“Como os atores globais eficazes são, em última análise, anti-homem e anti-cidadão, a possibilidade de existência de um cidadão do mundo é condicionada pelas realidades nacionais. Na verdade o cidadão só o é ou não o é como cidadão de um país. Ser cidadão de um país, sobretudo quando o território é extenso e a sociedade muito desigual, pode constituir apenas uma perspectiva de cidadania integral a ser alcançada nas escalas sub-nacionais, a começar pelo nível local. Este é o caso brasileiro, em que a realização da cidadania reclama, nas condições atuais, uma revalorização dos lugares e uma adequação de seu estatuto político.” (Milton Santos).
Frequentemente as cartas dirigidas à sociedade sobre os novos e exclusivos ensaios do mercado da cultura transmitem um pensamento organizado voltado a um novo autor como forma de democracia cultural, a cultura corporativa.
Acontece que há na percepção coletiva uma descrença sobre o espírito dessas cartas, pois nelas o mercado cultural se incumbe de dar conta da multiculturalidade que naturalmente exige multiplicidade técnica, ao contrário de um sistema formatado por grupos técnicos, dando sentido hegemônico à cultura e declarando a morte de outras técnicas como fruto de reflexões e necessidades, o que significa um alinhamento das práticas inversamente proporcionais a uma política voltada a democratizar-pluralizar o espaço com vozes individuais em um conjunto de territórios que compõem a nação.
Diante de uma clara contradição, a sociedade olha para esse sistema como algo esquizofrênico, pois, elaborado para atender às necessidades da cultura corporativa, o cidadão não tem autonomia para novas ações e nem para novos resultados, pois tudo passa pela interpretação da unicidade técnica que, diante de um numeroso espírito criativo, fundamenta-se num único lugar mediado, sobretudo pelos conceitos de grupos econômicos, de firmas, de instituições (institutos e fundações) nunca de pessoas, cuja interpretação sobre cultura evidentemente exige de imediato uma meditação política e filosófica inteiramente compreendida pela sociedade.
Neste caso, a cultura instala-se num subespaço a partir de uma nova ordem celebrada pelo pragmatismo, sem a entrega da emoção. Desta forma, esse espaço não contempla a existência plena da cultura, pois está muito longe da realização de um ideal plural, ilimitado, pois a conformidade vinda da razão hegemônica engessa os espíritos e desautoriza a entrada das novas descobertas autônomas que estão em ação no cotidiano da sociedade.
Todavia isso não é tudo, por seu próprio sentido, a defesa individualista da cultura corporativa não autoriza as verdadeiras fases de transição para novos períodos. E assim, garante o mono-tecnicismo, a exacerbação das disparidades e, consequentemente das desigualdades no chamado universo cultural.
E, nesse sentido, em busca dos movimentos populares protagonizados pelos cidadãos, sobretudo das camadas mais pobres da população, que o Secretário Executivo do Ministério da Cultura, Alfredo Manevy, em uma de suas falas na II CNC, Conferência Nacional de Cultura, entendeu, e de forma correta, que o cidadão é a semente de uma evolução positiva que deveria conduzir a uma outra tônica, a uma outra mensagem para um novo universalismo da cultura através do povo e das pessoas.
De forma coerente e bem articulada, o discurso claro de Manevy propôs reorganizar as estruturas políticas do Estado para articular meios de regar as sementes multidisciplinares dos cidadãos, para que, assim, pudesse florescer a atitude de inconformidade e rebeldia ao sistema abstrato e remoto imposto pela fábula da cultura corporativa. Manevy, acertadamente, falou da necessidade do Estado, em nome da democracia, agir contra os excessos burocráticos que na verdade estão a serviço das forças socioeconômicas e suas ideologias hegemônicas. Seu discurso clamava por uma política institucional fundada na ideologia do homem, do cidadão e seu complexo universo e pela exigência de um Estado capaz de regular a vida coletiva. E que deveríamos buscar como remédio para combater essas dificuldades, uma aproximação objetiva sem a mediação da burocracia, entre o Estado e o cidadão e que tais exigências eram impedidas pela própria falta de autonomia do Estado em fazer do homem um objeto novo dentro das políticas culturais, e construir novas plenárias com muito mais representatividade.
Em outras palavras, Manevy deixou bem claro que as normas burocráticas reguladoras têm que mudar, pois elas atendem às considerações e interesses do setor privado sem o mínimo de racionalidade ou razão diante dos desafios do cidadão.
A cultura não pode se subordinar a uma única ação ou mesmo se limitar a sobreviver com as técnicas burocráticas e atributos de pequenos grupos de agentes corporativos, o que, consequentemente limita a ação produtiva e joga o cidadão numa fórmula que, na verdade é fruto de um mundo de competitividade que chegou como único motor em escala planetária, pautada e regulada pelas técnicas verticalizantes, fazendo da cultura um reino de artifícios e ficção e impondo ao universo da cultura uma escassez de pensamento intelectual no mundo contemporâneo.
Não podemos pensar o futuro da cultura sem o cidadão, sem a sua informação, sem seus moldes, seu mundo, sua visão, seu lugar e suas curiosidades. As diferenças que tanto festejamos, são produzidas pelo homem-nação com sua identidade, a mesma que fortalece a teia universal.
Sem essas vozes autônomas, viveremos dessa fragmentação perversa criada pelos limites da globalização cultural como fenômeno meramente econômico-financeiro que pauta a cartilha da cultura corporativa, o que naturalmente impossibilita a fruição do chamado tempo real para a maioria dos brasileiros, e a adequação a um novo estatuto político da cultura nacional, a uma insubmissão amiga, segundo Carlos Drumond de Andrade.
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