Foto: Holly in Transito
Nossa recém-conquistada democracia ainda padece de reconhecimento dos mecanismos de participação,  representação e exercício de poder. Queremos um lugar digno para as artes e para a cultura, mas ainda não sabemos relacioná-los com o Estado em crise, o deusdará do mercado e uma realidade que inclui cidadãos sem direitos, congresso inoperante, judiciário indiferente e controle cada vez mais absuluto dos sistemas financeiro e midiático. Difícil reconhecer quem corrompe e quem é corrompido nessa areia movediça.

Talvez por forte influência de Walter Benjamin e Marshall McLuhan, acredito na arte como forma de libertação. E no artista (do pensador ao poeta) como cidadão dotado de capacidade inequívoca de elevar a sociedade a um patamar de conquista ética. Já não sei podemos nos referir a arte como referiam os dois em suas respectivas épocas, mas ainda vale-nos evocar seus ideias e, sobretudo, protegermo-nos dos riscos e suscetibilidades apontados pelos dois.

Da ameaça nazista à consolidação da “aldeia global”, a arte e os artistas continuam sofrendo sérias ameaças, como nos previne Joost Smiers em “Artes sob Pressão”. E com isso, comprometemos todo o processo civilizatório. Docilizados, afugentados e cooptados por sistemas de poder, distanciam-se de maneira preocupante do indispensável terreno fértil para pensar, denunciar, provocar e projetar mundos e utopias, distantes ou presentes.

Nosso sistema de financiamento às artes mostra-se cada vez mais frágil. Ainda enxergamos o artista como alguém que o Estado precisa proteger e manter. Não o vemos como instância de sustentação de toda a sociedade. Alguém com capacidade de re-significar nosso campo simbólico, liberando-nos a todos dessas mesmas amarras.

A serviço das instâncias de poder, seja Estado, corporação ou mesmo o próprio mercado das artes, o artista não só perde sua capacidade intrínseca de criar, construir, libertar e cooperar, como corre o risco de transformar-se num potente capataz desses sistemas. Por outro lado, pode e deve dialogar com todos eles, até mesmo para ampliar sua capacidade crítica e sua mobilidade por ambientes cada vez mais contaminados.

Democracia se faz com arte, já diz o bordão deste blog. O único despachante da arte é o artista, que pode e deve se valer de profissionais e assessores que garantam os seus direitos e a sua autonomia, indispensável para o exercício de sua função pública (e, porque não, privada).

Deve, por outro lado, agir com repúdio e desconfiança, quando algum governo (seja ele popular ou populista, democrata ou demagogo) pretender colocar-se como o despachante único e universal dos interesses dos artistas. Ao desautorizar a CNIC, minimizar e menosprezar o papel da justiça, obstruir o acesso aos processos admintrativos e exercer seu poder de escolha, veto e direcionamento político à arte e aos artistas que financia, o MinC distancia-se de maneira preocupante do Estado Democrático de Direito.

Vejo com muita desconfiança esses movimentos todos, forjados a partir da manipulação da opinião pública. Para o governo todos estão errados: os produtores são aproveitadores, as empresas oportunistas, os artistas privilegiados, os técnicos atravessadores. Todos são culpados por algo que não funciona única  e exclusivamente por má gestão e  incompetência do próprio governo. 

E todos que não conseguem acessar o instrumento, por ausência de Estado e mais incompetência governamental, aceitam de maneira passiva e inerte um discurso conveniente e demagógico, porém perigoso, sobretudo por não encontrar qualquer efetividade na prática dos gestores que proferem tais palavras mágicas.

Em vez de acreditar nessa conversa fiada, devemos lutar por menos impostos para as empresas culturais, asfixiadas pela inoperância, desleixo e inoperância do MinC; pelos investimentos prometidos via Mais Cultura, que aplica míseros 20% das verbas disponíveis para fazer frente ao mercado injusto e concentrador; por um pacote anti-crise, prometido para o fim de maio.

Por dignidade para artistas e agentes culturais de todo o Brasil, cansados da esquizofrênica distância entre o verbo e a verba.


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

5Comentários

  • Leonardo Brant, 14 de junho de 2009 @ 3:08 Reply

    A letra de “Rosebud”, de Lenine e Lula Quiroga:

    Dolores, dólares…

    O verbo saiu com os amigos
    pra bater um papo na esquina,
    A verba pagava as despesas,
    porque ela era tudo o que ele tinha.
    O verbo não soube explicar depois,
    porque foi que a verba sumiu.
    Nos braços de outras palavras
    o verbo afogou sua mágoa, e dormiu.

    Dolores e dólares…. rosebud

    O verbo gastou saliva,
    de tanto falar pro nada.
    A verba era fria e calada,
    mas ele sabia, lhe dava valor.
    O verbo tentou se matar em silêncio,
    e depois quando a verba chegou,
    era tarde demais
    o cádaver jazia,
    a verba caiu aos seus pés a chorar
    lágrimas de hipocrisia.

    rosebud, dolores e dolares…

  • Carlos Henrique Machado, 14 de junho de 2009 @ 18:47 Reply

    Nada de noo no front Leonardo.
    De 509 anos de história, praticamente 400 de escravidão, tem gente, e de bem que argumenta que vivemos uma democracia racial, e que as cotas seriam um erro para a nossa convivência pacífica e harmoniosa entre dominadores e dominados no campo institucional. Jaguncismo dos latifúndios matam à balde caboclos, colonos são expulsos e o fanfarrão-mor da Veja acha que os sem-terra são um bando de arruaceiros. E a nossa classe média burguesa pra riba adora o circo do indivíduo.

    O brasilismo estratégico para desestabilizar os desafetos foi forjado por aquela mídia que conhecemos. O castelo do DEM não apareceu da noite para o dia…

  • Marcia Barboza, 15 de junho de 2009 @ 10:21 Reply

    Depois de criadas as leis de incentivo e diversos editais institucionais, estas se tornaram quase que exclusivamente as únicas vias de produção do trabalho do artista… ficamos dependentes destes processos desde então. Pode ser que a discussão da Rouanet nos faça pensar em alternativas, ou nos resta a proteção do Estado como diz Leonardo Brant, esperando para disputar o FNC!

  • Cris Arenas, 15 de junho de 2009 @ 10:41 Reply

    Por mais dignidade para os artistas que as vezes para sobreviver se submetem ao jogo de quem pode mais!!! e sim a criatividade fica prejudicada pois se faz cada vez mais algo que “agrada” e não é transformador … e a arte perde o poder de renovar os padrões de pensamento sobre a humanadade e sobre o mundo!
    mas quem perde mais? ao meu ver é a sociedade em geral que está fora desta discussão.

  • João Drummond, 17 de junho de 2009 @ 18:35 Reply

    O modelo de gestão publica que temos a serviço mais parece o ENIAC.
    (Quem não se lembra do bisavô do computador?).
    Se consome em sua inoperancia e incompetencia e deixa o cidadão contribuinte com mais um fardo alem dos habituais, produzir arte e cultura como lhe for possivel e ao Deus dará. A classe de artistas e gestores culturais está tão descrente da ação dos agentes publicos na promoção da cultura e da arte que chega a sentir um alivio quando estes não atrapalham os projetos. A melhor ajuda que os nossos governantes conseguem dar para a cultura é não atrapalhar.
    Não se tocam os ####### que cultura é o oxigêncio do pulmão social.
    Gaste-se fortunas para se tratar doenças sociais que poderiam ser curadas com o unguento eficaz e barato da cultura e da arte.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *