Última matéria do especial sobre TV Digital revela a disputa entre emissoras e teles que vem ocorrendo nos bastidores do debate, enquanto entidades civis correm por fora do processo
A implantação da TV Digital no Brasil vem provocando há alguns meses uma batalha de interesses quase restrita aos bastidores, travada principalmente entre as empresas de radiodifusão (caso das emissoras de TV) e as de telecomunicações. Na outra ponta, estão as entidades civis, lutando para que a discussão seja pautada prioritariamente pelo interesse público e pelas possibilidades de democratização da comunicação que a TV Digital oferece.
A disputa ocorre principalmente em torno da possibilidade de convergência tecnológica que o novo sistema de televisão traz, e que fará com que as teles possam ter um papel ativo na televisão, que hoje é desempenhado apenas pelas emissoras.
Os radiodifusores querem a alta definição trazida pela TV Digital e algumas possibilidades interativas que atendam a seus interesses comerciais, mas não aceitam a entrada de novos agentes no negócio. O argumento mais usado (e contrariado por diversos juristas) é o de que a televisão aberta já possui uma concessão para transmitir gratuitamente em VHF, e que os novos canais têm operado em UHF.
Para as emissoras, o melhor padrão seria o japonês ISDB, que possibilita transmitir sinais de televisão para aparelhos móveis (como celulares e computadores de mão) sem utilizar as operadoras de telefonia. O que os radiodifusores alegam a seu favor é que suas receitas (que financiam a transmissão gratuita para a população) vêm unicamente da venda de publicidade, e que isso seria inviabilizado com a entrada das teles, que em sua maioria recebem grandes investimentos estrangeiros e somente em 2004, faturaram 14 vezes mais do que as redes de televisão. Como as emissoras têm a restrição de que seu capital externo não pode ultrapassar 30% do controle, elas afirmam que a concorrência seria desleal.
Já as empresas de telecomunicações querem tirar das emissoras o monopólio sobre o espectro de UHF e VHF e produzir conteúdo, que para elas representaria um aumento no tráfego de dados e na sua fonte de renda (com a venda de programação para os aparelhos, por exemplo). Existem hoje no Brasil cerca de 50% a mais de celulares do que receptores de televisão, o que demonstra o potencial de negócios que as teles poderiam explorar na TV Digital. Seria um modelo de conteúdo sob demanda, que difere do modelo de conteúdo aberto e gratuito que as emissoras tentam manter.
Se o rumo seguido for o que as emissoras querem, a diversificação do conteúdo da TV brasileira (e a conseqüente democratização da comunicação) não irá ocorrer com as possibilidades que a TV Digital permite. Mas Johnny Saad, presidente da Rede Bandeirantes de Televisão, tem afirmado que a maior razão para a falta de espaço na televisão para a produção independente é o fato de a TV aberta produzir e distribuir seu próprio conteúdo. Ele afirma que nos EUA essa produção encontrou um segmento em canais de distribuição como a Internet e o DVD, e que no Brasil isso não ocorreu devido a uma situação de monopólio virtual da Rede Globo e da TV a cabo via satélite.
A política é outra peça fundamental nesse jogo de interesses. Segundo fontes do mercado, caso o governo opte pelo padrão japonês que lhes interessa, as emissoras iriam fazer uma boa e ampla cobertura da campanha eleitoral do Presidente Lula. Embora as teles tenham mais dinheiro para investir nas campanhas, obviamente não dispõem do poder de penetração e influência da televisão. E como 2006 é um ano eleitoral, o governo teria pressa em definir o padrão tecnológico da TV Digital para aproveitar os ganhos políticos. O que vem se planejando é que o novo sistema de TV seja inaugurado de maneira chamativa no dia 07 de setembro, com um jogo da seleção brasileira de futebol sendo transmitido em alta definição para telões instalados nas principais cidades brasileiras.
As emissoras contam a seu favor com o Ministro das Comunicações Hélio Costa. Desde que assumiu a pasta em julho do ano passado, ele tomou a dianteira no debate, realizando reuniões privadas com representantes das emissoras de TV e desqualificando o Comitê Consultivo do SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital), órgão que foi criado para representar oficialmente a sociedade civil. Em novembro passado, entidades como o FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação), a FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas) e a ABTU (Associação Brasileira de Televisão Universitária) pediram uma audiência com Lula para levar suas reivindicações. Mas a Presidência negou o pedido e o transferiu para a Secretaria-Geral, que não tem atribuição para tratar do assunto.
Costa (que trabalhava na Rede Globo) é dono de emissoras comerciais de rádio, e como seu Ministério tem a função de fiscalizar a radiodifusão, teoricamente isso deveria impedi-lo de ocupar o cargo. Ele vinha conseguindo excluir da discussão todos os agentes interessados no processo que não fossem emissoras, o que provocou uma reação de entidades civis. O governo acabou criando um comitê de ministros para tratar do assunto, o que diminuiu um pouco o poder de influência de Costa junto ao Presidente (Luis Fernando Furlan, Ministro do Desenvolvimento que faz parte do comitê, é visto pelas emissoras como um aliado das teles). Em fevereiro, ocorreu ainda uma reunião da Comissão Geral da Câmara dos Deputados para debater a TV Digital, que recebeu representantes de todos os setores e abriu a discussão. Com tudo isso, o governo adiou a escolha do padrão tecnológico em cerca de um mês. A data final agora é 10 de março.
Ao lado do FNDC, o coletivo Intervozes é um dos representantes da sociedade civil que mais vem se posicionando pela prorrogação do prazo, para que o debate possa ser mais ampliado e democratizado. Gustavo Gindre, um de seus membros, critica a atuação da maior emissora comercial do país: “A Globo quer a escolha do padrão de modulação japonês (com quem já possui acordos comerciais), então azar do desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro. A Globo não quer concorrer com novas emissoras, então azar da diversidade cultural brasileira. A Globo não quer interatividade pelo medo de competir com as empresas de telefonia, então azar das necessidades do povo que podem ser atendidas com estes novos serviços. E para disfarçar este discurso anti-republicano (no sentido de “res publica”, de coisa pública), a Globo cria a ilusão da Copa do Mundo em alta definição.”
A batalha das empresas de radiodifusão e de telecomunicações pelos seus interesses é considerada válida. O que os agentes civis do processo não aceitam é que os interesses privados se sobreponham aos públicos. Há um consenso geral de que a televisão brasileira há tempos não prima exatamente pela qualidade da programação, o respeito ao espectador e o atendimento às reais necessidades da população. As definições em torno da TV Digital podem responder muito sobre qual será o futuro da TV brasileira.
Para os profissionais da cultura, vale lembrar a opinião da jornalista Mara Gama, que participou de debate realizado no ano passado pela Pinacoteca e a revista Trópico: “Seja qual for o formato da TV digital, o que importa para os produtores culturais -com a internet, o celular e a possibilidade de interagir na TV- é que existem novas narrativas e é preciso pensar nelas, pois será um desperdício não utilizar tais ferramentas”.
O Intervozes mantém em sua página na Internet dois abaixo-assinados solicitando o adiamento da decisão e mais debates sobre o tema, assim como um documento intitulado “TV Digital: princípios e propostas para uma transição baseada no interesse público”. Ambos podem ser encontrados no endereço www.intervozes.org.br
André Fonseca