Cultivar a memória é um ato de cidadania. Conhecer o passado, a partir de diversos pontos de vista, é um direito de todos nós. E também um dever. O Estado deve valorizar todas as formas de preservação e memória, tornando-a viva e presente em nosso cotidiano, auxiliando na constituição de um novo mito fundador, pertencente ao conjunto da população brasileira.

Através da memória se constitui a identidade, o homem “sabe” quem é por outras referências a sua volta. Preservar a memória é uma forma de possibilitar que outras pessoas tenham acesso a informações que serão extremamente importantes para a construção de suas identidades. Não quer dizer que irá se constituir uma identidade fixa com referências estabelecidas, mas sim contribuir com o processo de construção de cada sujeito através da identificação com as memórias preservadas contextualizando com o presente na expectativa de um determinado futuro.

O que reside na máxima “importância da preservação e memória dos nossos bens culturais”, qual é esse grau de importância, o que isso realmente quer dizer sobre, a partir e para a sociedade?

Esse significado guarda tais idiossincrasias. Quer dizer daquilo que é fundamental, porque pertence ao nosso mito fundador, ao conjunto de nosso símbolos existentes, e também porque sobretudo isso nos dá identidade, nos situa, nos localiza. Isso em tempos de globalização, quer dizer desafogamento, respiro, pausa. Em toda pausa, está guardada a próxima ação, já dizia um poeta do movimento dançado. Assim, se faz na memória das coisas: algo que já foi, diz sobre o que é, o que está; nos dá, pelo frescor de algum tipo de reconhecimento (já vi isso em algum lugar!) e identificação (sabe que já pensei isso um dia!), a doce noção de quem somos agora. O tempo, para a memória, não é linear, continuado. É, por assim dizer, em saltos de reconhecimento simbólico. Assim, se não estocamos devidamente nem acessamos nossa memória viva, como dizer onde estamos!

Ainda, pergunta-se: como tecer a teia da cultura se não sabemos o que une os pontos? A memória, de outro modo, é capaz de tecer, entrever, relacionar, se posta a ver e não permanecer escondida ou oculta, por mero devaneio do poder ou pela ausência do poder fundador. Possibilitar projetos que se ocupem da memória é tornar visível nossas estratégias de nos relacionar em sociedade, é abrir a caixa de pandora, mas não de maneira caótica, mas de maneira poética, mas não assim inconsequentemente, mas justamente sabendo cada passo, cada movimento, cada consequência. A quem possa assistir, aqui vale uma referência dançada: “Aquilo de que somos feitos” (2001), Lia Rodrigues, e ainda tantos outros coreógrafos.

Falar de memória é performar nossa vida; assim se fazem os atos de fala (Austin) quando performamos a vida. O segundo aspecto que gostaria de ressaltar sobre a memória é justamente referente a performance da vida: a ordem da cidadania. Porque direitos e deveres são vida, e não aspectos dados a ela. É modo operante, é forma de vida (Agamben). Assim, viver não se limita àquilo que é inerente ou “de qualquer maneira, se vive”, mas sim “só se vive se…”, daí respondemos, direitos e deveres forem postos à mesa, e quem os coloca é a memória, porque só ela é capaz de afirmar que dança é sempre dança, aquele prédio é aquele prédio, e não nos permite esquecer. Não nos é dada a chance de esquecer. Performar para não esquecer, cidadania para não esquecer da vida. A oportunidade de lembrar se torna imprescindível. Ao performar a vida, a memória nos torna responsavéis. Assim, o que afirma-se ser uma ato de cidadania é, de fato, um ato da vida. A memória não é um luxo.

Há dois tipos de amnésia: a retrógrada e a anterógrada. A retrógrada é aquela mais conhecida popularmente, caracterizada pela incapacidade de lembrar fatos anteriores ao trauma que a causou, os fatos antigos. A anterógrada é aquela parecida com a apresentada no filme Memento e caracteriza-se pela incapacidade de lembrar de fatos recentes, posteriores ao trauma, enquanto as lembranças anteriores, os fatos antigos permanecem intactos. Desesperadamente intactos.

Acho que primeiro precisamos identificar o trauma. Qual é o problema da memória brasileira? Quando aconteceu o trauma e qual foi a causa?

Depois, precisamos especificar o tipo de amnésia. Quando eu ouço o termo “mito fundador” associo à amnésia retrógrada imediatamente. E associo todos os projetos de restauração e preservação feitos pelo Estado à tentativas de curar esse tipo de esquecimento. Mas e a memória recente? Será que ela anda boa? Não seria a memória recente tão importante quanto a antiga na constituição da identidade? Assim como no filme Memento, driblar a amninésia anterógrada não poderia ser uma alternativa para alcançar o mito fundador e revisá-lo?

Quanto mais estruturados e desenvolvidos os espaços, museus, livros, acervos, mídias e afins que prezam por manter viva a história cultural da sociedade maior é o reconhecimento que essa tem por eles. Alguns chegam a ser conhecidos mundialmente e tem a capacidade de auxiliar em pesquisas nas mais diversas áreas. São ferramentas essenciais para o conhecimento do passado, principalmente quando tem nele seu foco, servindo apenas como instrumento, tendo a neutralidade como base e interferindo o menos possível na construção de idéias do seu público, deixando para que este sim a partir das informações obtidas crie faça sua conclusão desenvolva seu ponto de vista.

Tornar a população mais consciente é benéfico em qualquer aspecto. Mas as vezes esse processo acontece de forma natural. Percebemos esse movimento dentro de manifestações religiosas, que por fazerem parte do cotidiano de algumas pessoas misturam-se com a sua história, com a sua cultura e com a sua vida, que são mantidas e repassadas pois dentro de muitas religiões manter a tradição é quase que um dogma. Ou nas sociedades com tradição oral, que transmitem o conhecimento através de histórias ou músicas que são passadas de uma geração para outra.

Talvez o mito fundador esteja vivo dentro desse conjunto da população brasileira e o necessário seja somente despertá-lo.

* texto colaborativo, desenvolvido pelos membros da rede O Poder da Cultura. Coautores: Wagner Ferraz (Porto Alegre-RS), Nirvana Marinho e Badah (São Paulo-SP) e Kika Pereira (Brasília-DF).


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

8Comentários

  • silvia livi, 23 de agosto de 2010 @ 10:07 Reply

    Esse equilíbrio no preservar o antigo e propiciar que o novo também possa se manter, aqui e agora parece estar a perigo. A natureza digital de muito que se desenvolve, desde os convites para exposições até textos como este, dizem, vai criar uma lacuna.
    Sei que o MARGS mantém, cuidadosamente, pastas com o material impresso, o qual estaria sendo digitalizado. Mas, quando perguntei se havia algo no sentido de preservar o material digital acho que nem entenderam.
    A Bienal B original, por exemplo, foi um extraordinário evento, com centenas de artistas. O que sobrou de registro? O que estava no site, em minha opinião, é muito importante. Se a Bienal B se mantiver (este ano será a terceira) onde recolher as origens do evento?

  • Toninho Carrasqueira, 23 de agosto de 2010 @ 13:33 Reply

    A lucidez desse texto me faz pensar na programação de nossas emissoras de rádio e TV .
    Onde está a música de Ernesto Nazareth, ( segundo Villa-Lobos o melhor tradutor da alma brasileira ) do próprio Villa, ( que só conhecemos de nome, ou pela ária da Bachiana Brasileira de No. 5 ) .
    Onde estão Pixinguinha, Callado, Patápio, Tom Jobim, Hermeto, Egberto, Guinga ? Camargo Guarnieri, Astor Piazzolla, Alberto Ginastera, Leo Brouwer, onde estão ? Sem falar de J.S.Bach, W.A.Mozart, Beethoven, Brahms, Schubert, Debussy, Stravinsky, Bela Bartok e outros compositores e intérpretes que construiram um dos maiores patrimônios da história da humanidade.
    Parabéns pelo texto, grande abraço,
    Toninho Carrasqueira

    • marisa, 11 de novembro de 2010 @ 18:55 Reply

      Toninho Carrasqueira, 'faço minhas as tuas palavras'. Perfeito.
      Gostaríamos de entrar em contato contigo, por conta de um livro que pretendemos lançar em dezembro deste ano, sobre a história do Jingle.
      Falo na primeira pessoa do plural pois o pesquisador é Paulo Cezar, meu esposo.
      Email para contato: paulo.goulart@a9editora.com.br
      abraços,
      Marisa

  • Pedro Luiz Coelho Araujo, 23 de agosto de 2010 @ 16:29 Reply

    Congratulações a lúcida abordagem da matéria; destacaria na mesma linha a desidentificação que certas abordagens do sistema consumista “qualifica” como experiência cidadã. Plagio do vazio referencial de memória identitária, vide completa desvirtuação estrutural no cultivo de nossa gênese para pesquisa patrimonial neste mito fundador. Saudações!

  • sergiocenturióncentu, 24 de agosto de 2010 @ 9:40 Reply

    Respondendo a sua pergunta <<Acho que primeiro precisamos identificar o trauma. Qual é o problema da memória brasileira? Quando aconteceu o trauma e qual foi à causa? >>>>, feita no seu ensaio.
    Diria sem outro assunto que o trauma aconteceu com a vinda dos Portugueses a o que hoje é o Brasil e que simplesmente estupro e matou crianças e mulheres índias indefessas, logo robô o território e o ouro destruíram a língua e cultura indígena, depois trouxe os africanos em situação de escravidão e pra finalizar a atual nação Brasileira que também comporta 40% de analfabetos tem no Senado um grupo de pessoas discutindo se os Índios e Negros poderiam se formar em alguma faculdade; Então, como é que o Brasil poderá ter memória se não tem conseguido ainda depois de 500 anos fazer um acordo digno com seus habitantes, os quais só são cidadãos na hora de pagar os impostos.
    Devo acrescentar que a identidade de uma Nação passa por igualar em valor todas as expressões culturais, nas artes, na língua, nos ritos e sobre todo o respeito irrestrito das raízes desde onde ela se ergueu, por tal razão, nunca poderão ter memória os povos enfraquecidos pela mídia desgovernada, fatalista, e imoral que coloca nos domicílios programas com conteúdo deformante desrespeitando ate o próprio idioma que ostenta.
    Parabéns pelo sei ensaio, vale a pena abrir um email e ver essa discussão que o Senhor coloca.
    Sucesso no seu intento!
    Sergio Centurión Centurión

  • Leonardo Brant, 24 de agosto de 2010 @ 13:52 Reply

    Estou lendo (tardiamente, diga-se) o excelente "A cultura e seu contrário", de Teixeira Coelho. Ele se refere a Eric Hobsbawn para fazer uma crítica das políticas baseadas nas tradições. "Transformadas em coisas mais antigos do que de fato são ou simplesmente inventadas de cabo a rabo, essas tradições apresentam-se sempre como uma estratégia do poder (político, religioso, cultural) para manter-se e justificar-se ao inculcar valores que suportamente se repetem (que são valores porque se repetem e que se repetem porque são valores) e que alegadamente estabelecem uma continuidade com o passado (imaginado, mais que imaginário) que, por algum motivo, interessa a esse poder." Abs, LB

  • Carlos Henrique Machado, 24 de agosto de 2010 @ 15:11 Reply

    Não há um indicador claro que nos dê algo que possamos mensurar uma posição depressiva na memória afetiva que é o principal objeto da nossa fantasia inconsciente. Não creio que haja campo para a ampliação ou um novo estatuto que estabeleça limites na vida psíquica da cultura de um povo. O que há de profundamente primitivo não está na memória do povo, ao contrário, está na formação de uma pedagogia ficcional baseada em um superego comportamental imposto por uma série de distúrbios institucionais vindos das nossas tradições oligárquicas.

    Com a necessidade de simbolizar seus próprios brasões as classes dominantes, as oligarquias como mantenedoras do comando e do pensamento único é que nos trouxeram uma cartola furada e uma bengala quebrada. Este é o grande objeto interno de uma necessária discussão, o quanto essa estrutura de “consciência universal” imposta pelas classes dominantes não consegue instaurar uma relação mediada pelo indivíduo e sua cultura no campo institucional.

    O que há de fato é um choque de metodologias. Todos os dias e de forma bastante precoce e com uma organização extremamente sofisticada, o cidadão comum se relaciona com a sua realidade de forma represenativa. Com isso são geradas as dinâmicas e as novas maneiras de experimentar o mundo, e isso é a raiz da nossa tradição, da nossa memória afetiva que, ao contrário do sistema téórico e do conceito introduzido pela instituição fundada no sentido de manter ou restaurar poderes dominantes, essa tradição constituida na memória afetiva de um povo é que sustenta, como bem disse o Maestro Camargo Guarnieri, “o fio invisível” que inclusive liga uma arte a outra e que muitos preferem chamar de “espírito do tempo”.

  • @nathUEEsp, 26 de agosto de 2010 @ 11:55 Reply

    Um questionamento que me pega nesse texto é sobre nossa memória recente. É necessário o resgate da história, buscar as relações economicas, políticas e sociais que influenciaram na constituição de um povo, é isso que nos dará base para compreensão e apontamento de alternativas na busca de uma sociedade mais justa, um povo conhecedor de suas raízes na construção do seu futuro. Difícil mesmo é como fazer o povo se apropriar de sua história e tornar-se ator na construção da mesma.
    Falamos de iniciativas públicas que promovam isso, de equipamentos como museus, centros culturais etc….Mas o principal equipamento que é a escola não constrói essa busca, não discute a história como elemento vivo e mutante, coloca a história como fato dado, passado e sem ligação com o futuro.
    No atual momento muito se fala em democracia por conta do período eleitoral,a necessidade do voto, mas pergunto eu, quantos brasileiros sabem da história recente dos últimos 25 anos de redemocratização do nosso país? Quantos brasileiros valorizam a pluralidade partidária que por um longo período não existiu em nosso país? Digo mais, mesmo com pluralidade partidária, poucos participam de partidos políticos que ainda é a principal via de participação democrática.
    Compreender a história recente é entender que mesmo nova a liberdade democrática em nosso país, já nasce velha, mesmo com apenas 25 anos, é uma democracia que esse povo não conhecedor de sua história pouco se identifica e participa.
    Só existe participação quando há identificação, e a identificação está relacionada com a apropriação da história, história enquanto elemento vivo passível de modificações por quem a constrói. A história de um país deve ser construída pelo seu povo, apoderado do conhecimento de sua constituição cultural, um povo oprimido pela busca de sua subsistência que não discute nem seu subprefeito, seu meio de transporte ou o padre da igreja, pouco se sente protagonista na construção de sua história.
    Fora isso, o que resta mesmo é a passagem de tradições e conhecimento popular através da oralidade, afinal como minha avó dizia: "onde come 1, come 2,3…." ou então " aumenta a água do feijão porque vem mais gente pro almoço" .É ou não é um pensamento contra hegemônico ao individualismo? Sabedoria popular meu povo.

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