A proteção dos direitos autorais envolve mais do que oficializar a autoria de uma obra. A criatividade é que está no centro da questão. Artigo de Carvalho Lins.
Ao se estender a proteção do Estado aos bens simbólicos, está se protegendo um patrimônio cultural de valor inestimável, cujo teor vai além de limites monetários e transcende o patamar do espaço territorial de um país. Ocorre desta forma com a denominada propriedade intelectual.
O que vulgarmente se compreende como propriedade ganha uma conotação mais rica quando associada aos ditames criativos do pensamento.
As normas, portanto, apenas servem de respaldo a um dos mais significativos elementos de conexão entre o homem e seu ideário: a humanidade, sua construção social e seu imaginário.
Assim, a abordagem tradicional de propriedade perde um pouco em substância, obtendo espectros mais amplos e dignos, quando da sua transposição ao terreno dos direitos autorais e congêneres.
Pretende-se através da normatização dos direitos autorais, não só documentar e oficializar a autoria de uma obra mas, e principalmente, dar relevância e primazia à criatividade como um dos principais meios de consolidação dos alicerces tanto culturais quanto econômicos que regem uma sociedade.
Vejamos, então, o que se entende por criatividade.
Segundo o esboço da declaração universal sobre a diversidade cultural , as origens da criação provêm das tradições, porém se desenvolvem plenamente em contato com outras linhas de pensamento, numa só palavra, com outras fontes de cultura.
Daí, extraímos a idéia de que criatividade deriva de uma prática reiterada e socialmente aceita: a tradição secular de um povo. Ora, criar é inovar, é forjar o novo, é acrescentar a determinados conteúdos novas embalagens e é também promover novos contentos para os mesmos invólucros. Podemos aferir que a criatividade permeia toda a malha cultural de uma nação, perpassando desde suas instituições mais rizomáticas até o que se pode denominar, nos dias de hoje, como uma cultura “flutuante”.
Se é verdade que a criatividade se consolida na comunhão com os mais diversos meios e nascedouros culturais, é interessante observar que também esta se perde diante do fluxo inesgotável de ações e ideologias , muitas vezes conflitantes entre si, dentro de determinado mercado cultural que vai além de meras fronteiras territoriais. Ou seja, o contato entre as mais diversas formações e conjunções culturais é, num só tempo, aliado e óbice às transformações.
O mercado cultural, no sentido de aparato de troca entre bens de natureza simbólica, destoa bastante dos seus objetivos. Explico: pensemos num artefato mais primário de cunho artístico. Este objeto, ao migrar de uma tradição a outra, entre países de culturas diversas e singulares, expõe-se de maneira tal que se arrisca a ter de se sujeitar a valores e “métricas” que , se por um lado conferem-lhe o tão desejado passaporte para o sucesso internacional, podem vir a “mediocrizá-lo” , torná-lo tão distante de suas tenras origens que é como se estivéssemos diante de algo sem um rumo ou um norte. Algo que, não obstante, concebido dentro e nos limites de determinada realidade , confundiu-se com outra e passou a ser parte desta e não mais daquela (ou nem de uma, nem de outra).
As regras que regem os direitos autorais devem procurar , na medida do possível, amenizar as grandes disparidades entre o criador singular e a sua criação plural. A intenção é mais do que dar ao autor o crédito pela sua obra, mas armá-lo das ferramentas necessárias para que este não necessite se submeter às leis impessoais e anacrônicas, além de injustas, do mercado. Leis que, paralelamente aos ditames econômicos, definem o valor de uma criação pelo “carma” da oferta e da procura.
Por outro lado, como proteger a criação e a criatividade quando o lucro parece ser o interesse-chave não só dos criadores como também do público?
Para o autor , lucrar significa ver sua obra reconhecida e, muitas vezes, enxergá-la como suporte de suas várias necessidades de consumo. Já o público deseja um bom produto cultural a preços módicos.
A resposta está justamente em se fortalecer a criação em sua base. Há de se admoestar o criador no intuito deste evoluir integralmente, sem esquecer de onde veio. A mentalidade preponderante é buscar o mundo a todo custo. Todavia, o criador deve, ele mesmo, se dissociar de sua criação: deve avaliar os verdadeiros custos por trás das ofertas vantajosas. Antes de conquistar continentes, um após outro, deve dominar a compleição real do seu minúsculo ego individual. A sua obra deve corresponder a um olhar de dentro para fora , nunca o inverso. Primeiro o conteúdo e depois o continente.
Por seu turno, cabe aos apreciadores em geral de obras artísticas terem o acesso devido e os esclarecimentos pertinentes no sentido de uma escolha mais livre, não limitada pelas diretrizes de mercado, mas abrangente em toda sua diversidade.
Desta forma, impede-se que os desafios do mercado tolham bons criadores, desovando criações de qualidade duvidosa e, na seqüência, torna mais autêntica a manifestação, positiva ou negativa, do público, haja vista ter-se em pauta sempre um trabalho de consistência e cuja essência encontra-se elaborada num grau aumentativo, independentemente do seu país de origem.
Logo, criador e público devem situar-se ao largo de visões restritivas e retóricas próprias do setor econômico e aproximarem-se de uma compreensão maior de uma obra de arte como um diagnóstico social, dentro, obviamente, do alcance do autor e com as limitações advindas do processo produtivo, deveras peculiar, que é o diálogo cultural.
O que não podemos deixar de levar em conta é que, numa suposta confrontação cultural, não há salvação para criadores que vêm do nada. E para os países hegemônicos “vir do nada” é a melhor maneira de se construir quase tudo.
Marcos André Carvalho Lins