“Somado à solidez democrática do governo FHC e ao êxito do Plano Real, foi o quadro legal que permitiu os milhares de projetos e ações culturais dos últimos anos”Os anos 1995-2002 são os da consolidação do Ministério da Cultura. Para limitar-me apenas às Secretarias do Ministério, isso significa que, até 2001, realizamos – ou, na maioria dos casos, apoiamos, com recursos da Lei da Cultura – cerca de 10.500 projetos. As Fundações do ministério realizaram cerca de 18 mil projetos ou isso que chamamos de ações culturais, obrigações definidas em lei e que envolvem tanto trabalho quanto a maioria dos projetos. Esses 28.500 projetos e ações custaram cerca de R$ 3,3 bilhões, incluídos recursos de orçamento direto e do mecenato. Do total dos recursos do ministério, que multiplicaram cinco vezes no período Fernando Henrique Cardoso, 45% correspondem a investimentos.

Ao falar de consolidação, quero dizer que o Ministério da Cultura tornou-se uma máquina institucional e que, embora ainda pequena, funciona. Não que nada se tenha feito antes do governo Fernando Henrique Cardoso, mas é preciso reconhecer que o ministério é recente, não apenas quando comparado com outros ministérios (é de 1985, o da Educação é de 1930). É também mais recente do que muitas secretarias estaduais de cultura, das quais nasceu. Além disso, foi enfraquecido em seus primeiros anos por uma notável instabilidade: em nove anos, nove ministros.

Nessas circunstâncias, é extraordinário que em meio às turbulências do governo Collor – o qual, entre outras coisas, destruiu a Lei Sarney e pisoteou várias instituições do Ministério, transformando-o em Secretaria – o Ministro Sergio Paulo Rouanet e o Congresso tenham encontrado ânimo para criar a Lei de Cultura de 1991. Um inicio de recuperação que continuou no governo Itamar Franco, quando, restabelecido o status de Ministério para a Cultura, Antonio Houaiss e Nascimento e Silva conseguiram apoio suficiente para criar a Lei do Cinema (1993) que, juntando-se à Lei do Patrimônio (1937), completa a atual legislação cultural brasileira.

Nas condições precárias do período que começa com Rouanet – ele como seus outros três sucessores, todos ministros de curto prazo -, é surpreendente que se tenha, ainda assim, criado o quadro legal que temos hoje. Somado à solidez democrática do governo Fernando Henrique Cardoso e ao êxito do Plano Real, foi esse quadro legal que permitiu os milhares de projetos e ações culturais dos últimos anos.

Posso oferecer alguns exemplos disso. Desde 1995 até 2001 (muitos projetos de 2002 estão ainda em andamento), o Ministério da Cultura editou ou apoiou a edição de 1.400 livros e catálogos de exposições de arte, realizou 1.540 bibliotecas públicas e doações de acervos para bibliotecas, distribuiu 1.500 kits de instrumentos de bandas de música, apoiou 1.600 espetáculos de teatro e de música, 2.200 exposições de arte, 290 CDs de música, 2.600 projetos de restauro e preservação do patrimônio, distribuiu 640 bolsas de estudo e viagens de intercâmbio, apoiou 1.600 filmes, documentários e vídeos (dos quais 160 filmes de longa metragem), 1.300 seminários e workshops, etc. Quem quiser mais detalhes pode recorrer ao site do Ministério da internet ( www.cultura.gov.br), onde listamos todos os projetos e ações culturais realizadas desde 1995 até 2001.

Evidentemente, nem todos os projetos são iguais. Aliás quase todos, com exceção dos kits de bandas de música e de bibliotecas, são diferentes. Embora a distribuição de recursos por segmento cultural (música, cinema, livros, patrimônio, etc.) seja razoavelmente equilibrada, os projetos podem ter dimensões e significados variados e diversos. Alguns se elevam a dezenas de milhões de reais, como a magnífica Sala São Paulo ou a esplêndida Mostra do Redescobrimento ou ainda a recuperação da Catedral da Sé, também em São Paulo – projetos grandes nos quais o apoio do Ministério envolve pouco dinheiro de orçamento direto, mas um importante apoio técnico e administrativo que permite a captação legal de recursos.

Outros são projetos, digamos, de custos médios e, como os anteriores, também de enorme significação cultural. Estão neste caso muitas das grandes exposições de arte que se desenvolvem no país, desde a exposição “Brasil dos Viajantes”, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), e a exposição “Rodin”, no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro, chegando até “Esplendores de España”, também no MNBA, e à belíssima mostra de Eckout, no Recife.

O resgate da Sinagoga do Recife, dando fim a um “esquecimento” de três séculos e meio, é outro bom exemplo. De enorme relevância é também o projeto “Resgate da Documentação Brasileira dos Séculos XVI, XVII, XVIII e início do XIX”, nos Arquivos Históricos de Lisboa, França, Espanha e Holanda e que, agora, deve se ampliar para Inglaterra e Estados Unidos. Magnífico é o levantamento do “Vocabulário Histórico-Cronológico do Português Medieval”, estudado em textos dos séculos XIII, XIV e XV, recém concluído, depois de 23 anos de pesquisa na Fundação Casa de Rui Barbosa.

Extraordinária – digamos revolucionária – é a transformação, em andamento, da Biblioteca Nacional em centro de um sistema nacional de bibliotecas, aberto a qualquer pessoa por meio da internet, com apoio da Embratel (mecenato). Quem visitar o nosso site encontrará muitos outros exemplos de projetos grandes e médios. Mas vale anotar aqui apenas que a grande maioria, absolutíssima maioria, é de projetos pequenos, que custam pouco, mas também valem muito.

Problemas? Existem e alguns são difíceis de resolver. O primeiro é o da escassez dos recursos, que se aumentaram cinco vezes nos últimos oito anos, ainda são insuficientes. Mesmo em fase de arrocho dos gastos públicos, é indispensável continuar aumentando os recursos de orçamento direto e o teto da renúncia fiscal, que favorecem a cultura.

O segundo é a escassez de funcionários, cujo número deve aumentar por meio de novas contratações ou de novos concursos. Se a máquina está consolidada e em funcionamento, também é verdade que, com o crescimento da demanda que a sua própria eficiência estimula, os funcionários estão sobrecarregados de trabalho. O terceiro é o da concentração, que chega a 85% dos projetos no Sudeste (ou melhor, no eixo Rio-São Paulo). Desequilíbrio dos benefícios para a cultura que reflete outros desequilíbrios, tão perversos quanto conhecidos, da economia. Sem diminuir o que se tem feito no Sudeste, há que encontrar maneira de oferecer estímulos adicionais para projetos que se realizem em outras regiões.

O problema maior, porém, é o de melhorar a máquina sem, para isso, obrigá-la a parar. Foi o que fizemos em relação à herança recebida do período Rouanet-Houaiss-Moscardo-Nascimento, e penso, deve ser o princípio a seguir pelo governo Lula. Sem excluir a possibilidade de eventuais correções de rumo, o fundamental é que a cultura necessita mais do mesmo. Mais recursos de Estado, mais presença da sociedade, mais participação das empresas. Quanto a estas, passamos de 340 empresas, até 1994, a cerca de 5 mil, até 2002.

Crescemos muito, mas há ainda muita estrada pela frente: o país tem cerca de 120 mil empresas que, em princípio, poderiam participar de atividades culturais com os benefícios da Lei Rouanet. Quanto aos recursos do Fundo Nacional de Cultura, foram triplicados pela lei Ubiratan Aguiar, que, porém, queria multiplicá-los por dez, seguindo o exemplo da National Lotery, da Inglaterra.

É essencial crescer, mantido o essencial que é a prática de uma política democrática de cultura que estimula a participação de todos. Quem examinar com cuidado a experiência dos últimos anos, perceberá na extraordinária multiplicidade das iniciativas culturais, muitas delas inteiramente surpreendentes, aquilo que deveria ser considerado de inteira evidência.

A cultura não é do Estado, é do povo. Depende essencialmente da iniciativa das pessoas, artistas, escritores, igrejas, terreiros de candomblé, sinagogas, empresas, clubes populares, escolas, bibliotecas públicas, movimentos de leitura, sindicatos, escolas de samba, maracatus, CTGs, bandas de música das cidadezinhas do interior, orquestras de música erudita, institutos históricos e geográficos, academias de letras, universidades, de todas as instituições do nosso país.

Contra as turbulências privatistas do período Collor, os últimos oito anos provam que o Estado pode e deve apoiar a cultura. Contra os preconceitos estatistas de alguns, estes últimos oito anos provam também que o Estado não deve jamais dirigir a cultura. Mais do que isso: não deve jamais tentar dirigi-la. Porque, de fato, mesmo que o queira, jamais conseguirá dirigir uma cultura que é, em si mesma, expressão da liberdade do povo. Creio que é este o caminho a seguir. E espero que o novo governo tenha êxito.


Francisco Weffort é professor da Universidade de São Paulo (USP) e foi ministro da Cultura durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002).

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Francisco Weffort


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