Nossa ambientação jurídica destoa da realidade, corroborando a tese absurda de que não dependemos culturalmente de outras nações e de que há culturas a serem protegidas por serem “exóticas” e não por fazerem parte de uma necessidade primaz de soberania cultural.

A constituição federal é bem clara em seu artigo primeiro. O estado democrático de direito tem como fundamentos:

I- a soberania;
II- a cidadania;
III- a dignidade da pessoa humana;
IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V- o pluralismo político.

Se isolarmos os itens I, II e III, chegaremos à conclusão de que nenhum deles remete à cultura diretamente, mas dizem muita coisa nesse sentido. O que entender-se por soberania? E cidadania? De onde advém a dignidade da pessoa humana? Como esses três atributos podem ser alicerces culturais de uma nação?

Ora, estabelecendo como axioma que a cultura passa necessariamente por um fluxo ideativo e ideológico, há de se levar em conta a capacidade de auto-determinação de um povo como parte inseparável do seu coeficiente cultural. Em poucas palavras, a cultura vem corroborar e dar sustentação aos conceitos de soberania, de cidadania e dignidade da pessoa humana. Poderíamos sintetizar esses três aspectos em um único: a não sujeição cultural em todos os níveis. Isso significa dizer que desde o mais solitário cidadão até o maior conjunto possível de seres nacionais, todos gozariam dos mesmos direitos, deveres e prerrogativas.não haveria privilégios ou exclusões de qualquer sorte, mantendo-se e respeitando-se o princípio primevo da carta magna, a isonomia.

Não há , todavia, uma igualdade social sem um mecanismo de contrapartida cultural. E vice-versa. O paradoxo é portanto gritante. Para solucionar a equação, dependemos de uma constante necessária: a educação.

Vamos explicar melhor: quando tratamos de soberania, cidadania e dignidade, estamos reportando-nos a utopias pelas quais vale até verter o sangue, mas que não deixam , por isso, de serem metas ideais ou sonhos. Como conceber a tão sonhada soberania num país corrompido culturalmente?

Um país é soberano quando nele residem cidadãos que disponham do mínimo de dignidade humana. Não nos parece muito razoável promulgar-se uma suposta soberania sem o devido lastro cultural correspondente. É como emitir moeda sem o aval de reservas públicas em ouro. Não faz sentido e apenas torna ainda mais profundo o fosso que separa o homem de suas raízes nacionais. Isso porque a imposição de uma cláusula constitucional, que defenda a não subordinação, jaz inconsistente perante os fatos adversos que atestam uma cultura viciada e demagógica, cujo fulcro emblemático é justamente a alienação e conseqüente emulação de paradigmas comportamentais alienígenas.

Não almejamos decretar o isolacionismo ou a segregação nacional dos demais entes de direito internacional, mas nos importa sim rever o conceito de soberania em prol de um viés cultural pouco ou quase nunca mencionado.

É bem verdade que um país capaz de ostentar fronteiras territoriais e defendê-las pode ser diagnosticado como soberano, mas também é fato que a globalização efetuou um imprescindível redimensionamento dos limites comunitários. As áreas “condominiais” de uma determinada nação passaram a adotar feições muito mais econômicas do que propriamente terrestres, marítimas ou aéreas.

Há notoriamente uma troca bem mais significativa de bens e idéias entre nações hoje, do que há cem anos. Há, em decorrência disso, uma maior aproximação cultural entre povos díspares. Há , por assim dizer, uma corruptela nacional que prescinde de bases físicas, cuja natureza é originariamente supranacional.

Não obstante a nossa carta magna tende a considerar soberania, cidadania e dignidade humana como pressupostos inalienáveis e estanques de um estado democrático de direito.

Como estabelecer tais requisitos como basilares, em se tratando, por exemplo, do seu componente musical. Ouve-se aqui a mesma trilha sonora, do mesmo filme, dentro de uma sala similar de projeção, daquela presente em outro país, com um outro povo, outra origem histórica, outra geografia e outra estrutura econômica. Embora o preço do ingresso não se altere comparativamente.

Uma soberania geopolítica não leva necessariamente a uma independência no campo cultural, parte esta muito mais suscetível a trocas e relações de domínio e opressão.

Logo, nos parece errôneo positivar uma soberania nacional sem sequer respaldá-la numa moldura, ao menos ideal, de soberania cultural.

O texto magno apenas vem a introduzir a noção de cultura, traduzindo uma idéia estrita de costumes, hábitos e manifestações culturais singulares, em seu título VIII, quando, há muitos títulos atrás, já regulou os direitos de exploração do espaço físico e de radiodifusão, sobre os quais se assentam pelo menos noventa por cento dos meios que alicerçam uma realista soberania cultural.

Conclusão: nossa ambientação jurídica destoa da realidade, corroborando a tese absurda de que não dependemos culturalmente de outras nações e, ainda pior, de que há culturas a serem protegidas por serem “exóticas” e não por fazerem parte de uma necessidade primaz de soberania cultural. Afinal um povo só é soberano se todas as pontas do seu novelo cultural encontram sentido e são capazes de espelhar a cidadania através de uma expressiva dignidade humana.

Marcos André Carvalho Lins


contributor

Marcos André Carvalho Lins é bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT -6a Região (Pernambuco), sendo também escritor diletante.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *