Coordenador de Cultura Digital do Ministério da Cultura discute pirataria, sexo na internet e direito autoral – temas que serão pauta do espaço Conversê, na Teia 2007.
O coordenador de Cultura Digital do Ministério da Cultura (MinC), em entrevista exclusiva ao 100canais, diz o que espera do Espaço Conversê na TEIA 2007. O espaço estará localizado na Funarte Casa do Conde, em Belo Horizonte, e sediará toda a discussão sobre a cultura digital, que, segundo ele, “fica muito bem comportada quando colocada numa grade”. Claudio Prado já disparou as primeiras provocações, incitando os diversos atores desse debate a tomarem parte nas polêmicas, sem economizar verbo em nenhum assunto: convergência tecnológica (“trouxe uma puta confusão”); as transformações do mundo digital (“ou nós nos reinventamos, ou essa merda toda vai acabar”); governo (“obviamente o governo tem que olhar pro digital como um fantástico processo de acesso e não como um cerceamento.”); educação (“por que as escolas estão vazias e as lan houses estão cheias?”); pirataria (“como é essa história: é crime distribuir via internet? Ou pirataria é trancar as possibilidades de democratizar acesso e transformar o produto mecânico em lucros vultosos?”); sexo na internet (“por que sexo não pode ser objeto livre e aberto na internet?”); Gilberto Gil (“o ministro Gilberto Gil aceita a desobediência civil como um método absolutamente coerente com o processo de evolução das idéias”); e até Marx (“Marx seria um hippie-digital”). Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
100canais – Gostaria que o senhor falasse sobre as atividades do Espaço Conversê, na TEIA 2007, realizadas pela Cultura Digital.
Claudio Prado – O Conversê é um espaço de conversas, como não poderia deixar de ser. Essa é a história. E o tom dessas conversas é com o que nós estamos preocupados. O tom da conversa é trazer as questões polêmicas para uma discussão aberta entre os diversos atores envolvidos nessas questões. A convergência das tecnologias digitais trouxe uma convergência de agendas, trouxe uma puta confusão no mundo da regulação e no mundo corporativo – por favor, ponham aspas, atribuindo a mim exatamente nesses termos “puta confusão”. Não suavizem o meu texto! O digital provoca a discussão de como é que nós vamos nos reorganizar, de como é que nós vamos nos reinventar no século XXI. Porque ou nós nos reinventamos ou essa merda toda vai acabar, nós vamos destruir o planeta e vamos destruir a gente também. Essa é a mensagem do Bush, que eu chamo de “cagada”. E tem o peido da “cagada”, que é o fim da história do Fukuyama. Eu vim com essa outro dia e achei genial. Como se o fim da história fosse o fim da visão direita e esquerda. Como se o fim da história fosse a visão do mercado tomando conta de tudo, porque é inexorável e acabou e, pronto, morreu.
100canais – O Conversê quer, então, a polêmica?
Claudio Prado – Na verdade, nós queremos que a cultura digital no Conversê traga essa discussão, a polêmica. Não que as pessoas venham com seus discursos prontos, mas topem conversar sobre como é que vai ser, “que porra é essa?”, daqui para a frente. “Que porra é essa?”, como grande pergunta das questões que a cultura digital provoca em todo mundo. Como é que vai ser regulado isso, como é que as empresas vão começar a se redefinir, se reinventar, a partir da desmaterialização da indústria? O que é a educação à distância, que distância é essa, do que nós estamos falando? O que é distância no mundo digital? O que é memória no mundo digital? O que é informação no mundo digital? Por que isso tudo está sendo revolucionado?
100canais – Quem são esses atores da discussão digital?
Claudio Prado – São aqueles que já estão presos na gaiolinha das atividades já programadas, presos numa espécie de grade de programação, tirando eles dessa coisa e trazendo elas para a discussão aberta, provocada no calor das coisas que estão acontecendo lá e provocada por essa própria entrevista que eu estou dando aqui, que já é um estartar de um processo. Quem achar que é um absurdo já vem polemizando e leva isso pra discussão lá depois. Quem achar que é ótimo diga e bote nessa discussão. Os processos emergentes da polêmica vão ser trazidos para a cultura digital no Conversê. Nós queremos é a polêmica, é a provocação de uma discussão, que é uma discussão subjacente a essa questão da cultura viva, subjacente a essa questão da cultura digital, mas que na verdade fica muito bem comportada quando colocada numa grade, sobretudo quando é o governo que provoca a grade. O governo, o Ministério da Cultura, do Ministro Gilberto Gil, aceita a desobediência civil como um método absolutamente coerente com o processo de evolução das idéias e das propostas. Praticamente nada que é novo nasceu sem uma rebeldia. A cultura digital é rebelde na sua essência, os processos horizontais de tomada de decisão são anárquicos, são subversivos à idéia central, de poder centralizado, e, portanto, subversivos a governo, que são poderes centrais. Então, no Conversê, vamos estabelecer o caos. Um espaço onde não existe nada que tenha ou que não tenha que ser dito. Vamos estabelecer um lugar onde a única coisa que precisa é trazer a polêmica que essa discussão tem e sentar ali para conversar.
100canais – Partindo para a primeira polêmica. Muitos atribuem o motivo da pirataria à falta de educação do povo.
Cláudio Prado – Sim, graças a Deus! A proposta da nova educação, do que se tem que reinventar, do que se tem que reorganizar. O que as escolas hoje, públicas, no Brasil, têm a ver com a educação? A educação tem uma etimologia muito curiosa. “Educare” é “castrare”, é enquadrar as pessoas num modelo. Esse modelo faliu. A melhor prova de que o modelo faliu são os professores de hoje. Os professores são uns coitados, que correm de lá pra cá repetindo as mesmas coisas, ensinando que o caminho mais curto entre dois pontos é uma reta, por exemplo. Continua se ensinando isso nas escolas, na aula de Física, quando a Física há cem anos já sabe que isso é uma mentira, que isso é uma verdade absolutamente relativa para medir tijolo na parede. Então, isso é uma bobagem. Isso é um desensinamento. Onde está a educação efetiva no dia de hoje? A primeira questão é a rebeldia da deseducação. O que é a propriedade de graça? O que é que o cara pega e não pode? É a música distribuída pela internet? Como é essa história: é crime distribuir via internet? Você vai botar cadeado na distribuição, pra manter uma distribuição mecânica, que custa uma fortuna, que obriga o produto cultural a ser pasteurizado, ou seja, a ser só coisa de maioria? Elimina a diversidade, elimina as possibilidades e chama isso de pirataria? Ou pirataria é trancar as possibilidades de democratizar acesso e transformar o produto mecânico em lucros vultosos? Quem é o pirata? O pirata é o cara que quer muito dinheiro. Quem é que no mundo da música quer muito dinheiro? A gravadora. Quem é pirata consequentemente? A gravadora. A gravadora é a pirata. Eles são os piratas. A editora quer ganhar muito dinheiro, muito dinheiro. Um CD custa R$ 40, ficam R$ 2 pro artista, o resto é para garantir o lucro da gravadora. São os piratas. O mundo digital propõe uma distribuição fantasticamente nova, que gera a necessidade de discutir um novo modelo de negócio. Quem não quer discutir esse novo modelo de negócio são os piratas da era digital, que estão querendo eliminar a possibilidade de avançar com isso. Então, nós estamos discutindo aqui o que é educação? Educar pra quê? Cadê o direito à informação, o direito livre que todo cidadão tem, constitucional, de acesso à informação, que tem garantido em todas as Constituições do mundo? Quem defende isso? Quem trabalha pra isso? Tinha que ser os governos. Qual é a melhor ferramenta de democratizar acesso que existe? É a possibilidade de distribuição que o digital desencadeia. Ah, mas aí vai tirar o dinheiro de A, B e C. E daí, foda-se! Entendeu? Onde está o cara que vendia mastros de navio? Era o cara rico, porque era a única coisa que não podia quebrar na navegação. Aí vem o motor a vapor. O motor a vapor é pirata, proíbe o motor a vapor? Proíbe o barco mecanizado porque o cara do mastro dançou? É isso que nós estamos fazendo com o digital. Nós estamos no processo dessa turbulência burra.
100canais – E o posicionamento governamental dentro dessa discussão?
Claudio Prado – Obviamente o governo tem que olhar para o digital como um fantástico processo de acesso, e não como um cerceamento. O cerceamento é a pirataria no dia de hoje. Se a gente tem uma coisa fantástica, que pode levar acesso a todo mundo a preços muito mais baixos, esse é o interesse público. Agora, qual é o modelo de gestão, a partir daí, da música, das idéias, de tudo? Esse tem que ser repensado.
100canais – E a participação das lan houses, como é que fica no espaço da cultura digital no Conversê?
Claudio Prado – A lan house é outra história que nós queremos discutir. A lan house já existe como espaço já autônomo de cultura digital. A lan house é um lugar onde já se estabelece o digital e o acesso a essas possibilidades digitais, através de muitas vertentes. Uma delas são os jogos, os games, que são inacreditáveis espaços. O moleque da favela brasileira que joga jogo “pirata” – porque é isso que ele joga, ele baixa o jogo e joga o jogo pirata – vem com instruções em japonês ou inglês ou tanto faz, uma língua que ele não entende. Então, além de tudo, ele tem que descobrir qual é a natureza do jogo, ele tem que descobrir a regra do jogo. Ele tem ali um processo de aprendizagem e de metodologia, para chegar ao resultado que ele precisa, de uma complexidade, que exige uma destreza, uma condição de operar aquilo que é extraordinário. Não há nenhum professor de escola pública no planeta que é capaz de exigir esse tipo de grau de complexidade de nenhum aluno, porque eles mexem com coisas desinteressantes na essência, em relação àquilo que eles estão propondo. O vídeo-game é uma fonte extraordinária. Agora, dá isso para pedagogo, ele vai fazer um jogo chato, o moleque joga fora. O moleque não está nem aí para jogos de propostas pedagógicas, porque todos os jogos são pedagógicos. Agora, bota isso na mão de um pedagogo…Tá aí, bela polêmica para a cultura digital no Conversê.
100canais – O Instituto Paulo Freire está elaborando toda a metodologia desse espaço na TEIA 2007?
Claudio Prado – Pois é, o Instituto Paulo Freire… Precisa ver se Paulo Freire concorda com isso que o Instituto Paulo Freire está falando. Uma bela polêmica. Vamos lá discutir Paulo Freire, Instituto Paulo Freire! Vamos lá no Conversê discutir isso! Para mim, os institutos são fundamentalistas, na sua grande maioria. Marx não seria marxista hoje por nada no mundo. Marx seria um hippie-digital. Porque a apropriação dos meios de produção finalmente são possíveis. E esse era o pilar principal da questão marxista. Está reduzido a uma coisa muito simples. O Cinema Novo era uma frase, hoje é uma realidade. Câmera na mão. Olha aí a câmera aí. Comecei a falar e já apareceu uma câmera aqui, rapidinho. Câmera na mão, idéia na cabeça, câmera na mão. Hoje é possível. Aquilo era um delírio utópico naquela época. Então isso tudo, o que o Cultura Digital está desencadeando são novos processos, uma bela discussão. “Bora lá” discutir o que é Marxismo nessa era. Qual é o reinventar desse processo e não a repetição das mesmas coisas. Marx não estaria dizendo o que ele disse. Cristo não estaria dizendo o que ele disse. E Paulo Freire não estaria dizendo o que ele disse.
100canais – E qual a lógica da cultura digital dentro do Cultura Viva?
Claudio Prado – Nós partimos do princípio de que só se pode entender tecnologia como um fenômeno cultural. Tecnologia é fenômeno cultural. O homem usa a tecnologia desde os seus primórdios. O homem se separa do bicho pelo uso da tecnologia. É pegar o osso e bater na cabeça do outro macaco ali, que foi a cena do filme “2001”, e nós estamos já em 2007. Essa aventura do bicho-homem é o uso da tecnologia. Portanto, tecnologia é a essência cultural do desenvolvimento do ser humano. Duas questões: isso e a cópia. A cópia é um elemento essencial ao aprendizado. Como é que você aprendeu a falar? Ouvindo o outro. Não tem professor para aprender a falar. A coisa mais complexa que pode existir é ensinar uma pessoa a falar. Não existe professor para isso. Quando tem, atrapalha pra dedéu. Entra um professor para ensinar a falar, puta, fodeu, o cara vai falar tudo esquisito. Todo mundo vai aprender a falar e não precisa de professor para isso.
100canais – E sobre a polêmica entre Gil, artistas, direitos autorais…
Claudio Prado – Claro, pelo amor de Deus, essa é a grande polêmica! Gil está ou não está contra o artista ganhar dinheiro? Bela polêmica para o espaço de cultura digital no Conversê! Será que Gilberto Gil é um cara contra o artista? É isso que estão dizendo aí. A mídia está dizendo isso aí. É isso mesmo? “Bora lá” discutir o que é direito autoral. Para que serve essa porra? Cadê o artista que ganha dinheiro com direito autoral? Quantos são? 12? Um deles é Gilberto Gil. Por que ele é contra isso? O que está acontecendo? O que acontece com o artista mesmo, esse da rua, que não ganha nada com direito autoral, que nunca nem ouviu falar disso? Onde ele vai ganhar a vida? Não é uma mesa, é uma conversa, uma discussão. Polemizar. Não vamos chegar a respostas. Não é esse o objetivo em nossa discussão no Conversê. O objetivo é levantar polêmicas. E apontar direções e caminhos e consistências com relação ao que tem que ser feito daqui para frente dentro desse universo que a gente chama de cultura digital.
100canais – É abrir novas formas e espaços para discussões que não têm espaço?
Claudio Prado – Não tem espaço em lugar nenhum, porque as pessoas vêm pra cá, para as mesas, já com seus discursos feitinhos. O cara vem aqui expor o que ele já expôs, basta ler o que ele escreveu. Eu quero a reflexão do cara, eu quero que ele seja provocado por um moleque de rua que vá dizer pra ele: “que porra é essa que você tá falando que eu não entendi nada?! Traduz isso pra ‘mim’ entender”. E aí ele vai ter que se virar, como é que ele faz? Geralmente quando o povo está movido pela doença da academia, vem com o academicês, vem com o economicês, vem com o socialês, com o juridiquês, porque aí só os pares entendem.
100canais – Há um outro tema a ser falado que é a governança na internet.
Claudio Prado – A governança na internet é um tema central que eu quero discutir e que terá sua reunião da ONU logo em seguida da TEIA, entre os dias 12 e 15 de novembro. Nós queremos trazer agentes que estão envolvidos na discussão da governança na internet para discutir essas questões dentro da TEIA, para que as pessoas comecem a entender o que está por trás dessa questão. Por que a internet existe sem governança num mundo onde a governança sempre foi uma das centralidades? Por que a internet escapou dos processos regulatórios até agora e por que está se correndo atrás de regular a Internet, na contramão da sua existência, retroativamente. Eu, pessoalmente, já para polemizar, acho que não é possível regular a internet e nem há interesse nisso. E, no entanto, os governos do mundo todo se reúnem durante três dias, uma vez por ano, durante cinco anos, gastando uma baba de dinheiro, para discutir uma coisa que não tem nem como, que não há instância. A internet é uma questão transnacional, como a ecologia. Como a ecologia vai ser resolvida? Tem que ter uma instância transnacional com poder. A ONU não tem esse poder. E a ONU é que discute a governança na internet. A ONU, na verdade, não é transnacional, se dá a partir de acordos bilaterais ou multilaterais e, portanto, consenso. Como você vai trazer consenso para regular quando as pessoas não têm nem compreensão nem consciência do que é a Internet? Quais são os elementos? O que é segurança nesse mundo digital? O que é privacidade nesse mundo digital? Por que ter privacidade, por que ter segurança num mundo em que essas coisas estão cada vez mais complicadas e mais difíceis. O que é – de novo, caindo na questão da educação – o que é, na Internet, ruim ou bom? É bom poder saber de tudo ou tem as suas proibições? Quem é o agente proibidor de certos assuntos? Por que sexo não pode ser objeto livre e aberto na internet? Ruim ou bom a sala de bate-papo? Por que na sala de bate-papo o assunto é predominantemente sexo? Gilberto Gil disse semana passada, no Massachussets Institute for Technology (MIT), um dos templos da tecnologia americana, um dos templos visionários das possibilidades da tecnologia, que a internet é, em primeiro lugar, um espaço onde as pessoas podem se encontrar para sexo. Em segundo lugar, para ampliar o campo das relações afetivas. E, em terceiro lugar, para se informar. Isso não é uma interpretação, isso é fato na internet. E ele disse que isso é bom, no sentido de que finalmente a máquina entra no domínio do humano. Existe um pós-humano na máquina. Existe uma nova possibilidade da máquina operar no campo da afetividade, ser veículo da afetividade, do sexo e da informação. E que isso tudo é muito bom. Belo assunto polêmico a se discutir no Conversê.
Publicado originalmente em TEIA – TUDO DE TODOS
Guilherme Varella – 100canais
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