Os três dias que abalaram o Brasil.
Nesta frase de Mário de Andrade sobre a Semana de Arte Moderna, “a maior orgia intelectual que a história artística registrou” estavam as minhas expectativas e as de muitos com a chegada da esquerda ao poder. No entanto, o que assistimos é a uma confusa idéia de democracia cultural, uma salada mista light, digamos, comportada, devidamente composta, um sentimento de transformar a cultura brasileira num bibelô, num souvenir, num presentinho de fim de ano, isso, no caso das empresas patrocinadoras.
No caso do Ministério da Cultura, a democracia cultural é uma tentativa, mesmo que equivocada, fraudada pelo próprio capital humano que concentra poderes de uma impressionante mesmice neoconservadora. Tudo isso faz parte de um cabresto sócio-cultural perfeito, não há sobressaltos, não há orgia, não há liberdade, não há arte, não neste caldo que colocou a cultura no sacrifício educacional, social e publicitário, todos alinhados no mesmo pensamento sem um único apito contrário ao burguês funesto.
Assistimos a um espetacular lustrar de técnicas, um objetivo quase obsessivo pela arte de técnicas irretocáveis, mas que mantenha uma atividade digestiva, comportada, reproduzida, reciclada em um círculo restrito de estéticas e idéias pré-concebidas classificadas como releituras, onde se aborda um tema do passado como um embrulho comercialmente digestivo, perfeito para o consumo de uma burguesia preguiçosa que não quer saber de raciocinar. E ainda tem quem veja problema no fato de os modernistas serem filhos de uma burguesia. Ora, se assim não fosse, qual sentido teria a Semana de 22? A questão das artes no Brasil sempre teve como ponto de resistência o anacrônico pensamento burguês, então, a proposta da semana tem significado ainda explosivo nos dias de hoje, justamente por propor autocrítica, por espetar o seu meio, esse meio tão amordaçado, tão escravo de comportamento, tão obediente socialmente, tão medroso, tão místico que busca abrigo messiânico numa imaginada sociedade civilizada.
A carta que propõe democracia cultural via programas de cultura foi escrita com o mesmo sentimento filantrópico do chá das quatro. Estava lá a velha caneta nanquim e sua pena de faisão a traçar um plano estratégico para este mingau confuso que estamos a chamar de diversidade cultural morrendo de medo de uma observação mais criteriosa, mais ciosa.
Acovardada, essa visão foge do embate, do enfrentamento, da discussão profunda. Este é um projeto que podemos perfeitamente chamar de “deixa quieto” ou “não mexe nisso”. Lógico que essa liga é produzida pelo ovo corporativo. Há uma demanda na busca por adequar mão-de-obra de várias áreas dentro do universo da cultura.
Por isso, mal comparando, os três dias da Semana de 22 provocam ainda hoje, os mais diversos debates e reflexões. O que assistimos agora é uma panacéia do que é classificado como “burro motivado” que, Alheio aos desdobramentos de cada ação, este inocente útil é uma bela peça da engrenagem que paralisa o raciocínio, que apara pequenas arestas. O sistema, essa palavra tão gasta, é um componente, hoje, muito mais eficaz do que anos atrás. Filho do neoliberalismo que constrói redes numa corrente perversa que rechaça naturalmente as vozes dissonantes. Tudo tem que estar arrumadinho, penteadinho, gomalinadozinho no esquema da motivação patética que produz a para-cultura.
Há muitos anos neste país, não se fala de arte, não se fala de criação, não se discute estética. O Estado, o governo e as empresas se transformaram num grande coração de mãe, cabem todos, embalados por um único canto pra que adormeçam num sono de décadas.
O patrulhamento silencioso vem transformando o artista num zumbi obediente, num fantoche estético, numa marionete empresarial, numa massa de manobra política. Nada de fazer ondas, senão, te penduro na cruz e chamo os urubus. Estamos de fato encurralados e medrados. Artistas virando burocratas, burocratas virando executivos construindo pontes e lobbies em qualquer um dos segmentos dessa fragmentada e perigosa idéia de democracia cultural onde se encontra estacionada num ambiente perfeito, num curral aquecido, bem alimentado para que ninguém pule a cerca. Há um sonífero nessa ração. Esse comodite cultural, hoje, se valoriza na obediência cega, na pontuação sistematizada, encarcerada, indivisível, abstrata para a sociedade em seus aclamados e robustos feitos. Esse silêncio todo que nos atordoa não é um ato reflexivo conspiratório em prol da arte, é o resultado de um wisck doze anos que não dá ressaca, mas está matando de cirrose a arte brasileira.
“Fora! Fu! Fora bom burguês!” (Mário de Andrade).
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