“Se o projeto cultural patrocinado é relevante e foi realizado como previsto quando aprovado pelas Leis de Incentivo, ele não passa a estar, por princípio, “a serviço de interesse público”
Restringir o entendimento sobre a atuação cultural de empresas, realizada através de incentivos fiscais, como sendo apenas o uso de “dinheiro público a serviço de interesses privados”, significa desconsiderar a importância das milhares de ações culturais realizadas por intermédio de empresas e observar exclusivamente a visibilidade gerada para suas marcas. Se o projeto cultural patrocinado é relevante e foi realizado como previsto quando aprovado pelas Leis de Incentivo, ele não passa a estar, por princípio, “a serviço de interesse público”? O foco de qualquer análise deve ser sempre o mérito das ações concretizadas. Porque, afinal, o que importa é o que foi realizado, e não como foi pago. Diminuir – ou aumentar – a importância de uma ação por ter sido realizada utilizando ou não recursos que seriam pagos em impostos pela empresa é, no mínimo, privilegiar os processos, em detrimento dos resultados.
Algumas observações com relação ao perfil dos projetos patrocinados são importantes. Ao contrário do que possa parecer, no cenário trazido pelas Leis de Incentivo à Cultura, não são as empresas que determinam qual o perfil dos projetos que estão ou não aptos a serem realizados. O que as empresas fazem é escolher, dentre os projetos aprovados pelas leis, aqueles que realizam as intervenções culturais mais afinadas com suas visões. A seleção dos projetos aptos a captarem recursos é feita pelos responsáveis pelas comissões de análise dos projetos submetidos à aprovação das leis, na grande maioria dos casos, formadas por representantes dos diversos segmentos do meio cultural.
Assim, por princípio, todo projeto patrocinado através das Leis de Incentivo à Cultura é (ou, pelo menos, deveria ser) relevante. Existe o entendimento, porém, de que não cabe aos representantes das comissões de análise dos projetos avaliar o seu mérito, já que toda manifestação cultural tem importância para a sociedade, devendo ser feita apenas uma avaliação de ordem técnica, observando a adequação dos custos, coerência entre objetivos, justificativa e resultados propostos. Uma vez tendo sido aprovados, os projetos são colocados no mercado em busca de empresas patrocinadoras afinadas com sua proposta.
A contradição final desse processo é trazida pelas críticas ao que é percebido como sendo o perfil dos projetos escolhidos pelas empresas patrocinadoras – feitas como uma forma de defender a tese de que o modelo trazido pelas Leis de Incentivo tende a gerar exclusões e distorções no cenário cultural. Dentre outros pontos, critica-se uma “preferência” das empresas por projetos e áreas artísticas “que ofereçam maior visibilidade para suas marcas”, em detrimento de outros segmentos, mais carentes e culturalmente também importantes; condena-se a escolha de projetos protagonizados por artistas “consagrados” (muitas vezes, enquadrando nessa categoria todo artista que não seja iniciante), alegando-se que estes “não precisam de recursos”, em oposição a artistas que ainda não tenham encontrado seu espaço no mercado.
Valem algumas observações com relação às escolhas feitas pelas empresas. A visibilidade da marca da empresa não está associada, necessariamente, ao perfil do projeto patrocinado ou à área artística em que se insere. Está relacionada, isto sim, à competência e ao acerto das estratégias de geração dessa visibilidade, a uma perspectiva de longo prazo e ao comprometimento de todos os envolvidos na parceria.
O entendimento de que projetos que movimentam maior contingente de públicos e geram maior exposição de marca seriam, por princípio, os que oferecem maior retorno à imagem da empresa é equivocado. Ele parte do pressuposto de que as empresas buscam com seu patrocínio à cultura exclusivamente a exposição de suas marcas, o que nem sempre é verdade. Muitas empresas podem estar buscando não a exposição, mas a qualificação de suas marcas, sua aproximação de públicos específicos e segmentados ou mesmo a modificação de alguns aspectos relacionados às comunidades em que atuam. Um exemplo é o apoio que tem sido dado a projetos culturais que têm na arte um veículo para a transformação social e o resgate da cidadania, especialmente de crianças e adolescentes em situação de risco social.
Cada empresa, tendo como base seu perfil empresarial, posicionamento mercadológico, características do mercado em que atua e seus contextos econômicos e sociais, deve construir suas estratégias culturais considerando as melhores associações a projetos culturais, face a seu potencial de intervenção.
A empresa deve buscar o protagonismo, a escolha das ações em que sua atuação “faça a diferença”. É da consistência do planejamento da política de atuação cultural de cada empresa e da coerência de suas ações em relação a essa política que surgirá sua visibilidade frente ao mercado – e não da escolha isolada deste ou daquele projeto, desta ou daquela área artística.
O mesmo pode ser dito com relação ao patrocínio a “artistas consagrados”. Existe uma confusão que deve ser desfeita. Uma coisa é a visibilidade do artista protagonista do projeto. Outra, bem diferente, é a visibilidade da empresa que apóia o seu trabalho. O maior ganho de imagem que uma empresa pode ter em seus investimentos em cultura é justamente associar sua marca a um papel ativo na transformação de um dado cenário. Ou seja, a percepção de que aquela ação só é possível graças à intervenção da empresa.
Muitas vezes, patrocinar um artista “feito” não gera nenhuma valorização do papel da empresa. É muita ingenuidade pressupor que será gerado um sentimento de “gratidão” à empresa por ela ter patrocinado aquela ação específica do “artista favorito das massas”. Fica muito claro para todos que aquela empresa, assim como os outros patrocinadores, está apenas associando sua marca àquela ação específica, não tendo um papel significativo na construção da carreira daquele artista, nem à evolução de seu trabalho. E quanto maior a envergadura do artista, maiores as restrições de exibição da marca da empresa patrocinadora, até porque tende a ser maior o número de patrocinadores, apoiadores e forças envolvidas na realização da ação. Vincula-se com maior ênfase a essa ação a empresa que gastar mais recursos em comunicação a fim de reforçar a associação de sua marca ao evento.
Por outro lado – é importante também dizer – é equivocado o entendimento de que grupos e artistas que já tenham inserção no mercado, sendo mais “renomados”, não precisariam contar com as Leis de Incentivo à Cultura para a realização de seus trabalhos. Normalmente esses artistas, seja pela envergadura dos projetos em que se envolvem, seja pelo compromisso com a qualidade artística com que desenvolvem seus trabalhos (o que, muitas vezes, explica seu reconhecimento junto ao mercado), trabalham com os principais profissionais e estruturas existentes no mercado, impossíveis de serem pagos contando exclusivamente com recursos gerados pelas bilheterias.
Além disso, entender como papel das Leis de Incentivo viabilizar investimentos exclusivamente em artistas “iniciantes”, equivaleria a apostar num “eterno recomeçar”: todos os recursos disponíveis seriam canalizados para artistas estreantes, que após um determinado investimento em seus trabalhos passariam à condição de “veteranos”, não merecendo mais recursos por já terem sido contemplados. A conseqüência dessa visão distorcida seria uma constante seqüência de criação e extinção de grupos e de trabalhos artísticos, concebidos em um cenário paternalista e absolutamente dependentes de um mecanismo financiador voltado não para o reconhecimento de competências, mas para a compensação de fragilidades perante um mercado percebido como cruel e injusto.
Pressupor que os artistas iniciantes só possam se estabelecer no atual cenário através de uma atenção caridosa e cuidadosa das leis pode representar para muitos um “queimar de etapas” e, mesmo, a criação de uma dependência tal que poderia levá-los à extinção, ao se encerrarem os cuidados e proteções.
Outra possível conseqüência da visão de que o objetivo das leis é investir prioritariamente naqueles que não existem de forma estruturada, estando à margem da aceitação pública, é o estabelecimento de relacionamentos entre artistas e produtores culturais baseados apenas na realização de projetos específicos, com início e término definidos, numa espécie de união cultural “por empreitada”. Um processo que não cria modelos, os quais são trazidos principalmente pela consistência e qualidade desenvolvidas por artistas e grupos com maior tempo de dedicação a um determinado trabalho artístico. E é justamente essa criação e disseminação de modelos que destaca a importância de também se contemplar com recursos advindos das Leis de Incentivo à Cultura os grupos e artistas com trabalho consolidado. São artistas e grupos que, logicamente, foram iniciantes um dia e que, muitas vezes, tiveram no próprio processo de vencer as dificuldades iniciais – não só financeiras, mas também estéticas e conceituais – um fator de fundamental importância para a descoberta de sua identidade artística, de seus diferenciais perante as comunidades às quais dirigem sua arte, e, enfim, para a construção de seus trabalhos. Um processo essencial para todos os que trilham seus caminhos na área artística.
O ideal é realmente buscar um equilíbrio entre a canalização de recursos para artistas novos e para aqueles com maior experiência. Negar a legitimidade de estes artistas buscarem recursos das Leis de Incentivo à Cultura, por pressupor que eles têm mais chance de se estabelecer do que outros, significa punir sua competência e o reconhecimento alcançados, com certeza à custa de dedicação e muito trabalho.
Por trás dessa questão existe, embutida, a idéia de que os recursos deveriam contemplar a todos na busca de uma “democratização” do uso da lei, igualando o direito de cada proponente de projetos, independentemente de sua trajetória e dos méritos culturais de suas propostas, como se o objetivo das leis fosse promover “justiça” na distribuição dos recursos, e não a geração de um quadro cultural e social mais saudável. Extremando, seria como, em se tendo mil reais a serem distribuídos para mil proponentes, se entendesse que a melhor saída fosse dar um real para cada um. Ninguém faria nada e o cenário cultural permaneceria carente.
De qualquer forma, com relação às críticas ao investimento de empresas em determinados perfis de projetos, é importante observar que as empresas escolhem aqueles que receberão seus recursos dentre os selecionados pelas comissões que analisam as propostas submetidas às leis. Surge, então, a pergunta: caberia às empresas (e somente a elas) entrar na avaliação do mérito cultural dos projetos e dos artistas nele envolvidos, já que esse não é um papel atribuído aos responsáveis pela análise de projetos junto às Leis de Incentivo (aos olhos de quem todos os projetos artísticos teriam igual relevância)? Seriam as empresas, no contexto das Leis de Incentivo à Cultura, as únicas responsáveis por garantir o balanço perfeito do mercado cultural, fazendo de seus patrocínios instrumento de correção das distorções nele existentes?
O processo seletivo dos projetos submetidos às leis traz uma lógica de funcionamento que poderia permitir – caso se crie maior organização do meio cultural, uma maior articulação e interlocução entre os profissionais dessa área e os integrantes das comissões de análise e seleção de projetos – a construção de uma verdadeira política cultural coletiva. Esta seria constituída por representantes dos diversos segmentos culturais e pelo setor público e realizada em parceria com a iniciativa privada. A partir do consenso a respeito das urgências do setor cultural para um período determinado, seriam priorizados, no processo seletivo, projetos que contribuíssem para a evolução ou transformação daqueles pontos específicos, indicados como prioritários. Ao investir em projetos aprovados pelas Leis de Incentivo, a empresa estaria, necessariamente, contribuindo para a efetivação de uma política cultural coletiva e para a transformação do cenário artístico em sua área de atuação.
No que se refere às críticas ao modelo de financiamento trazido pelas Leis de Incentivo à Cultura, embora sejam sempre válidas reavaliações e correções de rumo, é necessário estar atento ainda a outros pontos. As leis existem no mercado há relativamente pouco tempo e de forma descontinuada. Considerando o grande universo de forças com as quais lidam – empresas, governos, profissionais do meio cultural e sociedade – é prematuro falar em sucesso ou fracasso desse modelo. É fato, porém, que, graças às leis, essa área vem passando por várias fases evolutivas, superando obstáculos, modificando comportamentos e trazendo profissionalismo, articulação e intercâmbio ao meio cultural, aos representantes culturais do governo e aos profissionais das empresas. Considerando o número de cabeças a serem conscientizadas, de processos a serem transformados, e de pessoas a serem sensibilizadas, o período de existência das leis é relativamente pequeno. Comparar o ponto em que estamos com um hipotético formato ideal para o funcionamento das dinâmicas culturais da sociedade é algo importante, mas não mostra o quanto se avançou através desse modelo em relação às práticas da área cultural. Talvez seja mais importante, neste momento, comparar o atual estágio evolutivo de cada um dos segmentos culturais com a situação em que se encontravam há alguns anos, e perceber em que medida essa transformação pode ser ou não atribuída ao funcionamento das leis. Claro, existem áreas que estão hoje à margem desse cenário. Mas vale perceber que muitas delas estavam também à margem do cenário anterior às leis e não devem, portanto, ser apontadas como exemplos negativos gerados pelas leis. Essas áreas devem, isto sim, ser alvo de ações que as incluam no mercado atual.
Falar que o modelo criado pelas leis “não deu certo” é considerar que já chegamos ao fim de um processo. Entretanto, ele ainda nem começou. Não há como fazer um balanço conclusivo do modelo, até porque, em momento algum, foram feitos os devidos esforços no sentido de ampliar e descentralizar o uso das leis.
Esse processo solucionaria os principais problemas: a concentração de projetos e patrocinadores. Não foram desenvolvidas, também, ações para orientar os beneficiários das leis para seus melhores usos, multiplicando experiências. Questões que exigiriam ações voltadas para capacitar gestores, produtores, artistas e profissionais dos setores público e privado. Enfim, há muito a ser feito. Mas, convenhamos, é mais fácil criticar o modelo e atribuir a culpa de suas distorções à “falta de visão do empresariado”…
Marcos Barreto Corrêa
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