“A partir da inserção de novos temas que trazem o debate para a construção de uma Europa Social, a ação cultural passa a ser tema de coordenação comunitária”Assistimos em nossos tempos modernos a uma mudança do conceito de cultura, que deixa de expressar os conceitos das belas-artes para complexificar-se no todo sociológico, espraiando-se necessariamente em sua vertente política. Sob este enfoque, vemos que a cultura é um tema necessário nas discussões de integração regional, tratada sob o signo da tensão entre as boas intenções e as ações efetivas. Estas necessitam, não só de boas intenções, mas também de responder a um projeto.

Deixando de designar unicamente o ambiente das letras e belas-artes, “ao conceber a cultura – em sentido mais próximo à acepção antropológica – como o conjunto de processos onde se elabora a significação das estruturas simbólicas, é possível vê-la como parte da socialização das classes e dos grupos na formação das concepções políticas e no estilo que a sociedade adota em diferentes linhas de desenvolvimento”, conforme diz Nestor García Canclini em “Políticas Culturales en América Latina”. A cultura reflete sua dimensão social, conferindo sentido e simbologia ao complexo das relações sociais e, atendendo a essa inflexão, políticas culturais estão sendo elaboradas.

No contexto do 8o Curso sobre União Européia, organizado pela Diputación de Barcelona de 9 a 11 de dezembro de 2002, voltado para prefeitos da região, técnicos e gestores culturais da administração, tratou-se das políticas culturais desenvolvidas pela União Européia, como ela se insere no marco jurídico da UE, programas, perspectivas e formas de financiamento.

O tema da cultura não vinha sendo tratado pelas iniciativas de integração quando esta tinha conotação eminentemente comercial, de liberalização das fronteiras alfandegárias. Entretanto, a partir da inserção de novos temas que trazem o debate para a construção de uma Europa Social, a ação cultural passa a ser tema de coordenação comunitária. O marco vigente da política cultural comunitária é precisamente o Tratado de Maastricht, em vigor em 1 de novembro de 1993, em seu artigo 151.

O eixo de atuação da UE, pela análise das disposições do tratado, é de passividade e subsidiariedade, quando se diz que a “comunidade contribuirá ao florescimento das culturas dos Estados membros”, ou seja, captando os processos espontâneos, e que, se for necessário, apoiará e completará a ação dos Estados nos âmbitos elegidos de difusão, conservação e proteção de patrimônio, intercâmbios e criação. Efetivamente, a base legal para a cultura dá uma pista de fraqueza de ação, norteada por um reconhecimento de sua importância tensionada com a falta de orientação jurídica para sua concretização.

A feição transversal da cultura também está presente no tratado, quando este determina que a comunidade levará em conta os aspectos culturais para formular políticas em outras áreas com o objetivo, principalmente, de promover a diversidade de suas culturas. Trata-se de um momento importante para a política cultural comunitária, pois, de imediato, elegem pressupostos que não podem ser contrariados por medidas de outras áreas. Mais uma vez, o tema da cultura entra no cenário político determinando um comportamento negativo, ou seja, determina o que não pode ser contrariado por uma política da região, mais do que determinar como a política em determinado setor (emprego, meio ambiente, política urbana, educação) deveria ser norteada pela cultura.

Em vista da fraqueza dos instrumentos jurídicos disponíveis, do escasso orçamento, da dificuldade que se encerra sobre o processo decisório (consenso, cujo processo demora cerca de dois anos por decisão) a política cultural da UE necessita recorrer a outros sistemas de financiamento, como as políticas que existem para a indústria, os fundos estruturais e a cooperação com outras regiões (América Latina e Mediterrâneo).

Como marco da visão de cultura, foi expedida uma resolução do Conselho da União Européia que reconhece a cultura como “elemento muito importante para a integração da região”. O documento releva o potencial econômico da cultura, a sua contribuição para o processo de ampliação da UE e a sua capacidade de melhorar a visibilidade externa da UE.

Pelas dificuldades anunciadas de realização de uma política cultural, o processo de ampliação da UE, com defasagem de coesão, e o processo de Lisboa, cujo objetivo é fazer da Europa a economia mais competitiva do mundo até 2010 e de maior coesão social, por mais paradoxal que possa parecer, fez surgir o rumor de que o art. 151 do Tratado seria suprimido. Um rumor desse tipo dá uma dimensão da fragilidade do assunto, que nos faz olhar tanto para nossa situação de experimentadores das teorias sociológicas exteriores, criadores de nossas versões, quanto pela miséria do pensamento de uma sociedade que se desenvolveu sem sequer ter consciência dos seus principais ativos.

Esse rumor, ao que parece, serviu para empurrar o segmento cultural da UE a reorganizar sua ação comunitária de forma planejada e em busca de resultados. Nesse sentido foi elaborado um plano de trabalho que propusesse maior eficácia às ações da área cultural, ao mesmo tempo que atendesse mais explicitamente as orientações políticas burocrático-orçamentárias da UE.

Um diálogo com o lado de lá nos dá a dimensão de que a cultura necessita mais que experiência de sua importância, educação para vê-la, ambiente de acessibilidade perene, mas desenvolver-se em sua feição política, cercando-se de meios jurídicos fortes, posição estratégica no seio da administração, sob pena de ficar com facilidade órfã de si mesma. É o que desejamos ver na administração do próximo Ministro da Cultura do Brasil, o cantor e compositor Gilberto Gil.

Priscila Beltrame é advogada, especializada em propriedade intelectual e em relações internacionais pela London School of Economics.

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Priscila Beltrame


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