Ana de Oliveira é pesquisadora de música e autora do www.tropicalia.com.br, a maior fonte online de informação sobre o tema, com cerca de setecentas páginas de conteúdo, em português e inglês. Nesta entrevista ela fala da relação entre a Política Gil e o tropicalismo e aponta os avanços da gestão de Gil à frente do Ministério.

Prestes a lançar um livro de entrevistas com Gilberto Gil, Ana dedica-se ao seu documentário longa-metragem “Tropicália ou Panis et Circencis”. O projeto foi aprovado na última seleção pública da Petrobrás está em fase de preparação. Acompanhe a íntegra da entrevista, concedida por e-mail:

Leonardo BrantVocê enxerga uma coerência entre o movimento tropicalista e a atual política cultural do Brasil, conduzida por Gilberto Gil? Quais os pontos mais importantes dessa convergência?

Ana de Oliveira – O tropicalismo foi um movimento perigoso: ameaçou e acabou por desbancar os puritanismos estético-ideológicos que permeavam o discurso e a prática da cultura brasileira, numa época em que a contraposição entre arte alienada e arte politizada estava no centro crucial do debate sobre cultura e nacionalismo.

Em sua complexidade conceitual, o tropicalismo assimilou matrizes criativas distintas – desde o considerado desprezível ao mais sofisticado estilo – e estabeleceu um diálogo profícuo entre cultura de massa, mercado, tecnologia, modernidade e tradição, superando velhas dicotomias éticas e estéticas.

Sabe-se que essa gestão do Ministério da Cultura empenhou-se na criação de canais de interlocução com âmbitos e manifestações culturais as mais diversas, sem prerrogativas ou discriminação entre o popular e o erudito, o regional e o urbano, o local e o global. Se muito foi feito para promover o acesso equitativo às novas tecnologias digitais, tanto se fez pela construção de uma política específica para a preservação da capoeira, por exemplo.

Em última instância – e em poucas palavras – entendo que o impulso tropicalista para a convocação geral (de parceiros, de pensamentos, de estilos, de gênios díspares) e esse amor pela dessemelhança, pela multiculturalidade, sejam pontos sensíveis dessa convergência.

LBGilberto Gil deixa o Ministério com sua carreira em alta e cheio de problemas administrativos em sua pasta. Em sua opinião, qual é o legado do Gilberto Gil político?

AO – O legado mais evidente – consensual, inclusive – é a visibilidade que a cultura brasileira e o próprio ministério alcançaram dentro e fora do país, com grande proveito para as relações internacionais do Brasil.

O Ministério da Cultura foi convertido num organismo vivo, capaz de gerar interação e sinergia com os diversos segmentos da produção cultural. Ainda que essa capacidade não tenha sido explorada em sua total potência e que os resultados não satisfaçam as exigências de todos, um campo propício – e inédito – foi aberto para futuros desdobramentos e construções.

Os Pontos de Cultura promovem a diversidade das expressões em todos os cantos do país e já chegam ao exterior (existem Pontos em comunidades de brasileiros nos Estados Unidos, na França e na Alemanha), incentivando a atividade criativa em favelas, universidades, aldeias indígenas, comunidades quilombolas etc. Por encorajar o protagonismo local com o fortalecimento das iniciativas já existentes e promover a articulação de redes colaborativas, são importantes instrumentos para que a fruição cultural chegue aos espaços menos privilegiados. Na minha opinião, os Pontos de Cultura são a mais eficaz e inteligente invenção de que se tem notícia em política cultural no Brasil.

Destacaria outros aspectos positivos da liderança de Gil como a descentralização de ações e de recursos, a formulação dos critérios de patrocínio junto às estatais, com a criação de editais de fomento mais democráticos e abrangentes, e os claros avanços em direção a uma política de inclusão e acesso aos meios.

LBO último trabalho artístico de Gil, Banda Larga Cordel, faz uma clara fusão entre o Gil político com o Gil artista. Em sua opinião, ele continuará sua obra política pela arte, ou deve ocupar espaços abertos pela atividade de gestor público?

AO – Gil demonstra um forte senso de cidadania (acho mesmo que foi isso que o levou a assumir o cargo de ministro), é bem possível que ele queira e possa continuar contribuindo sistematicamente em sua condição de agente internacional da cultura brasileira. Participando de fóruns culturais, certamente vai enriquecer o debate com posições assertivas, sobretudo nas áreas relacionadas à propriedade intelectual e à cultura digital que tanto o entusiasmam.

LBO tropicalismo continua o mesmo, ou foi ressignificado com a passagem de Gil pelo Ministério da Cultura?

AO – A identidade tropicalista de Gilberto Gil – algo que ele próprio fez questão de enfatizar de cara – sempre esteve em pauta desde que fora convidado a assumir o ministério e, uma vez empossado, a controvérsia tropicalista parece ter ganho mais ânimo entre os críticos. E não é sem razão. A chegada de um tropicalista ao centro do poder suscitou a exigência de coerência entre a atuação do ministro e o movimento que ele criou originalmente.

Eu diria que, em boa medida, Gil pôde exercer institucionalmente a mesma capacidade visionária que, em 1967, o levou a perceber que a modernidade que exalava do pop cosmopolita dos Beatles, pulsava também no regionalismo agreste da Banda de Pífaros de Caruaru, e que a MPB precisava tomar novos rumos, desprovincializar-se, modernizar-se – essa percepção foi fundamental para o surgimento do que veio a se chamar tropicalismo. Hoje, ele conclama todos a aprofundar o debate sobre o direito autoral e argumenta que “ou a sociedade brasileira discute profundamente a questão da propriedade intelectual ou daqui a dez anos estamos fora do bonde da história”.

O tropicalismo continua ocupando uma posição central nas discussões sobre a cultura brasileira, e a atuação de  Gil em um cargo da República deve ter ensejado a atribuição de novos significados a esse movimento que segue despertando amores e ódios febris.

No que diz respeito à questão cultural, ocorre-me pensar que embora pareça improvável que algum dia venhamos a nos livrar da incitação antropofágica que o tropicalismo provocou/provoca (foi um movimento perigosamente radical, sua intervenção foi profunda), seria interessante rever o modo como encarava a cultura e a música. Antes se pensava a história da música brasileira como algo linear, baseada na famigerada “linha evolutiva” da MPB, mas os tempos são outros e já não temos só uma linha. O que temos agora mais se assemelha a um vórtice, onde várias linhas se expandem em espirais. Muitos ritmos de muitas cores se expressando de muitas formas por muitos meios e para muitos fins. A coisa espatifou geral! “O mundo explode”,” o sol responde” e “o vento espalha”.


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

2Comentários

  • Carlos Henrique Machado, 7 de agosto de 2008 @ 13:34 Reply

    Há no Brasil um vício que me incomoda profundamete, essa auto-referência cotidiana, ao estilo Romário, “eu sou o cara!”, é que mata. O artista brasileiro tem essa necessidade de se lançar como um erpermatozóide, já em vida, numa correria por um lugar ao sol. E ainda achamos que lenda é uma coisa de mãe dágua e saci pererê. Isso é café pequeno se comparado às santidades de auto-gestão. A ótica principal que se teve depois que a poeira da Semaa de Arte Moderna baixou, foi a nossa natural antropofagia, lógica, porque um povo que se mistura, mistura também os seus sentimentos, as suas cores, as suas expressões. Desse mesmo processo, as variantes vão de zero a mil. Isso é do povo brasileiro, não é de A ou B, é um processo natural. A cultura não anda ao gosto do freguês, ela tem pernas próprias, autonomia. A cultura caminha com o caminhar do povo, no movimento de rotação e translacão diante do seu próprio universo que não para e se expandir no Brasil. A multiculturalidade é um processo natural da mestiçagem, das nuances que dão uma palheta de coloração sem fronteiras. Este é um processo colaborativo, palavra fundamental para que nos compreendamos melhor.

    A rádio Nacional, no seu período de ouro, tinha a Marlene, a Emilinha Borba, cantando com arranjos de Radamés. O arranjador do Chacrinha era o Guerra Peixe, Villa Lobos pegava o seu trenzinho caipira para ouvr de perto as maravilhas da música não técnica, do espontâneo homem brasileiro, antropofágico, tropicalista, multicultural. E, se não compreendermos essa natureza, cairemos na mesmíssima idéia de um controle vigiado, soft, light, mas patrulhado com alguma forma de ideologia. PELO AMOR DE DEUS, DEIXEM A MEINA DANÇAR EM PAZ! Que façamos de uma ou duas décadas referências fundamentais do resultado da escolha de um povo, mas não me altere um saba tanto assim. Entre a história e a estória passa um mar de vaidades e interesses. Qualquer observação que nã tenha à frente a própria escolha do povo, cai no sabor mítico, do místico, do consensual forjado, da rotulação, mesmo que esbravejadora, de uma amarra que só houve em foi em instituições, e, contrapor uma instituição com outra, é uma guerra fundamentalista de dois touros sentados. O povo brasileiro anda a seu gosto, mistura xadrez com listrado, verde com rosa, é da gente!!!!.

    Mais um detahe, proclamar a web, a banda larga, as tecnologias com o discurso “deixe a vida me levar” que seremos todos salvos pelas maravilhas digitais é irresponsável e omisso diante das questões práticas. Minha cidade é uma das mais dinâmicas em termos de web, pois praticamente todas as residências têm um PC ligado ao mundo, e isso é ótimo. Mas, na prática, não inclui absolutamente ninguém daquí. Fortalece um processo, amplia as questões, mas esse messianismo rasteiro é uma forma de jogar sobre os ombros de Bill Gates a responsabilidade de todas as questões, assim como o mercado que propala o ajuste natural simplesmente pelo mercado. Ninguém quer um Estado interventor, até poque historicamente no Brasil, o Estado é o rei da pataquada em politica cultural. Mas Queremos menos ainda um Estado omisso O que se quer é principalmente um estado que seja ético em todos os níveis. Temos que lembrar que a mesma tecnologia que pode trazer informações gerais, fundamentais, é a mesma que facilita as informações privlegiadas e faz, num simples clic de um mouse, um bilionário da noite para o dia.

    Obs. hoje estive conversando com um líder de um quilombo que foi beneficiado com o programa “Pontos de Cultura”. Digo que a realidade é bem diferente do que está sendo cantando em banda larga por aí. Essa marafunda social é bem mas ampla, bem mas complexa do que esse discurso que tenho ouvido. Ainda estamos na primeira fase, na pasmaceira do atoleiro, ou seja, de marketing em marketing, a galinha enche é o saco, nosso é claro.

  • Irene, 7 de agosto de 2008 @ 17:39 Reply

    Sensacional!
    Excelente visão sobre a tropicália e a atuação de Gil. Ele fez o que nenhum outro fez, é preciso que se saiba reconhecer isso.

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