Afinal, de qual autoritarismo estamos falando no caso da demissão do Maestro John Neschling, regente titular da OSESP? Acho que tudo isso deveria, ponto a ponto, ser mais bem analisado.
Algumas perguntas precisam ser feitas. A demissão do maestro, por Serra, foi política e autoritária, visando a eleição presidencial em 2010 pelo governador, o menino mimado, como bem colocou o maestro Neschling no youtube e que, logo depois, recebeu por email, a demissão do anti-caipira, o príncipe da sociologia de folhetim, o magnânimo privatista, Fernando Henrique Cardoso, conhecido internacionalmente por sua inconfundível vaidade como “o deslumbrado”? Foi a mando de Serra? Verdade absolutíssima. Sim, lógico, mas se puxarmos a fieira, encontraremos peixes bem maiores nesse cardume de tubarões autoritários.
A verdade, verdadeiríssima é que isso, não só é uma crise da OSESP, ela é filha do, também mimado, mundo clássico brasileiro. Aliás, neste caso, não só do menino mimado, mas do velho público mimado que faz duzentos anos, este mimo estatal que nasce lá no império e atravessa toda a história monárquica e republicana e chega aos dias de hoje, provocando mais estragos do que benefícios a sociedade brasileira.
Serra foi autoritário? Interveio junto a FHC de forma politiqueira e agressiva a liberdade de expressão? Sim, tudo isso é verdade, mas é verdade também que, diante das prioridades do Estado em relação ao necessário investimento nas múltiplas formas de arte, canalizar fortunas para uma só corporação, seja lá que título traga, tem peso autoritário de igual monta à demissão do maestro pelo menino mimado e o príncipe deslumbrado e aplaudido por uma casta, pequena é certo, mas poderosa politicamente.
Basta ver a foto no site da OSESP que confirmaremos um público, de minoria mimada, que tem uma Sala São Paulo só para brincar de casinha européia e se transformar em meninos mimados franco-paraguaçu, a se fartar da grande arte, assim como uma criança se farta de legumes, só que, neste caso, para degustar o cardápio da boa etiqueta social, goela abaixo, tapando o nariz e sem um mínimo de paixão, brincando de aviãozinho, brincadeira típica para crianças mimadas engolirem a nutrição culta.
O público está lá, sempre o mesmo, como disse o Maestro Julio Medaglia. E é flagrante a ausência de qualquer pessoa com características negras e indígenas. O que está lá é o mais transparente e imortalizado termo do ex-governador Lembo, “a elite branca”. No conjunto da obra, de A a Z, é puro autoritarismo. Nunca o cidadão comum paulista ou paulistano foi consultado para saber se queria ter uma orquestra de peso dito internacional.
O que devemos compreender é que estamos falando de investimento público no Brasil, com verbas de pesados impostos que estouram nas costas, já esturricadas de sol, da imensa maioria de trabalhadores braçais, mal remunerados e que, jamais, podem dar a seus filhos dignidade educacional, pela péssima educação paulista que só fortalece o traço de uma questão comum no Brasil. Estamos falando da cartola sem olhar para os pés do pavão. Aliás, isso é a cara de FHC.
Devemos entender que a imensa maioria dos contribuintes que fazem esse bolo chamado arrecadação, receita que para eles é uma despesa compulsória lá na fonte, no seu contracheque, é que pagam uma coisa que jamais terão acesso. Quer mais autoritarismo do que isso?
São Paulo, culturalmente, não é simplesmente a Sala São Paulo o foco que a sociedade de domínio paulista impõe. O Estado de São Paulo é também os capões, o interior, as periferias, as favelas, os grotões, melhor, São Paulo é muito mais esse universo do que esse aparente burguês muito bem vendido pela cúpula política e social do poder que exalta, com belos ângulos, o milionário museu da palavra e, ao mesmo tempo, faz vista grossa para o micro-ondas escolar, as muitas escolas de lata que fazem parte da rede pública de ensino paulistana.
A revitalização cultural no centro de São Paulo deveria acontecer a partir do cidadão e da tentativa de recuperar a dignidade humana de cada um daqueles lixos humanos jogados na cracolândia, coração de São Paulo, lá no mesmo lugar desse investimento templário.
Podemos também buscar como mote para essa questão de autoritarismo no que chamou a atenção, o escritor Afonso Romano de Sant’Ana, que muito bem fuzila o autoritarismo falaciano e estatal da arte conceitual, onde o Estado pode oficializar a desordem pública com o manifesto do “vazio” na Bienal de São Paulo, mas prende o cidadão, como foi o caso da menina que teve a mesma atitude, porém não oficial. Ela não havia combinado com marchand, por isso ficou presa vários dias.
Mas nada de pensarmos que isso é alguma exclusividade do menino mimado de São Paulo. Cabralzinho, o governador, menininho mimadinho do Rio de Janeiro, anda trocando figurinhas com o eterno prefeitinho da Acibarra, Eduardo Paes que, em nome da especulação imobiliária, anda a passar o rodo em barracos, em agradecimento aos que sempre financiaram a sua trajetória política.
Cabral, que é na realidade só governador da cidade do Rio de Janeiro aí sim, famosa internacionalmente, pela desumanidade explícita em suas cada vez mais populosas favelas do Rio, também faz questão de tirar uma casquinha do tal “universo erudito”, em plena Cinelândia, ponto central de moradores de rua, para disputar com a “cidade da música”, obra do famoso, prefeito maluquinho, o Cesar carioca Maia. E Cabral tem coragem de se gabar de ir pessoalmente à Europa fechar contrato com uma Ópera para apresentação no Teatro Municipal.
De fanfarronice em fanfarronice arbitrária, ampliamos o quadro de segregação do cidadão comum, que vê cada vez mais, o desprestígio de sua cultura a partir de suas escolhas, e com isso achatando ainda mais o seu valor como cidadão e aprofundando a, já saturada, crise social.
Gostaria que lessem trechos de um email que a nossa filha nos enviou quando foi chamada para assumir a vaga conquistada em concurso para cadeira de professora de arte do Estado do Rio. Nesse mesmo dia, Cabral anunciou que iria, pessoalmente, contratar, a peso de ouro, a tal ópera européia.
Nossa filha, que é graduada em História da Arte na UERJ, Artes Cênicas na Unirio e mestranda em Cultura Popular na mesma Unirio, nos narrou por email, um quadro que beira a um desastre social promovido justamente por essa lógica cultural. Separei alguns trechos para sejam testemunhas dessa realidade.
O email nos chega com destaque no assunto:
“O Termômetro de cabeça para baixo”
“Hoje foi um dia…
“Peguei um trem para Nova Iguaçu… E, no caminho, fiquei olhando as pessoas que estavam no trem. Expressões de cansaço, de luta, de vida! Uma dureza dura de ver. E em volta a paisagem denunciava a existência de um mundo esquecido, abandonado pelo sistema e por nós! Ainda existem casas de papelão na beira do trilho!!!!!!!!!!!!!!!!!! Que mundo é esse… Deu vontade de chorar, mas ia ser patético diante da luta daquelas pessoas. Trabalhadores, vendedores de todos os tipos de quinquilharias, deficientes comercializando a deficiência, ou sei lá o que é isso… Talvez seja o extremo da necessidade, a dignidade roubada… Só sei que é duro de ver e não sentir! Senti-me um lixo!!!!
Uma mistura de raiva, de impotência, de vergonha, de indignação! E fiquei pensando que talvez, poder levar um pouco de arte pra essas pessoas, seja a minha possibilidade de transformação, seja um pouco da parte que me cabe nesse mundo tão perverso! Seria literalmente um trabalho para o outro!
O salário é R$560 reais, sem passagem, sem alimentação, sem bonificação, ou seja, sem respeito pelos 4 anos que ficamos dentro daquelas salas da universidade, dando o melhor de nós, para nos tornarmos seres humanos mais humanos, mais críticos. Senti-me uma verdadeira idiota naquele lugar. E eu olhava pras pessoas, entre elas muitos amigos meus da UNIRIO e UERJ, e ficava com vergonha de estar ali, disputando lugar na fila pra ver quem fica nas melhores escolas, por esse salário, com esse tratamento! Senti vergonha por eles e fiz questão de explicitar para todos que estavam ali, a minha revolta. Falei, questionei, reclamei, resmunguei e demonstrei todo o meu desânimo com aquilo que estava sendo oferecido para nós, como se estivessem nos dando um prêmio! É como se eu estivesse me vendendo! Ou… Rendendo-me…
Voltei desanimada, triste, com vontade de chorar… Mas de raiva! “Porque sei que muitos, inclusive amigos meus, não têm a opção que eu tenho de não querer, de não aceitar esse trabalho, não nessas condições, por medo, por falta de condições, por falta de perspectiva.”
(Aressa Rios).
Como pretendo continuar essa análise em outros textos na tentativa de chegar, pelo menos, ao centro desse iceberg, gostaria de deixar aqui somente uma pergunta para a nossa devida reflexão: nós que estamos, dia-a-dia nessa tribuna, Cultura e Mercado, discutindo democracia cultural, economia da cultura, acesso ao bem comum, direito de expressão para juntar elementos e nutrir o sonho de caminharmos junto com a sociedade, podemos ficar quietos diante desse Estado que é a anti-síntese da cultura? Mais que isso, diante desse quadro dantesco que pretendo me aprofundar, é possível seduzir a sociedade para que se torne aliada em uma pressão parlamentar que some vozes com um futuro virtuoso para a cultura brasileira? Creio que não. A sociedade está assistindo a tudo isso cada vez mais assustada com os desmandos das políticas públicas de cultura e, com certeza, reprovando, no mínimo com o seu silêncio cáustico.
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