Carvalho Lins desliga a cultura da associação com as regras do mercado, e disseca o conceito mais amplo e significativo dessa palavra

O mundo corre atrás de cultura.

Explico: infelizmente a cultura só é valorizada enquanto produto. Objeto de consumo. Bem negociável. Mas tudo que realizamos nessa vida é cultura. Se trabalharmos com afinco, estamos estabelecendo, no mínimo, padrões de comunicação e expressão entre colegas ou mídias. Se passearmos distraidamente, estamos agregando valor às praças, aos canteiros, e até às próprias paisagens por onde trafegamos. Acrescentamos em tudo que realizamos e em tudo que admiramos um olhar especial, nosso, impregnado de uma musicalidade temperamental, mais ou menos sofisticada, mas com uma modulação transcendental. Uma orquestração de maneiras de pensar a realidade com leituras e traduções inigualáveis, peculiares.

Assim, cultura situa-se entre todas as formulações possíveis do “ver”, do “enxergar”, do sentir, vendo ou revendo, nas experiências empíricas de um ser em relação aos seus próprios preceitos e na troca com os demais. Concluímos, portanto, que viver é um fenômeno cultural. Desde o nascituro já se revelam aspectos individuais que vão refletir um modo singular de ver o mundo e as relações interpessoais. Não sei se Freud concordaria, mas cultura também guarda um trâmite psicológico. O ver para crer, de São Tomé, tem fortes raízes no diagnóstico cultural do meio social onde nascemos, seja ele a família, a cidade ou o país. 

A palavra-chave é interação. A cultura é por natureza interativa. Como defendeu Macluhan: o meio é a mensagem. Se duas pessoas observarem ao mesmo tempo uma determinada disposição de casarios, por exemplo, cada uma vai chegar a diferentes conclusões. A opinião de cada qual, verbalizada ou não, traduz figuras e configurações culturais. Aquilo que infere o sujeito na sua relação com o objeto pertence a uma bagagem que, de alguma forma, tornar-se-á perceptível até mesmo por meio de posturas e crenças diante desta ou daquela situação.

O que nos passam, muitas vezes, e trata-se de algo difuso (que se evade quando o alcançamos), é um tratamento conceitual de cultura carregado de objetividade, onde se privilegia o viés mercantil do produto cultural. Logo, esquece-se que cultura não é apenas arte, de preferência rentável e pouco custosa, mas toda a simbologia, arquétipos e canais, através dos quais forma-se o escolho milenar esculpido pela maré  da razão humana e cujo sentido é dar vazão justamente aos ímpetos e sentimentos de um ente ou de um povo.

Isso posto, é de bom alvitre desalojar do nosso ideário a cultura como algo perdido em si mesmo. Trabalhar com cultura é criar com o outro (mesmo em sendo o outro uma coisa, incapaz de qualquer reação, pois as coisas podem até ser estáticas mas nunca estão paradas, elas migram entre um olhar e outro) , e consigo mesmo ,vínculos de sensibilidade e intuição. É edificar a alma dos personagens que compõem o espetáculo da vida. Vale lembrar que os cenários também se inserem como o homem a mais de um time.

Apreciando por um lado mais próximo de nós, podemos verificar  perfeitamente o quanto se perde em cultura por meio do advento da massificação.

Se cada cidadão por si possui uma cultura que lhe é própria, ou seja, um “modus vivendi” particular, não é justo se falar num mecanismo de apropriação e delimitação dos seus horizontes culturais. Uma cultura homogênea e linear, dentro de um todo social, implica uma negação e uma contradição. Negação de um amorfismo estrutural e uma contradição frente a seu caráter inesgotável e plural, pluralidade esta que traz em si mesma o germe de uma unidade. Não se pode, portanto, deixar de evidenciar um quê qualquer paradoxal no que se costuma denominar identidade cultural. Melhor seria admitir-se uma coerência ou uma coesão, em maior ou menor grau.

A cultura, particularmente enquanto produto artístico, há, por conseguinte, de ganhar tratamento especial no que diz respeito a sua regulação. Trata-se da grande batalha deste século. Não se pode simplesmente vender os versos de um poeta empacotados para presente. Os versos ultrapassam o teor escrito, eles revitalizam a aurora dos seus leitores, ao mesmo tempo que são transformados por estes. No que tange à literatura, ao cinema, entre tantas outras manifestações de cultura popular, há de se ter um disciplinamento específico.

Como uma importante veia do corpo social, a cultura não pode ficar à deriva ou sob a égide caprichosa do mecenato. Há de se fomentar normas estatais que privilegiem e estimulem a exteriorização daquilo que cada qual tem de melhor.

Não obstante, como cada cidadão possui um eixo, mais ou menos flexível, em relação aos seus conteúdos, a confrontação cultural passa a ser imprescindível. O estado e a indústria cultural visam moldar uma síntese, carente de pré-requisitos lógicos, todavia, é do confronto da tese (o norte apontado pelos veículos de propaganda) com sua antítese (os valores e juízos pessoais insurgentes) que nasce a cultura rizomática.

Logo, a busca por cultura encontra-se imersa numa problemática maior: a devida ilação entre o ser e o pensamento. Há de se respeitar as idéias como mídia de transbordo da humanidade. Todas as idéias possuem validade e devem ser levadas em consideração, respeitando-se naturalmente os ditames sagrados da ética humanista.

Marcos André Carvalho Lins


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Marcos André Carvalho Lins é bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT -6a Região (Pernambuco), sendo também escritor diletante.

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