A estrutura ideológica dos nossos romances
A forma de um produto, por vezes, vem carregada do conteúdo ideológico que contribuiu à sua constituição. “Adotar o romance era acatar também a sua maneira de tratar as ideologias”, segundo Roberto Schwarz. Essa importação, ocorrida sistematicamente a partir do século XVIII, necessitava de uma adaptação à sociedade escravocrata brasileira, que implanta um formato literário que continuará a tradição social organizadora da sociedade brasileira. O século XVIII foi fortemente marcado por essa preocupação governamental em atribuir identidade cultural à nação, em definir os emblemas sociais, os conceitos organizacionais com apoio nas teorias positivistas de Comte e Constant, ao mesmo tempo que o romance imigrava em nossas terras e, com ele, seus grandes temas apontados por Schwarz : a carteira social, a força dissolvente do dinheiro, o embate de aristocracia e vida burguesa, o amor vs conveniência, vocação e ganha-pão.
José de Alencar foi a matriz literária de grande parte dos autores que lhe seguiram, envolvidos que foram na sua teia dramática, nos contornos nacionalistas que estavam tanto na superestrutura ideológica quanto no mapa geográfico do país. Ritmo, iconografia e simbologia da sua prosa são elementos que transcenderam a sua obra.
O modelo europeu não somente fornecia a forma, como também a matéria sobre a qual os traços principais dos personagens irão se fixar. Da mesma maneira, os traços nacionais e naturais, a qualidade nacionalista irá orientar o universo pictórico do romance ao mesmo tempo que a matéria indígena conferirá a identidade ao texto. Schwarz identifica nesta combinação um contra-senso na literatura de Alencar, notadamente verificável nos seus romances urbano 2.
A inconsistência que verifica na obra de Alencar, do ponto de vista estético, reflete alguns pontos de difusão na via ideológica que vivíamos e que decorre necessariamente da repetição de modelos alienígenas. Repetir ideologias, do ponto de vista da Teoria, é puramente repetir ideologias, segundo Schwarz. Do ponto de vista literário, é imitação, uma imagem que não cola na moldura geral programada pelo autor. Nenhuma das duas adapta-se perfeitamente ao viés.
A questão da mimese, ao mesmo tempo que provoca uma injustiça com os demais valores literários que poderiam ser estudados e decalcados, também reflete o que há de mais brasileiro de uma literatura mal-resolvida. Conforme pondera Schwarz, a questão da mimese sempre esteve presente em toda forma literária, entretanto ela será tão menos vilã quanto mais apegada à estrutura de modo e matéria nacional.
Toda ideologia é uma naturalização das relações sociais. Assim, a ideologia possui dois níveis, que são em relação ao seu efeito e sobre o que ela se assenta. A frase supra nos fornece o substrato à sua colocação. Assim, a ideologia baseia-se no conceito naturalístico que procura empregar às relações sob sua orientação, e de como um comportamento é naturalmente atribuído àquela realidade. Por sua vez, em relação aos efeitos da ideologia, ela sempre será um instrumento de veiculação de um conjunto de valores socialmente predominantes com a falsa idéia programática de perpetuar-se. Falsa porque ela precisa desse caráter missionário (programático) para espalhar-se e firmar adeptos, mas na verdade ela não precisa estar programada para perpertuar-se uma vez que já encontra-se mais do que arraigada à concepção da sociedade moderna.
A ideologia que constrói o índio idealiza-o para determinados fins, quais sejam o de retomar o ser original de nossas terras que se submete ao colonizador por sua própria vontade (acho que arbítrio seria uma palavra forte demais, utilizada somente com a presença de uma vontade mais diferenciada, melhor construída, formada e informada para saber melhor escolher) a uma lei natural e à história.
Ao tratar os eventos narrados no livro como uma cosmogonia da nação, traçando a origem do povo brasileiro de forma mitológica, certamente que Alencar lança mão de um recurso retórico carregado de ideologia. A descrição do evento primordial, evolucionista, parte de elementos naturais, comportamentos naturalizalidos do ponto de vista humano e, humanizados do ponto de vista europeu dão o tom de um romance muito mais ambicioso do que aparenta. A gênese do Brasil busca traçar a união do Brasil com o mundo e a união do casal que deu origem à nação / raça brasileira.
Como toda gênese, o texto inicial é intensamente permeado de descrições sexualizadas, lembrando-se sempre que o rio que inicia a narrativa nasce na Serra dos Órgãos, é o grande distribuidor de fertilidade e seus movimentos conduzem a descrição nesse sentido.
O projeto modernizante no Brasil enfrenta desde aí o problema estético que não consegue tratar o problema social como algo próprio do universo brasileiro e destacado em grande medida de suas inspirações européias. Não só a história, mas principalmente o recorte historiográfico, necessitam tratamentos singulares e de forma não alegórica e de altas pretensões, visto que a epopéia brasileira não se repousa tanto na humanização do índio, mas na resistência e desenvolvimento de uma literatura própria e com elementos estéticos mais depurados. A confusão que sempre existiu, com a síntese entre os tempos, é a constante das nossas letras, quando talentos que germinaram também aqui não conseguiram se libertar desta tradição.
O processo de modernização brasileira não foi menos conservador do que todo o processo de colonialização, império e conseqüente república. Os regimes de dominação sobrepõem-se ao invés de substituírem-se, com a anulação do anterior. Se a escravidão não mais sustenta o regime, alguma racionalização das formas de exploração substituiu, se não há mais a exclusão racial, outra forma de exclusão continua. Infelizmente não acredito que esta exclusão sustente algum regime, mas o corrói da forma mais crua possível beirando o insustentável. A modernização por que passou o país carregou inúmeras contradições, pois algo muda, mas dessa mudança o cerne permanece. “O país mudou continuando o mesmo”, por meio de ultrapassagens que não superaram, sempre na combinação de dois registros: o natural e o histórico. Não é por acaso que diz-se também de Alencar que foi a grande matriz do realismo naturalista: “para a tradição de nosso Realismo, é o seu legado mais profundo”3.
Temos, portanto, a modernização por meio da reposição do atraso em relação aos paradigmas sociais. Isto é mais do que sutil diferença.
Priscila Akemi Beltrame Advogada, formada pela Faculdade de Direito da USP, especializada em propriedade intelectual e em relações internacionais pela London School of Economics. Conclui formação em letras pela FFLCH-USP. É free lancer do jornal Gazeta Mercantil. Possui diversos artigos publicados nessa área.
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Priscila Beltrame