As mudanças trazidas pela tecnologia digital estão vinculadas à essência do conceito de cultura
A tecnologia digital abre, em todos os campos , hoje, uma gama infinita de possibilidades. Sem dúvida ela veio para definir uma nova maneira de ver o mundo e realizá-lo, através de complexas fórmulas numéricas e cada vez menores processadores de dados. Pode –se até arriscar dizer que a realidade atual explica-se e interage por meio de artefatos num só tempo simples e complicados. Aliás, como veremos, o paradoxo parece lhe ornamentar características importantes.
Pormenores de lado, vale lembrar que o ponto chave dessa mudança está vinculado à essência do próprio conceito de cultura, do modo como o percebemos tradicionalmente. Se até algumas décadas a informação era transmitida e retida em representações comuns ao intercâmbio entre costumes, hábitos e convenções, com a digitalização essa mesma informação assomou aos horizontes das nações como algo que é de todos e ao mesmo tempo não é de ninguém, algo menos nítido e mais fluido, pois não derivado da palavra diretamente, mas mediado por dígitos. O eixo passou , de modo abrupto, de um patamar construído, transformado e consolidado nas relações associativas e seus ditames comportamentais nem sempre razoáveis, para uma excelência lógica e abstração sem precedentes. Uma dicotomia estrangulada por um abismo para onde corre o futuro da humanidade. A questão é: devemos ou não mergulhar nesta fenda limítrofe entre o terreno do tangível ( e portanto previsível ) e o espaço virtual( para a grande maioria da população mundial ainda inconcebível) ?
Trocando em miúdos, a questão é optar entre os convencionais mediadores informativos e a nova Era digital. O livro de cabeceira pode ser substituído pelo processador de bolso ?
Um primeiro aspecto a ser examinado é quanto aos fatores naturais de receptividade desta maneira digitalizada de compreender o real.
A compleição física do ser humano coloca a visão em primeiro plano entre os aparelhos sensoriais. Logo, satisfazer esse sentido humano deverá ser seguramente mecanismo primevo para a conquista do público pela obra digital. A tendência nessa área já aponta pela funcionalidade do “livro digital”. Temos e-books que podem ser lidos no escritório, mas também em laptops à beira do mar. Os formatos, caracteres e demais apelos visuais aproximam bastante um do outro. Além disso, fatores de risco, como os fótons e outras radiações, estão sendo minimizados em computadores de última geração. Quanto aos demais sentidos como o tato, por exemplo, soluções já se encontram, literalmente, ao alcance das mãos. Até mesmo um aparelho de telefonia celular já emite sinais legíveis e textos, nada parece obstar a evolução deste no intuito de facilitar leituras mais complexas.
Analisemos as consequências da veiculação de informações aleatórias digitalizadas. Sobre esse aspecto, há muito o que se comentar. Para tanto partiremos num exercício de ficção científica ao estilo Júlio Verne.
Numa Era completamente digital, a informação tornar-se-ia um campo abstrato e de fácil acesso, porém mais dissociado da sua fonte original. Se , por um lado, a originalidade ficaria comprometida, por outro, os nascedouros de obras digitais fluiriam intermitentes, não haveriam de faltar dados disponíveis a novos desenhos e construções versando sobre o mesmo enfoque.
”Nada se cria, tudo se copia” – diz o ditado popular. Pensando por este caminho, não teríamos grandes perdas. Ledo engano!
Haveria uma concentração exorbitante de informações manipuladas, negociadas e deturpadas. A função primordial dentro de uma sociedade organizada ficaria prejudicada, qual seja, a criatividade. À medida que todo material criado poderia facilmente ser reproduzido, não haveria espaço para o reconhecimento e , portanto , uma ausência de incentivo à inovação. Além disso, alçaríamos um ponto em que até mesmo o autor questionaria a sua autoria, pois teríamos dezenas ou milhares de pessoas reivindicando a mesma posição. Sem poder assegurar sua originalidade, o pensamento tomaria um único rumo definido por poucos.
A pergunta que vem na sequência é : por que uma massificação quando todos guardariam a mesma distância, o tempo de um clique, de um leque quase inesgotável de informações ?
O problema reside justamente no paradoxo existente entre realidade e tecnologia, entre os fatos e os efeitos do consumo “ venoso” de informações em excesso. O acesso quase instantâneo a informações por parte de todos, esvaziaria o conteúdo destas de um necessário comprometimento com a realidade e os fatos. A tendência seria uma natural acomodação nos limites do que está posto e o que está posto nem sempre é o melhor. Há de se questionar sempre. Há de se rebelar sempre. Não estagnar num presente contínuo, mas buscar utopias de futuro.
O fato é que a origem de uma obra não reside apenas em informações mas, e principalmente, em conhecimento. O conhecimento é exatamente aquela informação trabalhada com determinado objetivo prático e mediante princípios bem delineados de ordem moral. Nada impediria, ao menos no plano digital, a utilização de acervos particulares de informação para as mais diversas finalidades, inclusive contrárias ao bem comum e à ordem estabelecida. Pode-se levantar , então , duas hipóteses quanto à participação da sociedade nesse novo período processado digitalmente.
A primeira seria a predominância do interesse público sobre o privado. Contudo, levando-se em consideração a atual conjuntura mundial particularmente no que diz respeito à negociação de bens simbólicos, quando a força de grandes blocos capitalistas se faz voraz no intento de uma mercantilização do setor , parece-nos razoável, embora menos desejável, pensar numa digitalização voltada para uma abertura substancial à empreitadas desoneradas de um peso social e de uma intervenção estatal significativa.
Assim, diante de tais prognósticos e do mais exposto, não podemos deixar de sustentar uma coexistência da produção literária impressa com a mesma digitalizada. Diferentemente do que ocorreu às máquinas fotográficas, relegadas a raridades, pensamos ser o livro indispensável ao trafegar democrático da informação e do conhecimento. Aos livros, caberia instruir as futuras gerações par a par com processadores e chips, de modo a não se perder no tempo o virtuosismo de uma cultura contemplada com uma necessidade de desafios.
Concluindo, podemos tecer as seguintes considerações: em primeiro lugar há de se transformar a mentalidade que serve de pano de fundo aos avanços tecnológicos. Não adianta dar um passo para frente enquanto o olhar estiver aprisionado dentro de parâmetros egoístas e mesquinhos. Avançar e ter acesso à informação são duas etapas díspares. Há de se perseguir um avanço sem alijar o caráter intuitivo do processo de confecção de uma obra literária.
Vale acrescentar ainda que regras objetivando uma cooperação cada vez mais íntima entre o homem e o meio digital se fazem urgentes, sob pena deste último roubar-nos a diversidade e a identidade. Em pouco tempo pensaríamos de modo binário, emulando o referencial maniqueísta desta tecnologia.
Os futuristas e futurólogos que me desculpem, mas ler um bom livro, artesanalmente estruturado, manipulá-lo página após página, adormecer com ele aberto sobre o rosto, enquanto a televisão descansa, sem som, em algum lugar entre o primeiro e o milésimo canal, é essencial.
Marcos André Carvalho Lins
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