A constitucionalidade do mecanismo da cota de tela que está sendo avaliada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) foi debatida na audiência pública na última terça-feira (8/4), na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, solicitada pelo deputado Stepan Nercessian à presidente da Comissão, a deputada Alice Portugal.

Para expor seus pontos de vistas, estiveram presentes: a Ancine, representada pelo diretor-presidente Manoel Rangel; a Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Difusão Cultural e Artística nos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, representada pelo diretor de assuntos profissionais, Jorge Ivan Barcelos; o Sindicato Interestadual da Indústria do Audiovisual do Rio de Janeiro, representado pelo responsável do setor jurídico, Cláudio Lins de Vasconcelos; e representando a classe cinematográfica brasileira, o cineasta e produtor Luiz Carlos Barreto.

A audiência se caracterizou como uma verdadeira disputa preliminar da discussão constitucional sobre o mecanismo da cota de tela que está sendo conduzido pelo STF. Como uma disputa entre pontos de vistas antagonistas, os representantes a favor da cota de tela vieram, mas infelizmente os representantes do Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas do Estado do Rio Grande do Sul não compareceram e, assim, neste primeiro embate perderam sem entrarem em campo.

Antes das falas dos convidados, o deputado Stepan Nercessian destacou os principais motivos para audiência: primeiro, que neste instante tem uma ação contra a cota de tela no STF para ser julgada sobre a sua constitucionalidade; segundo, que a cota de tela não é uma questão atual, mas histórica para o cinema brasileiro; terceiro, que existe uma co-dependência entre produtores, distribuidores e exibidores quando se trata sobre a cota de tela do cinema nacional.

Manoel Rangel apontou que o tema da cota de tela surge historicamente como tema internacional. Quando os Estados Unidos, na década de 1910, criaram um limitador para os filmes estrangeiros, visando especialmente os fortes concorrentes franceses. Passando do cinema para a televisão, os Estados Unidos também decidiram que não poderiam veicular mais de 30% dos produtos feitos pelas próprias emissoras, tendo que 70% fossem de produtoras independentes. Assim, para o diretor-presidente da Ancine, quando se pensa as políticas de audiovisual, deve se pensar a condições para defesa do patrimônio cultural nacional.

A cota de tela é um instrumento de proteção da cultura cinematográfica brasileira. A Inglaterra foi a primeira em 1927, o Brasil em 1930. Ambos buscavam seu espaço nas salas de cinema. Sob o ponto de vista econômico, da cultura e da democracia, podem os distribuidores tomarem a decisão de impedir o povo brasileiro de ter acesso aos filmes brasileiros? Em momento algum da história o Estado definiu qual filme deveria passar, mas somente o percentual ou a quantidade de filmes que deveria exibir.

Nos dias atuais, isso se refere a um universo de três a 24 filmes de um total de 137. Em 2013, entre três a 17 de um total de 123 filmes. O acesso e visibilidade: ter ou não contato com o filme. Essa é a questão política do mecanismo de cota de tela no Brasil hoje? Assim, se um filme brasileiro não é programado não há oportunidade de circulação dele. Então, o que é necessário?

No mundo, cerca de 70 países produzem filmes, de um total de quase 200 países. Os que não produzem são culturalmente influenciados por produções de outros países. São países vizinhos, países ex-colonizadores, países hegemônicos no âmbito cinematográfico e audiovisual. Sendo que são muitos os que fazem menos de uma dezena de títulos, assim passam pela mesma situação dos filmes que nada produzem na sua ausente indústria cinematográfica. Logo, o custo de amortização somente poderá ser resolvido se houver janelas para sua exibição e a sala de cinema é o primeiro e fundamental para os recursos que possam surgir.

O exibidor tem 363 dias para fazer a programação. Para buscar otimizar seu tempo e seus recursos com o objetivo de obter lucro em médio e longo prazo, precisará de um distribuidor que possa garantir uma distribuição com planejamento de 10 a 15 anos os lançamentos de 20 a 30 títulos por ano. Esse tipo de distribuidor normalmente é um distribuidor estrangeiro, como as distribuidoras norte-americanas.

Por isso, viabilizar uma indústria de cinema passa pelo grande objetivo de encontrar as condições para que nossos filmes cheguem às salas de cinema, garantindo uma participação mínima. A cota de 2014 corresponde a 14,8% das disponibilidades das salas de cinema no Brasil. Portanto, de complexos cinematográficos que devem exibir 28 dias no mínimo e 63 dias no máximo para um filme.

No final da sua exposição Manoel Rangel destacou que ao contrário do que muitos imaginam quanto a posição do Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas do Estado do Rio Grande do Sul, a última ação judicial ocorreu em 2006/2007 no judiciário brasileiro em todo território. Diferente da década de 1970, quando 200 ações foram feitas por exibidores e distribuidores nos Tribunais Regionais e no STF. Em todos os casos, o poder judiciário deu causa a favor da cota de tela.

Jorge Ivan Barcelos, diretor de assuntos profissionais da Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Difusão Cultural e Artística nos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, foi o segundo a posicionar seu ponto de vista. Porém, não se deve deixar de colocar que este ilustre convidado não veio para a audiência para representar o Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas do Estado do Rio Grande do Sul, contudo levará uma mea-culpa por colocar seu ponto de vista a partir das necessidades dos exibidores da região brasileira.

Para ele, o governo, por meio da Ancine, cria lei de cota de lei de exibição mas esquece do pequeno exibidor. Nos distantes rincões do Brasil, afastados dos grandes centros urbanos, onde se concentram os complexos cinematográficos de exibição, com suas diversas salas de cinema nos shoppings centres, o pequeno exibidor sofre com diferentes momentos de crises para sua manutenção econômica. Ivan Botelho entende que cerca de 15% de cota de tela da sua programação para o grande exibidor é algo superável, mas para o pequeno é algo preocupante.

Em seguida foi a vez de Cláudio Lins de Vasconcelos, do Sindicado interestadual do Audiovisual, expor suas considerações sobre o mecanismo da cota de tela na audiência. Para ele a cota de tela consiste na reserva na programação das salas de cinema. Além de ser um instrumento de proteção e promoção, a cota de tela está dentro da lei, tanto no ordenamento interno e internacional.

Não se trata da rejeição à cultura internacional. No nível intraconstitucional, se baseia nos artigos 215, 216 e 221 da nossa Constituição Federal. No nível internacional, os bens culturais (audiovisuais ou não) no GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e no GATS (Acordo Geral de Tarifas e Serviços), as cotas são legais e, portanto, utilizadas pelos países no mundo. Assim como na OMC o princípio da nação mais favorecida permite que a cota de tela seja aplicada. Portanto, todo país tem o direito assegurado para proteção e difusão de bens culturais, assim à cota de tela.

O mecanismo da cota de tela, seja na ótica nacional ou internacional, é um mecanismo de soberania cultural num mercado constantemente produzido por produtos frequentemente oriundos de um só país. Na França é a maior (45%), em Portugal é 0,7%. No geral, a média é de 15% para os países europeus. No Brasil, neste século, não conseguimos nos colocar acima do patamar de 15%, mesmo que nosso market share tenha alcançado cifras maiores do que o patamar da cota, como no caso do ano de 2013.

O último a expor seu ponto de vista foi Luiz Carlos Barreto. Ele lembrou que Getúlio instituiu a regra do 8 por 1, uma espécie de cota de tela do cinema nacional, estabelecendo que para cada oito filmes exibidos numa sala, haveria de ser exibido um filme nacional. Depois disso, a partir de 1964, veio a lei da obrigatoriedade, que não era obrigatória pela falta de fiscalização e força regulatória na ditadura para o cinema estrangeiro. A preocupação se limitava a se o filme era ou não era subversivo para cair na malha da censura da época. Mas, na medida em que o cinema brasileiro avançou no mercado, nos anos 1970, virou uma verdadeira guerrilha jurídica contra o mecanismo de cota de tela.

Após a audiência na Câmara, os olhos e ouvidos se voltam para o STF, para saber sobre a constitucionalidade da cota de tela no Brasil, primeiramente diante da nossa constituição (art. 215, 216 e 221) e, depois, diante da avaliação dos acordos internacionais (GATT e OMC-GATS) que foram homologados pelo Congresso. Por isso, o uso da cota de tela não foi somente uma deliberação da Ancine. Aplica-se ou não?

Além disso, é bom que lembremos que já foi dada anistia em alguns casos para as salas que não conseguiam completar a cota de tela, para que não fechassem. O desejo nacional é voltar aos 40% de market share da década de 1970 e especialmente os americanos estão atentos. As salas de exibição estão se tornando um “motel cinematográfico”, expressão parafraseada por Luiz Carlos Barreto, pois cada filme tem um horário distinto. Normalmente, os filmes nacionais independentes ficam com os piores horários. Isso a cota de tela não consegue evitar neste momento e, portanto, deverá ficar atenta.

O filme estrangeiro tem para o Brasil um mercado complementar, mas para o filme nacional é a primeira fase. Neste caso, a Ancine está sendo cautelosa, porque a cota de tela deverá está acima da sua capacidade de preencher.  O caso do filme Flores Raras, relatado por Luiz Carlos Barreto é exemplar, pois teria uma previsão de 200 cópias, mas limitaram para cerca de 90 filmes, não exibindo nas periferias e bairros populares. Essa é uma antecipação da opinião do público feita pelo exibidor.

Importante apontar que muitos exibidores e distribuidores têm buscado na dublagem a maior estratégia de inserção cada vez maior do filme estrangeiro no Brasil, principalmente quando o maior público frequentador são crianças e jovens. A dublagem era proibida até dezembro de 1960, mas a partir do ano seguinte se tornou o instrumento de expansão dos filmes estrangeiros no Brasil. Assim, a língua deveria ser um ativo nosso, do filme brasileiro, como defendeu Luiz Carlos Barreto. Os filmes estrangeiros se apropriam da nossa língua para angariar seus lucros. Neste momento, filmes como Noé, Rio, 300, Need for Speed, Thinker Bell, Frozen e outras animações ocupam a maior parte das nossas salas de cinema com cópias dubladas de maneira estratégica, para ter um lucro maior do que teriam com cópias legendas e, consequentemente, retirando o público do filme nacional para o filme estrangeiro.

O Estado brasileiro está subsidiando o grande distribuidor estrangeiro e o grande exibidor que pouco valoriza o filme nacional, mas está onerando os produtores brasileiros. O BNDES está financiando as grandes cadeias de exibição que abrem mais espaço para os filmes estrangeiros e criam burocracias para a produção nacional. Assim, num futuro de telas é primordial a cota de tela. Neste momento, no Brasil, a cota de tela se tornou um ponto de pactuação e de equilíbrio entre as partes (produtores, exibidores e distribuidores) mediadas pelo Estado, para a defesa da cultura e valorizar a indústria audiovisual.


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Distribuidor, realizador, professor e crítico de cinema. Criador da Revista Quem Viver Verá!, presidente da Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo - Seção do Distrito Federal da ABD Nacional e Secretário-Geral do Congresso Brasileiro de Cinema.

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