Será que existe uma função pública para a arte? O artista é meio ou objeto de políticas de financiamento, fomento e incentivo? Por que a arte deve ser motivo de ação político-programática do Estado? Qual a diferença entre política para as artes e política cultural? Existe (ou deve existir) um papel social para o artista? Que papel seria este? Fala-se em uma política nacional para as artes, mas como podemos pensar em uma política dessa magnitude considerando as artes somente pelo paradigma meramente economômico!? Ou meramente social (no sentido assistencialista, da contrapartida social)? Pior ainda, quais os riscos envolvidos com a anunciada interferência do governo em nossos referenciais estéticos, já tão restritos pela subordinação da arte ao mercado?
Arte é geralmente entendida como a atividade humana ligada a manifestações de ordem estética, desenvolvida por artistas. A partir de percepção, emoções e idéias, a arte geralmente estimula essas instâncias de consciência em outras pessoas.
Numa acepção mais contemporânea, poderíamos atribuir à arte a propriedade de ser a única instância de nossa expressão capaz de dar forma às utopias, relacionando-as com os nossos modos de vida. Dessa forma, não seria tolice afirmar que o controle das utopias estaria nas mãos de quem tem o poder de atribuir valor à arte. Devemos nos preocupar quando o mercado assume essa função e determina um código moral (do consumo) para a arte. Assim como precisamos estar atentos aos movimentos governamentais que chamam para si essa prerrogativa, colocando a arte a serviço de um determinado projeto político-ideológico.
Nesse sentido, vale observar a evolução histórica do sentido de arte e relacioná-la com os sistemas de poder. Assim como Cultura, a definição de arte varia de acordo com a sociedade e a época. Ela muda conforme as necessidades de cada instância do processo civilizatório, que pode separar ou não a arte, como é entendida hoje no ocidente, do artesanato, da ciência, da religião e da técnica, no sentido tecnológico.
Para Raymond Williams, no indispensável “Palavras-chave”, da editora Boitempo, “o artista distingue-se não apenas do cientista e do tecnólogo – cada um deles teria sido chamado de artista em período anteriores -, mas do artesão, do artífice e do trabalhador especializado, que hoje são operários em termos de uma definição e de uma organização específicas do trabalho. Quando essas distinções práticas se fazem valer, num modo determinado de produção, arte e artista suscitam associações ainda mais gerais (e vagas) e propõem-se a expressar um interesse humano geral (isto é, não utilitário), ainda que, ironicamente, a maioria das obras de arte seja efetivamente tratada como mercadoria e a maioria dos artistas, ainda que com justiça afirmem intenções muito diferentes, seja efetivamente tratada como uma categoria de artesãos ou trabalhadores especializados independentes, que produzem certo tipo de mercadoria marginal.”
Além dssa subordinação ao mercado apontada por Williams, há ainda o risco da apropriação política. Teixeira Coelho complementa, refletindo sobre as políticas culturais para as artes: “embora de modo implícito, habitualmente as políticas culturais tendem a considerar como arte (ou, em todo caso, como a arte que lhes interessa fomentar), apenas aquelas manifestações que promovem uma certa idéia de civilização, que contribuem para o aprimoramento da cultura como um todo e das relações interindividuais e sociais em particular, segundo um determinado sistema de valores preestabelecido (socialismo, capitalismo, nacional-socialismo, populismo, cristianismo, islamismo, etc.). O conceito de arte-ação, exposto por Mário de Andrade, aponta nesse sentido ao recusar a ‘arte gratuita’, a arte que tem a ‘preocupação exclusiva com a beleza’. Contra esses modos artísticos, a proposta de arte-ação defendia uma arte baseada no ‘princípio da utilidade como cânone absoluto de nossa estética, uma arte que não recusasse sacrificar ‘as nossas [do artista] liberdades, as nossas veleidades e pretensõesinhas pessoais’, que do Brasil – recusasse o ‘folclore pelo folclore’ e o modificasse com as proposições da arte erudita, ‘uma arte que não se isolasse dos modos universais mais não os pudesse ser útil como instrumento de afirmação cultural’. Em princípio e em geral, essa é a arte que interessa às políticas culturais, em particular às apoiadas e subvencionadas pelo Estado.”
Coelho nos apresenta ainda alguns opositores desta concepção da palavra: “Hannah Arendt, por exemplo, é das que não aceitam a idéia de que a arte possa ter outra finalidade que não ela mesma. Quando uma obra de arte é vista como meio para alcançar-se outro fim, observa a filósofa, a natureza mesma do que é arte está sendo alternada e perdida – mesmo quando o objetivo for educacional ou de ‘aperfeiçoamento pessoal’.”
O autor do Dicionário Crítico de Política Cultural aponta “aquilo que, na expressão de André Malraux, se perde quando a arte é posta a serviço de uma ficção qualquer entendida como valor cultural, o que fica de fora quando se convoca a arte de promover esta ou aquela idéia de civilização, é seu valor de arte como arte. Em outras palavras, quando a arte se transforma em veículo de valores culturais, sejam quais forem, perde seu valor de uso e assume um valor de troca, como qualquer outra coisa ou bem (hoje se diz commodity) com trânsito no circuito social.”
Essas e outras questões poderão ser discutidas e comentadas tanto a partir do material reunido neste editorial, bem como nos artigos de Cris Arenas, que inaugura seu blog em Cultura e Mercado, levantando essa questão com o artista no centro da discussão. Artigos do Cleiton Paixão, Vitor Ortiz e Carlos Henrique tangenciam a questão, assim como o relato das experiências do Laboratório de Políticas Culturais por Badah.
Boa leitura!
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