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A discussão sobre a relevância cultural é antiga. Remonta o período de implementação da Lei Rouanet, no início da década de 90. Foi longa a batalha de artistas e produtores àquela época, para sustentar e manter o direito à isonomia e à autonomia de todos dedicados ao duro, complexo e pouco reconhecido ofício da cultura. Mas quando pensamos que alguns assuntos já foram superados e finalmente avançaremos para uma visão mais contemporânea e republicana das políticas públicas de cultura, somos surpreendidos por uma solapada de efeitos desastrosos, como é o caso da proposta do MinC para a reforma da Lei Rouanet. Comecemos pelo artigo 32:

Art. 32. Os projetos passarão por um sistema de avaliação que contemplará a relevância cultural e aspectos técnicos e orçamentários, baseado em critérios objetivos, transparentes e que nortearão o processo seletivo.
§ 1º Os critérios de avaliação serão aprovados pelo Conafic, com a colaboração dos Comitês Gestores, e publicados até noventa dias antes do início do processo seletivo.

Amparado por um capital político inédito, fruto da popularidade de Gilberto Gil e de avanços incontestes nas áreas do audiovisual (mesmo considerando a derrocada do projeto Ancinav), do Cultura Viva e do apoio às culturas populares, o MinC ultrapassou, no caso de Lei Rouanet, o limite do poder e do papel do Estado em relação ao mercado. Permitimos que o governo ultrapasse a linha da democracia para agir no mais importante mecanismo de financiamento à cultura do país.

O gabinete do Ministro se incumbe de escolher os projetos que mais lhe agradam no rol dos postulantes ao mecenato. Fez isso por decreto, por emperramento da máquina burocrática e agora quer fazer por Projeto de Lei. Lembro daquele famoso poema de Maiakovski, bem popular nos tempos da ditadura:

Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.

Será possível estabelecer critério técnico para avaliar a relevância cultural sobre qualquer produção cultural? Não estariam estes critérios a serviço de interesses políticos, ideológicos ou mesmo privados (quero lembrar que muitas vezes o Estado é tomado por interesses privados – seja de um grupo fechado que toma o poder, seja de financiadores de um sistema -, isso não é privilégio do mercado)? Será que precisamos criar hierarquias e categorias de culturas, sendo umas mais relevantes que outras? Quem, em nossa sociedade, teria o poder de julgar o que mais ou menos relevante?

Se ao menos pudéssemos nós, da sociedade civil, julgar a relevância cultural de quem assume o Ministério da Cultura, talvez pudéssemos ceder a ele tal competência, embora saibamos que o espírito republicano mais elevado costuma negar tal prerrogativa, por saber que o pior fascista é aquele que mora dentro de nós, como costumava dizer Foucault.

Quero lembrar aos prezados leitores e leitoras que teremos eleições presidenciais ano que vem. Estaremos, com isso, dando carta branca ao próximo governante, da esquerda, do centro ou da direita, afetada ou moderada, o direito de produzir e escolher a cultura que mais lhe agrada. E isso afeta toda a democracia, sobretudo a dos nossos filhos.


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

11Comentários

  • Cybele Fiorotti, 23 de março de 2009 @ 11:07 Reply

    Caro Leonardo, estamos vendo a Cultura ser direcionada para interesses políticos. Isto se deve ao pensamento instalado pelo atual partido que governa o país. Mesmo que o foco seja não discutir política, não podemos relevar e não entender como funciona desde os anos 90 o pensamento dos que hoje estão no poder.

    Portanto, a discussão deveria em primeiro lugar focar sobre o pensamento político da atual e das possíveis siglas que têm possibilidade de chegar ao poder. Aí sim, determinar a ação que criará a discussão e não aceitação do que fere a liberdade de acesso à criação cultural.

    A cultura é mola transformadora e seu poder de influência pode mudar a trajetória do pensamento humano, isso não é redundância. Portanto, não pode ser tratada como um subproduto à mercê de interesses diversos.

    Um grande abraço,

    Cybele Fiorotti

  • Aguinaldo Silva Filho, 23 de março de 2009 @ 12:34 Reply

    Estou preocupado, no molde que esta a proposta, se aprovada, no futuro apenas os amigos do Rei terão seus projetos aprovados visto serem de “Relevância Cultural”.

  • Marco Antonio Moretti, 23 de março de 2009 @ 13:18 Reply

    É isso aí, sua última frase falou tudo e praticamente obsoletou todo seu texto e boa parte do que é dito neste site há tanto tempo. Seja na cultura, na economia, nas comunicações, as eleições supostamente democráticas dão aval aos governantes eleitos para escolherem seus administradores.

    Mas ok, sabemos que isso não vai calar os ávidos leitores deste site, então lembremos do fundamental: não adianta discutir sem lermos o conteúdo da proposta na íntegra. Aguardemos.

  • Carlos Henrique Machado Freitas, 23 de março de 2009 @ 19:30 Reply

    Cybele
    Você tem razão. Essa questão da política, das siglas é um perigo. Tenho certeza que você fala isso inspirada na demissão política do maestro Neschling pelo presidente de honra da OSESP e do PSDB, FHC, e também ex-presidente da república pelo PSDB que, por sua vez, é coligado com o Dem de Gilberto Kassab, este que gerou essa notícia aqui no Cultura e Mercado.
    “Projeto de Lei de Kassab exclui setor de cultura do Plano Diretor”.

    Enfim, temos que ficar bem atentos com as políticas culturais seletivas, mas, sobretudo com as críticas também seletivas das siglas.

    Como você bem disse, a partidarização no meio cultural é um verdadeiro desastre, tanto para os tocam as políticas públicas quanto para os que as criticam.

  • siegurd dunce, 23 de março de 2009 @ 21:22 Reply

    O Ministério da Cultura divulga a proposta da nova Lei de Fomento e Incentivo à Cultura, que substituirá a lei 8.313/91, ficando o mesmo em consulta pública por 45 dias , e o PENSARTE assume “a lei Rouanet é nossa” ! (de quem, específicamente, tenho dúvidas. Se puder dar nome aos agraciados, será uma ajuda). Acena para PROVOCAÇÕES e CONSTRUÇÃO de DEBATE PÚBLICO ??!?
    Não seria mais objetivo enviar seus comentários diretamente aos coletores das consultas públicas?

    Como usuário de primeira hora do incentivo (lei Sarney-7505/86), me impressiona como se consegue ,hoje em dia,transformar um projeto de estímulo e fomento à cultura, em um grande espetáculo mais para circense que legislativo.

    O que é relevante :
    “capital político inédito” ?
    “construir debate público” ??
    “visão mais contemporânea e republicana” ???
    “estado tomado por interesses privados” (sic)
    “ballet clássico ou rap ”

    Estão produzindo uma geléia real onde auto proclamados agentes culturais liberam seus egos, navegam suas convicções políticas e ideológicas , como se detentores fossem dos direitos do que deve e não deve a lei (“democráticamente”) conter.

    É melhor primeiro o ilustre bloguista Leonardo Brant explicar o que deve ser , na leitura dele, entendido “por visão mais contemporânea e republicana” para depois o leitor cidadão comum inserir no contexto
    o que é ou deixa de ser relevante.

    Se relevante é a política pública desvinculada dos interesses privados, para que refazer esta lei de incentivos ? O Estado(esse que aí está) assume e faz o que deve ser feito.
    Ahh, que saudades de Francisco Welffort …

  • siegurd dunce, 23 de março de 2009 @ 21:31 Reply

    Jogar limpo é como entender uma verdade.
    Sempre haverá 3 versões : a minha , a sua , e a verdadeira.

  • Sandra Mara, 24 de março de 2009 @ 7:41 Reply

    Caros, primeiramente deixemos de ser arrogantes, exigentes e hipócritas a ponto de acharmos que poderíamos “ceder” a competência ao Ministério da Cultura e ao seu governante se tívéssemos essa chance. O “ceder” não é de nossa competência, não há nexo um Ministro estar lá, tendo autonomia e ser governado pela classe artística que julga isso ou aquilo, deferindo, pois sabemos que se qualquer um de nós estivéssemos na administração, também faríamos mênção de projetos que nos agradariam mais e puxaríamos “sardinha” para o nosso lado, ou é mentira?. Ou vocês acham que todos os projetos deveriam ser aprovados sem distinção alguma ou avaliação, ou dar para um “zé mané mal educado e arrogante” qualquer o direito de usar a máquina financeira e propulsora para apresentar um grande projeto, principalmente se ele não for merecedor da causa? Alguns merecem e outros não, mesmo sendo os maiores profissionais, essa é a verdade. Não quero defender o MinC, as propostas dos governantes ou mesmo a classe artística. Quero neutralidade, por isso sugeri que deixemos de lado a hipocrisia e a arrogância, o espírito orgulhoso, de enfrentamento. O MinC está incorreto e a classe artística também. Eu teria muitas coisas a falar ainda e se eu fosse uma autoridade, verificaria no projeto quem são os integrantes do mesmo e você faria o mesmo, exigindo nomes, para amanhã não levar uma facada pelas costas, porque o ser humano nunca está satisfeito com nada, sempre quer mais e mais, portanto ele merece por aquilo que é e que faz. Deixemos então de lado a petulância, o orgulho e o “querer enfrentar” e depois sermos humildes para estudar uma forma audaciosa, inteligente e menos violenta de solicitar os benefícios a todos, abandonando assim a hipocrisia. Ministro algum administrará 100% como deveria ou como vocês desejam, porque além da máquina influenciadora, está na alma e no espírito dos arrogantes uma porção maior. Mesmo assim ele deveria pedir sabedoria do alto para não dar o benefício aos arrogantes que pensam que são maiores que os outros.
    Os talentosos, capacitados e humildes é que merecem. Estes sim deveriam obter ajuda constante para crescerem. E se no futuro perderem sua posição de humildade, que se tire também sua porção.
    Portanto sejam justos e honestos. Organizem a mesa, os debates, dêem continuidade aos trabalhos, mas não esqueçam a humildade. Ela deverá ser a primeira convidada. Que Deus os abençoe. Sandra Mara

  • Lucas Mandira, 24 de março de 2009 @ 7:46 Reply

    Quando os políticos tomam decisões e modificam o conteúdo de leis podemos imaginar quais são suas aspirações, e elas não são para o futuro da cultura nacional, mas para o destino da cultura política.

  • Fernando Guimarães, 24 de março de 2009 @ 7:50 Reply

    É isso aí, Sandra. Você está certíssima! Não citou nomes e generalizou. Parabéns pela exposição de suas palavras, foram transparentes e corajosas. Se um dia você for eleita ao cargo, eu serei o primeiro a lhe dar o meu apoio. Espero que não deletem o seu comentário, mas sejam transparentes com todos também, deixando sua opinião registrada, só assim o país poderá crescer. Grande abraço. Fernando Guimarães.

  • Fernando Guimarães, 24 de março de 2009 @ 7:52 Reply

    ahahah….por que não deixaram o comentário da Sandra? Estão com medo do que?

  • Leonardo Brant, 27 de março de 2009 @ 18:12 Reply

    Acabo de ser alertado pelo Afonso Borges, do excelente Sempre Um Papo, que o poema acima não é da Maiakowski. Chama-se “Um Passeio com Maiakóvski” e é do Eduardo Alves Costa. Eu já tinha ouvido falar nisso, mas não dei o devido crédito. Transcrevo aqui algumas informações sobre o Eduardo e o poema, enviado pelo próprio Borges:

    “Eduardo Alves da Costa (Niterói RJ 1936) concluiu o curso de Direito na Universidade Mackenzie em 1952, em São Paulo SP. Por volta de 1960 organizou as Noites de Poesia, no Teatro Arena, em São Paulo. Participou no movimento dos Novíssimos, da Massao Ohno, em 1962. Entre 1962 e 1989 publicou a novela Fátima e o Velho, o romance Chongas e o livro de contos A Sala do Jogo. Recebeu, em 1978, o prêmio Anchieta de Teatro para a peça As Campainhas. Em 1994 foi lançado seu livro juvenil Memórias de um Assoviador. Entre 1996 e 1998 foi cronista do jornal paulistano Diário Popular. Seu único livro de poesia, No caminho, com Maiakóvski, foi publicado em 1985. Sobre sua obra, a crítica Elvira Foeppel afirmou: ‘Eduardo Alves da Costa, em direção à originalidade, implica em experiências mais difíceis abandonando todavia o itinerário do cerebral que constrói seu mundo poético frio e asséptico, árido e imperfeito. Há certa obediência em seu roteiro lírico, os recursos literários são medidos, de um coeso inovador. O verso elástico e descritivo em explosões sem rima, sem fórmulas métricas, o predispõe ao caminho da prosa.’.”

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