Brasil está prestes a ratificar a Convenção da Diversidade Cultural. EUA, que financiam 20% da Unesco, querem livre comércio culturalBRASÍLIA – No início de setembro, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) aprovou o Projeto de Decreto Legislativo, da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, que ratifica a convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sobre proteção e promoção das expressões culturais. A convenção, celebrada em 2005, destaca-se por ser o primeiro acordo internacional que garante a proteção, promoção, reconhecimento da diversidade cultural.

O texto assinado pelo Brasil prevê a adoção de medidas para o intercâmbio, análise e difusão de informações culturais entre os países. Além disso, os signatários do acordo comprometem-se a promover a conscientização pública sobre as diversas formas de cultura. Há ainda um dispositivo que incentiva a cooperação internacional em situações de grave ameaça a expressões culturais. O acordo cria também o Fundo Internacional para a Diversidade Cultural, gerido pela Unesco e formado por contribuições voluntárias dos países.

A Convenção da Diversidade Cultural da Unesco é considerada um grande passo na luta pela preservação das culturas regionais e pela soberania da identidade dos países, principalmente os pobres. A resolução, apoiada por 148 países, obteve voto contrário apenas dos EUA e de Israel. Para os Estados Unidos, os intercâmbios culturais deveriam ser regidos pelas mesmas leis do comércio internacional, submetidas às políticas de livre-comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Resistência – A resistência foi iniciada pelos franceses, em princípio com a definição do que chamavam de “exceções culturais”, mas que evoluiu para a definição da defesa da “diversidade cultural”. Os EUA chegaram a abandonar a Unesco em 1984, descontentes com os rumos que tomava a discussão. Retornaram recentemente, mas encontraram um consenso geral contrário às suas posições.

Aliados dos EUA, como o ex-primeiro ministro espanhol José Maria Aznar, chegaram a expressar o conteúdo das posições de Washington com rara dureza: “a exceção cultural é o argumento dos países culturalmente fracos”, disse ele. Para eles, a aprovação da resolução “pode prejudicar a livre circulação de bens e serviços” e “legitimar as violações dos direitos humanos” (sic). Washington pressionou fortemente seus aliados, com argumentos utilizados diretamente por Condoleeza Rice, como os de que deixariam de comprar produtos como arroz, trigo, algodão, importados da América Central. Com isso, conseguiram a abstenção da Nicarágua e de Honduras.

Não ao livre comércio – O ministro da Cultura, Gilberto Gil, afirmou, em entrevista à Carta Maior, que o conceito de livre comércio cultural, defendida arduamente pelo governo e pela indústria estadunidense, pode extinguir as culturas regionais e populares. Gil argumenta que a proposta de livre comércio poderá uniformizar a cultura, prejudicando a diversidade de manifestações regionais.

“O Brasil está muito à frente nesse debate, mesmo atrasado na necessidade. Por isso tornamo-nos um dos grandes líderes na convenção. Mas precisamos ainda enfrentar o embate dentro da Unesco. Mesmo vencendo a votação, o fato do país que sustenta a ONU ser contra a diversidade cultural é muito sério”, acredita o ministro.

Os Estados Unidos contribuem em 20% para o orçamento da Unesco e voltaram a participar ativamente em 2003. Eles abandonaram a União em 1984, para marcar seu desacordo com as demandas do movimento dos países não-alinhados em favor de uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação.

“É óbvio que uma Convenção não basta para fazer com que a globalização e a convergência digital tornem-se instrumentos da promoção, e não da redução, da diversidade cultural e das culturas locais. Mas é fato que demos um passo significativo, já que estabelece medidas práticas e parâmetros, inclusive para negociações na OMC”, acrescenta o ministro.

Lição de casa – O diretor do Instituto Polis, Hamilton Faria, diz que a Unesco precisa primeiro fazer a lição de casa e resistir às pressões dos estadunidenses: “São ações políticas que precisam ser tomadas. Como é que podemos ter peso em uma convenção com voto contra do país que sustenta financeiramente a Unesco? Precisamos ser fortes para resistir a isso”.

O MinC considera ainda que a construção de políticas culturais é dificilmente concebível sem passar pela questão das políticas da comunicação. Porém, a Convenção tende a dissociar as duas problemáticas e a ignorar a segunda. Na versão final do anteprojeto, aparecem duas alusões à diversidade das mídias. Uma lembra que “a liberdade de pensamento, de expressão e informação, assim como a diversidade das mídias, permitem a manifestação das expressões culturais no seio das sociedades”. A segunda enumera, no final da lista de medidas a tomar, “aquelas que visam promover a diversidade das mídias, inclusive por meio do serviço público de radiodifusão”.

“A grande questão é o que significa essa ‘diversidade de mídias’. O ponto chave é concentração. Mas essa palavra nem chega perto dos relatórios. Talvez seja um pouco do medo de espantar de vez os Estados Unidos da Unesco. No fim dos anos 70, o debate de diversidade era feito junto com o de comunicação. Isso que assustava os EUA”, destacou Faria.

O primeiro documento originário de uma instituição internacional sobre a desigualdade das trocas culturais e de informação, o relatório MacBride, foi ratificado pela conferência geral da Unesco de 1980 e publicado sob o título simbólico de “Um Mundo, Muitas Vozes”.

A coordenadora de Cultura da Unesco no Brasil, Jurema Machado, assume que a entidade realmente precisa repensar sua atuação: “É difícil a nossa relação. Os EUA têm uma forte influência. Mas convergimos no interesse com o governo brasileiro e com o resultado da Convenção. Agora é batalhar para ratificarmos rapidamente com os países e iniciarmos os trabalhos”.

As garantias ao direito soberano dos estados de manter e implementar políticas de proteção a manifestações culturais, a consciência do papel da cultura em políticas de desenvolvimento e a importância do diálogo entre as culturas têm tido avanços, apesar dos tropeços e disputas de interesses dentro do governo. Gilberto Gil considera que o I Encontro Sul-Americano das Culturas Populares e II Seminário de Políticas Públicas para as Culturas Populares, realizado em Brasília, entre 14 e 17 de setembro, tenha sido um dos avanços dessa busca pela soberania e identidades.

Regime de urgência – O projeto tramita em regime de urgência na Câmara porque o Brasil tem interesse em compor o conselho gestor da convenção. Para isso, precisa ser um dos primeiros 30 países a ratificar o texto. Agora, o projeto será examinado pela Comissão de Finanças e Tributação e depois irá para votação no Plenário.

A aprovação da convenção não garante sua imediata aprovação, apenas instaura o marco legal de defesa da diversidade cultural. Mas só terá validade para os países que a ratificarem. Fundamental agora é que, da forma mais rápida possível e pelo maior número de governos, o acordo seja ratificado, para que a hegemonia imperial não imponha sua brutal homogeneidade de forma ainda mais ilimitada ao mundo todo.

O Parlamento Europeu já aprovou a ratificação em maio de 2006. Em dezembro de 2005, o Canadá foi o primeiro país a ratificar a Convenção.

Fonte: Carta Maior

Carlos Gustavo Yoda


editor

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