemos a relação direta entre educação e juventude, pois na Inglaterra há um grande enfoque na educação para adultos, procurando a adaptação desses a um novo emprego, a uma maior capacitação técnica, ou ainda, buscando integrar socialmente aqueles que porventura poderiam ser excluídos. No Borough em estudo isso que dissemos tem grande relevância.
As metas estabelecidas por este Borough tendo em vista a função da arte são: “assegurar que as artes tenham um papel no combate a exclusão social no Borough; melhorar a qualidade de vida dos residentes locais incrementando a participação da comunidade nas artes; promover as artes como um parceiro no processo de regeneração e do desenvolvimento sustentável no Borough; assegurar que as artes provejam oportunidades de qualidades e resultados frente ao investimento; aumentar as oportunidades para o treinamento e emprego nas artes; habilitar artistas e organizações artísticas no Borough a estarem a frente do desenvolvimento cultural de Londres”. (LBHF, Arts Strategy 2001-2004). Nota-se, portanto, que todos os objetivos, direta ou indiretamente, desse Borough quanto às artes giram em torno da atividade social que esta pode desenvolver. Isso, na verdade, reflete dois fatos, um social e um político. O fato social que podemos notar é que a comunidade, que realmente possui um voz bem ativa nos Boroughs, prefere ver a arte sob essa função, como inclusora social e produtora de empregos do que como algo criativo e inovador. Pelo lado político, o fato é que Hammersmith e Fulham é ligado às políticas do partido trabalhista (chamado de política do New Labour, “Novo Trabalhismo”) valoriza muito a arte como um fator de desenvolvimento social.
Boa parte do capital arrecadado para o desenvolvimento de projetos dos escritórios de artes dos Boroughs vem do governo federal. Esse capital varia, conforme a política do “Novo Trabalhismo”, com a comprovação da necessidade social de um projeto de cultura. Assim, os Boroughs com maior índice de analfabetismo ou exclusão social ou desemprego recebem uma verba maior para seus projetos. Outra parte do capital vem do próprio Council e se direciona, na verdade, ao pagamento de pequenos projetos e despesas operacionais. No entanto, além dessas verbas regulares há outras fontes de dinheiro que são, na verdade, as que permitem o desenvolvimento de projetos maiores e mais arriscados. Uma fonte é a loteria nacional a quem mesmo um órgão público pode requerer verba. Outra fonte é o RAB (“regional arts boards”) da região onde se localiza o Borough. Ainda, a própria iniciativa privada, que mantém com as autoridades locais um sistema parceria, em que, na verdade, resulta em troca de apoios.
Essa parceria funciona de diversas maneiras. Algumas vezes, num Borough com uma boa verba para cultura, o projeto de um grupo de arte é todo financiado pela autoridade local. Outras vezes, a autoridade local financia parte do projeto com cessão de lugar para eventos, papéis publicitários, ou seja, o que não envolva despesa direta no orçamento. Ainda, a autoridade local pode financiar alguma organização para que ela desenvolva a cultura no Borough. Neste caso, o apoio é constante e perdura enquanto os resultados forem satisfatórios. Ainda, o que muito ocorre, e no Borough de Hammersmith e Fuhlam é o mais comum, é o financiamento de uma parte pequena do projeto para que o proponente possa requerer verba de um dos fundos do governo federal, pois um financiamento primário é exigido quando se aplica, por exemplo, à loteria nacional. De qualquer maneira, o dinheiro envolvido é geralmente pequeno e aquele grupo de arte que precisa de financiamento recorre a diferentes formas de arrecadação. Há casos, e sou testemunha de um, que um grupo de teatro para arrecadar 16 mil libras (80 mil reais) recorreu a seis fontes de financiamento, sendo que o Borough relevante contribuiu com 500 libras (2500 reais).
Como se nota, são diversas formas de se arrecadar e outras tantas de se aplicar a verba de um escritório de arte nos Boroughs. Isso reflete nos desejos e nas pressões que a comunidade coloca sobre suas autoridades locais. Muitas vezes, o ganho social com a arte é visível e impressionante. Em muitas regiões menos favorecidas de Londres, um maciço investimento em arte fez cair o índice de desemprego, aumentar a coesão social e desenvolver a auto-confiança dos moradores (é o caso de Jackson Lane, ao norte de Londres). Em Fulham e Hammersmith o ganho social não é tão visível. Este Borough nunca teve problemas sociais graves e portanto as artes não serviriam para revolucionar nenhum índice social. No entanto, é através das artes que muitos cursos para adultos são lecionados. Também, pelas artes muitas crianças desenvolveram habilidades manuais e de raciocínio aumentando suas possibilidades de profissão, quando não se fez da própria arte seu meio de subsistência. Do mesmo modo parte do orgulho da comunidade com o seu Borough deve-se aos projetos artísticos, com feiras literárias, apresentações de dança. Enfim, mesmo quando não se vê, é inegável, e reconhecido pela comunidade, que o apoio à arte traz benefícios.
No entanto, olhar a arte como promotor de paz social também pode causar censura. Patricia Stead, diretora do escritório de Fulham e Hammersmith, a quem eu entrevistei no dia 27 de Janeiro, relatou momentos em que a liberdade de expressão artística foi tolhida pelo preconceito e censura da sociedade, incluindo um caso em que um livro reunindo contos escritos por moradores locais foi proibido por pressão da comunidade sob a desculpa que em um trecho de um conto apareciam palavras obscenas.
De qualquer modo, com todas as suas falhas e com uma visão extremamente limitada do sentido da arte, as autoridades locais são um bom exemplo de como se fazer arte na sua comunidade e para sua comunidade. Quando se fala em valorizar a arte regional no Brasil, que seria de importância enorme, pouco se fala dos órgãos regionais que apoiariam esta arte. Tudo tende a se concentrar no órgão federal como atuação vertical de comando e de organização, de desejo próprio do que deve ser visto e do que deve ser escondido. Talvez devêssemos olhar mais para a arte regional como manifestação autônoma e dar poder e condições para que ela mesma se desenvolva, com o apoio de sua comunidade, sem a imposição viciada do governo federal, e que assim se propague por sua força própria e inerente.
É bem claro que o sistema inglês não pode e não deve ser copiado no Brasil. No entanto, atentarmos a ele como uma preocupação em se dar para a comunidade local o poder de decidir como reger e desenvolver sua arte talvez possa nos trazer bons frutos e boas idéias nessa matéria tão fundamental para uma arte justa, criativa e descentralizada.
* A tradução de “Borough” é extremamente difícil pois não há um equivalente no caso brasileiro. Pode-se encarar como uma mistura de administração regional (como temos na capital paulista) e de cidade autônoma. Não pode ser vita como distrito, pois não se vincula a ninguém acima dela, mas sim entra elas para formarem o conhecemos por Londres. Por tal razão, preferimos deixar a palavra na língua original
Michel Nicolau