Grupos autônomos filmam e editam a partir de fomento público e militância, com recursos escassos e um longo processo de auto-conhecimento e definição de uma estética própria

Dentro da programação da Semana de Arte Moderna da Periferia (veja matéria aqui), a quinta-feira (8/11) será dedicada inteiramente ao cinema. Uma das formas de produção mais diretamente ligada ao fomento público, pela grande quantidade de recursos que envolve, encontra na perspectiva da produção fora dos grandes centros alguns apelos comuns e principais: a presença dos jovens, a atuação através de coletivos e a escolha por temáticas culturais ou sociais.

Entre os núcleos que se dedicam à produção audiovisual nas periferias, em especial na Zona Sul, e estão participando desta Semana, este repórter ouviu quatro: o Coletivo NCA, o coletivo de produção do Becos e Vielas, o MUCCA e o coletivo Arte na Periferia.

O Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA), é um grupo de cinco jovens, originalmente três, oriundos das oficinas do projeto Kinoforum. Participando da mostra coletiva com o filme “Paralelo: Espasmos de Realidade”, que retrata os devaneios de um escritor sobre o mundo e com alguns curta-metragens, o núcleo se volta para a utilização das mídias para a transformação social. Juntos desde o final de 2005, têm hoje cinco produções coletivas e cinco individuais produzidas.

Daniel Fagundes, um dos membros do NCA desde a formação, critica o caráter de preparação para o mercado dessas oficinas, que rebate com sua visão do que deve ser vídeo na periferia: “Nossos vídeos aqui tem muito do que a gente é, vive e acredita”. Para isso, crê ser ainda essencial a distribuição e exibição das produções. “Temos de mudar a idéia que vem com a mídia. Está acontecendo esta transformação na medida em que a gente começa a aprender, a buscar, a aprender a refletir, até para depois não sair só proliferando oficinas”, completa.

Fernando Soares, outro dos membros do núcleo, considera a experiência de construir a participação do audiovisual na Semana em conjunto muito boa. “A gente (coletivos) já tem uma certa ligação, mas estamos agora trocando idéia para ver a questão da estética e de como tratar do social. A gente pode se conhecer e ter idéia do que os outros diversos grupos estão fazendo. O complicado é que os grupos da Leste e da Norte não conseguiram vir para esta parte, desta vez”. Para Fagundes, tem sido bem bacana a discussão, e “essa semana só se caracteriza como movimento nessas horas, quando nós, de diversos grupos, nos encontramos, refletimos e conversamos. A militância se dá nisso, no fazer por conta própria, no buscar”.

O NCA é responsável ainda pela manutenção de uma Videoteca de produções da periferia, onde a comunidade pode tomar conhecimento do que tem sido produzido. Com média de 50 usuários por semana, e mais de 20 exibições coletivas em um ano, o projeto é financiado pelo VAI 2007.

Originado em uma ONG que pretendia ensinar fotografia, o núcleo oriundo da Becos e Vielas mantém, além de um blog, uma série de produtores de audiovisual, responsáveis, na Semana, pelo filme “2 Meses e 23 Minutos”, sobre o acampamento João Cândido, do MTST, em Itapecirica da Serra. Rogério Pixote, um dos produtores, coloca que o filme é uma forma de manifestar e de mostrar a indignação contra a exploração da população. De acordo com ele, o filme trata das pessoas simples que constroem o acampamento no seu dia-a-dia, e não as lideranças do acampamento.

A oportunidade de fazer o filme surgiu numa oficina de documentário realizada na PUC-SP. Pixote diz que gostaria que o filme fosse realizado para ser exibido num circuito alternativo, em escolas, faculdades, escadões e bares, “da mesma maneira como o João Candido foi erguido, pelas arestas e em rede”, de acordo com Pixote.

Sobre a construção e o espaço da Semana, Pixote comenta que hoje pretendem (os núcleos) levantar a discussão da utilização da cultura para a produção de vídeos, enquanto outro ponto de vista, ao que completa “As técnicas ou ferramentas são utilizadas de acordo com as necessidades e as nossas são imensas, nossa estética não é só a da fome, mas também a da existência, a do encontro, a da leitura do mundo globalizado através da interpretação da periferia. Grupos de audiovisual da periferia paulistana lançaram o manifesto do olhar visceral, que não é um dogma, mas sim uma provocação, uma possibilidade em debate”.

O coletivo Mudança com Conhecimento Cinema e Arte (MUCCA), grupo que desenvolverá a exibição pública de vídeos no Terminal de ônibus Capelinha, da SP Trans, hoje formado por nove jovens, foi um dos primeiros frutos das oficinas do Kinoforum na região, surgido na ONG Casa dos Meninos, em março de 2004, e baseia suas ações na exibição de curtas e longas em espaços públicos, para o que conta, desde 2006, com apoio do VAI, em especial em Terminais de Ônibus, projeto premiado.

Vânia Silva, participante do coletivo, colocou para esta reportagem que “sempre acreditamos num trabalho de educação popular usando como meio a arte. E a aproximação dos grupos artísticos possibilitam uma melhor eficácia nesse processo. Levar a arte ao povo exige dedicação, clareza, união e vontade e essa semana com certeza irá ajudar nesse processo”.


Em um processo quase metalingüístico (ou antropofágico?) da semana, Peu Pereira, do coletivo Arte na Periferia, foi o diretor da obra selecionada de seu grupo, a “Panorama: Arte na Periferia”, documentário com diversos artistas da cena independente e periférica da cidade, como Sergio Vaz e Ferréz. A motivação, nos conta, veio da convivência com os artistas da região, movimentos que ele achava marcantes, bonitos de serem mostrados, e que o apoiaram na decisão de fazer o vídeo.

Com o filme, uma surpresa: “a gente achava que não havia uma rede entre os artistas, que tinha sim um movimento, mas que eles não se falavam, não estavam interligados. Percebemos que não, que de fato o pessoal se comunica, tem uns combinados”.

O filme fez sucesso. Das 100 cópias produzidas, impressas em empresa especializada, algumas já correm festivais na França e na Alemanha, enquanto ao menos 40 rodam pela periferia de São Paulo. Para ajudar na divulgação, Peu e os demais “se pirateiam”, produzindo cópias do filme, distribuídas para outros espaços. Ainda assim, é flagrante a dificuldade do amadorismo: É complicado não ter uma produtora, um domínio jurídico. A gente produz muita coisa, como a própria vinheta da Semana, na raça e sem patrocínio”. Nesse esforço, alguns contratempos, como o recente roubo da Câmera do coletivo – hoje produzem com uma câmera emprestada. Apesar disso, começam a pensar em viver do seu próprio cinema, que hoje, de acordo com ele “dá para pagar alguns aluguéis, de vez em quando”.

Para Peu, a semana é um grito, “para mostrar que a gente consegue fazer, e fazer bonito, com qualidade e sem os recursos dos outros. O dinheiro que chega vem de forma suada. É um grito dizendo que a gente pode fazer, inclusive sobre o ponto de vista do desenvolvimento de uma estética, e em várias das linguagens envolvidas na Semana você vai encontrar uma linguagem de ruptura”.

MANIFESTO DO OLHAR VISCERAL

Sou viela, ciranda ou morro.

O corpo. As vísceras.

Reivindicando a alma seqüestrada há mais de 500 anos.

O vídeo-artesão na linha de montagem feita de organismo vivo; gerado da necessidade de representar o universo que nos circunda.

O nosso vídeo se faz à imagem esculpida do puro caos ordenado no calor da noção de quem não só filma, mas se filma ao narrar sua própria história pela lente fria da câmera.

O olhar em desintoxicação!

Uma ofensa ao pobre cinema-manso, à mediocridade da novela nossa de cada dia.

Nossa estética é a da procura, a do resgate, a do encontro, da experimentação.

Olhar quilombola que ofusca e risca a imagem dos borba-gatos da colonização cultural.

Sabotagem na linha de reprodução de estereótipos.

Celebração do personagem vivo, do personagem-alma, da periferia viva.

O encontro entre personagem, espectador e realizador, um na bolinha do olho do outro.

Em busca da cinemateca perdida criamos nossos cineclubes-avessos em bares, escadões, becos, nossas quebradas…

Periferias como centro. Periferia do universo, do mundo, do país, da cidade, dialogando com nossos sentimentos.

E… nosso nome não é Zé Pequeno!!!!!!!!!!!!!

Guilherme Jeronymo – Cultura e Mercado


editor

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