Não há quem duvide que abusos possam ser praticados por meio do mecanismo de renúncia fiscal da Lei Rouanet. Cremos que este seja um dos poucos consensos que ainda se sustentam em meio às discussões da sua reforma. Neste sentido, costuma-se apontar como as principais distorções do mecanismo de renúncia fiscal a acessibilidade restrita de alguns dos produtos culturais produzidos com recursos públicos (por registrarem ingressos caros demais, por exemplo) e – o principal argumento pró-reforma entoado pelo Ministério da Cultura – a alta concentração dos recursos nas mãos de poucos proponentes, principalmente na região Sudeste.
O que pouco se sabe, no entanto, é que a Lei Rouanet, assim como o Decreto que a regulamenta, traz em seu texto normas aptas a suprimir grande parte destas distorções apontadas como motivos para a reforma da legislação. Tais normas, todavia, não podem sair do papel por si mesmas. Precisam, isto sim, de um administrador público eficiente para bem utilizá-las, revelando o completo espectro do potencial democrático da Lei Rouanet.
Este texto procurará, em um primeiro momento, comprovar que a Lei Rouanet não é o foco único dos problemas cujas causas a ela se atribui e que, ao contrário, o órgão governamental encarregado de sua gestão é tão, senão mais culpável. Basearemos tal conclusão no simples fato de que antes dos produtores culturais baterem nas portas das ‘malignas’ empresas patrocinadoras, os projetos culturais são aprovados um a um pelo Ministério da Cultura, cabendo a este avaliar quais projetos se alinham às finalidades da Lei e aos ditames constitucionais que regem a cultura, desaprovando os que forem inaptos a perseguir os interesses públicos postos à frente pela legislação.
Posteriormente, em um segundo momento, quando já identificadas as falhas na operacionalização dos dispositivos legais da legislação, aduziremos crítica tendente a evidenciar que, na continuidade destes erros, as mudanças propostas pelo Projeto de Lei podem até mesmo potencializar os disparates hoje já constatados, pelo que é necessário cautela para com as mudanças trazidas pela reforma.
A atual legislação federal de incentivo (a Lei 8.313/99 e o Decreto 5.761/06, que a regulamenta) estabelecem de forma precisa quais parâmetros devem ser observados pelos proponentes de projetos culturais quando de sua elaboração, de modo viabilizar sua aprovação no âmbito do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac).
Nos termos da legislação atual, o norte principal da aprovação dos projetos culturais no Mecenato é o art. 1º da Lei Rouanet, que estabelecem as finalidades do Pronac:
I – contribuir para facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às fontes da cultura e o pleno exercício dos direitos culturais;
II – promover e estimular a regionalização da produção cultural e artística brasileira, com valorização de recursos humanos e conteúdos locais;
III – apoiar, valorizar e difundir o conjunto das manifestações culturais e seus respectivos criadores;
IV – proteger as expressões culturais dos grupos formadores da sociedade brasileira e responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional;
V – salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de criar, fazer e viver da sociedade brasileira;
VI – preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro;
VII – desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores culturais de outros povos ou nações;
VIII – estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal, formadores e informadores de conhecimento, cultura e memória;
IX – priorizar o produto cultural originário do País.
A necessidade de se observar tais finalidades são reforçadas pelo art. 18 da Lei que, ao abrir o capítulo que regula o Mecenato, expressa: “Com o objetivo de incentivar as atividades culturais, a União facultará às pessoas físicas ou jurídicas a opção pela aplicação de parcelas do Imposto sobre a Renda, a título de doações ou patrocínios, (…) desde que os projetos atendam aos critérios estabelecidos no art. 1o desta Lei.” (grifo nosso).
São exatamente estes critérios os parâmetros principais a serem considerados pelos componentes da CNIC e pelos servidores do MinC no momento da aprovação de um projeto cultural no âmbito do Mecenato. Pelo artigo citado, verifica-se que a União deve autorizar a prerrogativa da renúncia fiscal a pessoas físicas e jurídicas desde que atendidos aqueles critérios. Uma vez verificado que determinado projeto tem o condão de alcançar estes objetivos, nasce para o particular verdadeiro direito à renúncia fiscal.
O art. 3º da lei traz um segundo requisito que se funda e se desdobra do primeiro, e vem esclarecer por quais meios entendeu o legislador possível cumprir concretamente as finalidades expressas no art. 1º:
Art. 3° Para cumprimento das finalidades expressas no art. 1° desta lei, os projetos culturais em cujo favor serão captados e canalizados os recursos do Pronac atenderão, pelo menos, um dos seguintes objetivos:
I – incentivo à formação artística e cultural, mediante:
a) concessão de bolsas de estudo, pesquisa e trabalho, no Brasil ou no exterior, a autores, artistas e técnicos brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil;
b) concessão de prêmios a criadores, autores, artistas, técnicos e suas obras, filmes, espetáculos musicais e de artes cênicas em concursos e festivais realizados no Brasil;
c) instalação e manutenção de cursos de caráter cultural ou artístico, destinados à formação, especialização e aperfeiçoamento de pessoal da área da cultura, em estabelecimentos de ensino sem fins lucrativos;
II – fomento à produção cultural e artística, mediante:
a) produção de discos, vídeos, obras cinematográficas de curta e média metragem e filmes documentais, preservação do acervo cinematográfico bem assim de outras obras de reprodução videofonográfica de caráter cultural;
b) edição de obras relativas às ciências humanas, às letras e às artes;
c) realização de exposições, festivais de arte, espetáculos de artes cênicas, de música e de folclore;
d) cobertura de despesas com transporte e seguro de objetos de valor cultural destinados a exposições públicas no País e no exterior;
e) realização de exposições, festivais de arte e espetáculos de artes cênicas ou congêneres;
III – preservação e difusão do patrimônio artístico, cultural e histórico, mediante:
a) construção, formação, organização, manutenção, ampliação e equipamento de museus, bibliotecas, arquivos e outras organizações culturais, bem como de suas coleções e acervos;
b) conservação e restauração de prédios, monumentos, logradouros, sítios e demais espaços, inclusive naturais, tombados pelos Poderes Públicos;
c) restauração de obras de artes e bens móveis e imóveis de reconhecido valor cultural;
d) proteção do folclore, do artesanato e das tradições populares nacionais;
IV – estímulo ao conhecimento dos bens e valores culturais, mediante:
a) distribuição gratuita e pública de ingressos para espetáculos culturais e artísticos;
b) levantamentos, estudos e pesquisas na área da cultura e da arte e de seus vários segmentos;
c) fornecimento de recursos para o FNC e para fundações culturais com fins específicos ou para museus, bibliotecas, arquivos ou outras entidades de caráter cultural;
V – apoio a outras atividades culturais e artísticas, mediante:
a) realização de missões culturais no país e no exterior, inclusive através do fornecimento de passagens;
b) contratação de serviços para elaboração de projetos culturais;
c) ações não previstas nos incisos anteriores e consideradas relevantes pelo Ministro de Estado da Cultura, consultada a Comissão Nacional de Apoio à Cultura.
Por meio deste extenso artigo, já é possível verificar, logo no começo do diploma legal, as duas condições centrais à aprovação de um projeto cultural. Em primeiro lugar, qualquer projeto deve sempre cumprir as finalidades previstas no art. 1º, e, em segundo lugar, os projetos deverão atender ao menos um dos objetivos expressos no art. 3º. De fato, uma vez preenchidos estes dois requisitos, nem mesmo o valor artístico ou cultural de cada projeto poderá constituir motivo de desaprovação, vez que o artigo 22 da Lei Rouanet veda “a apreciação subjetiva quanto ao seu valor artístico ou cultural”.
Esta orientação é confirmada pelo art. 1º do Decreto 5.761/06 que estabelece que “O Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC desenvolver-se-á mediante a realização de programas, projetos e ações culturais que concretizem os princípios da Constituição, em especial seus arts. 215 e 216, e que atendam às finalidades previstas no art. 1o e a pelo menos um dos objetivos indicados no art. 3o da Lei no 8.313, de 23 de dezembro de 1991.” (grifo nosso).
Utilizando-se somente destes dois artigos já seria possível afastar um bom número das alardeadas distorções. De fato, embora não seja tarefa simples desaprovar projetos culturais baseados na sua subsunção aos conceitos jurídicos indeterminados dos citados artigos, trata-se de ato plenamente realizável e, em alguns casos, absolutamente necessário.
Todavia, a Lei e o Decreto dão mais subsídios ao analista dos projetos.
Ultrapassada esta etapa, o projeto cultural apresentado ao Ministério da Cultura poderá ser desaprovado pela constatação de empecilhos específicos e inconfundíveis pré-determinados pela própria legislação. Estes empecilhos fixos, que podemos denominar de critérios de eliminação, são os seguintes:
• No texto da Lei Rouanet:
“os incentivos criados pela Lei Rouanet serão concedidos a projetos culturais cuja exibição, utilização e circulação dos bens culturais deles resultantes sejam abertas, sem distinção, a qualquer pessoa, se gratuitas, e a público pagante, se cobrado ingresso” (Artigo 2º, §1º).
“é vedada a concessão de incentivo a obras, produtos, eventos ou outros decorrentes, destinados ou circunscritos a coleções particulares ou circuitos privados que estabeleçam limitações de acesso.” (Artigo 2º, §2º).
“Para a aprovação dos projetos será observado o princípio da não-concentração por segmento e por beneficiário, a ser aferido pelo montante de recursos, pela quantidade de projetos, pela respectiva capacidade executiva e pela disponibilidade do valor absoluto anual de renúncia fiscal. (art. 18, §8º). (grifo nosso).
• No texto do Decreto 5.761:
Art. 6o Os procedimentos administrativos relativos à apresentação, recepção, seleção, análise, aprovação, acompanhamento, monitoramento, avaliação de resultados e emissão de laudo de avaliação final dos programas, projetos e ações culturais, no âmbito do PRONAC, serão definidos pelo Ministro de Estado da Cultura e publicados no Diário Oficial da União, observadas as disposições deste Decreto.
§ 1o (…)
§ 2o Os programas, projetos e ações apresentados com vistas à utilização de um dos mecanismos de implementação do PRONAC serão analisados tecnicamente no âmbito do Ministério da Cultura, pelos seus órgãos ou entidades vinculadas, de acordo com as suas respectivas competências.
§ 3o A apreciação técnica de que trata o § 2o deverá verificar, necessariamente, o atendimento das finalidades do PRONAC, a adequação dos custos propostos aos praticados no mercado, sem prejuízo dos demais aspectos exigidos pela legislação aplicável, vedada a apreciação subjetiva baseada em valores artísticos ou culturais. (grifo nosso).
Fica incluído, portanto, no âmbito da apreciação técnica a ser realizada pelo Ministério da Cultura, os requisitos da acessibilidade irrestrita e da “adequação dos custos propostos aos praticados no mercado”, levando a análise para além do mero atendimento às finalidades do PRONAC, estendendo de forma marcante a abrangência da atuação da CNIC na aprovação e redimensionamento dos projetos.
Outra inovação relevante do Decreto, que não fez mais do que dar concretude à orientação de acessibilidade do PRONAC, ficou por conta do art. 27, que pré-determinou medidas de democratização do acesso aos bens e serviços resultantes dos projetos. Por força deste artigo, os projetos passam a ser obrigados a:
I – tornar os preços de comercialização de obras ou de ingressos mais acessíveis à população em geral;
II – proporcionar condições de acessibilidade a pessoas idosas, nos termos do art. 23 da Lei no 10.741, de 1o de outubro de 2003, e portadoras de deficiência, conforme o disposto no art. 46 do Decreto no 3.298, de 20 de dezembro de 1999;
III – promover distribuição gratuita de obras ou de ingressos a beneficiários previamente identificados que atendam às condições estabelecidas pelo Ministério da Cultura; e
IV – desenvolver estratégias de difusão que ampliem o acesso.
O referido artigo especifica ainda que o próprio Ministério da Cultura pode, caso a caso, autorizar outras formas de ampliação do acesso para aqueles projetos que, pela sua natureza, não se compatibilizariam com estas medidas de acessibilidade.
Com todos estes dispositivos, fica evidenciado que o Ministério da Cultura já detém, com a Lei atual, poder suficiente para suprimir grande parte das distorções que o órgão alardeia como motivos determinantes para realizar a reforma da legislação. Conforme vimos no art. 18, §8º, da Lei Rouanet, esta já prevê, como aspecto a ser considerado no momento da aprovação do projeto, o princípio da não-concentração por segmento e por beneficiário. Isto é, o Ministério da Cultura, desde 1999 (época em que a legislação mudou para incluir outros dispositivos), podia suprimir a concentração dos recursos no eixo Rio-São Paulo.
O mesmo se pode dizer em relação àqueles projetos de acessibilidade reduzida por conta dos elevados preços dos ingressos. O art. 27, I, obriga aos produtores “tornar os preços de comercialização de obras ou de ingressos mais acessíveis à população em geral”. Uma vez mais, percebe-se que o MinC possui instrumentos legais à sua disposição para adequar os projetos às finalidades da Lei.
Assim, se é certo que determinados usos da Lei Rouanet podem levar a distorções, também é certo que o PRONAC tem meios de se defender, desde que gerido por pessoas capazes de fazê-lo. É preciso, portanto, enxergar que muitos dos problemas apontados na discussão pública da reforma não derivam da aplicação de uma lei essencialmente falha, mas sim da má-aplicação de uma lei cujos limites e potencialidades democráticos não são bem explorados.
Cabe, então, a pergunta: Por que estas normas não são aplicadas com a força que deveriam?
A resposta não é complexa ou mesmo secreta. É, inclusive, alardeada com alguma freqüência nos pronunciamentos públicos do Ministro da Cultura. O MinC, faz tempos, não tem capacidade estrutural e financeira para prover uma avaliação de qualidade nos processos de aprovação e prestação de contas dos projetos. O fato é que o número de projetos submetidos à análise do Ministério cresceu vertiginosamente enquanto o seu quadro de funcionários permaneceu o mesmo, o que invariavelmente leva à ineficiência administrativa, à lentidão na análise dos projetos e a funcionários sem tempo nem treinamento para bem utilizar a legislação cultural.
Com efeito, enquanto advogados atuantes na área cultural, não raro nos deparamos com decisões da CNIC que pecam pela contradição (permitindo o que apenas alguns meses antes se proibia), pela falta de motivação (acreditando que apontar um ou outro artigo legal seria fundamentação suficiente para desaprovar um projeto) e, muitas vezes, pela ilegalidade, atentando contra normas de Direito Administrativo e até mesmo contra os objetivos postos a frente pela própria Lei Rouanet.
Por conta disto, ocorrendo ou não a mudança da Lei, existe necessidade imperiosa de se capacitar as pessoas responsáveis pela análise dos projetos culturais no MinC, o que nos leva à segunda parte deste texto que pode ser resumida na seguinte indagação: Se a CNIC já não dá “conta do recado” atualmente, é exagero presumir que ela tenha performance ainda pior na tomada de decisões no âmbito da lei reformulada, na qual a complexidade e a abrangência de seus pronunciamentos crescem sensivelmente?
De fato, nos termos do Projeto de Lei, a CNIC deverá, de acordo com o art. 5º, I, “definir diretrizes, normas e critérios para utilização dos recursos do PROFIC” que contemplarão “a acessibilidade do público, aspectos técnicos e orçamentários” (art. 32), entre outros elementos, responsáveis por determinar o enquadramento dos projetos em percentuais de renúncia fiscal que podem ser de 30%, 60%, 70%, 80%, 90% e 100%. Ou seja, além dos critérios usuais, a CNIC terá de criar normas cogentes e realizar delicada mensuração do projeto abrangendo, inclusive, seu mérito artístico-cultural.
Não bastasse este complicador, existe ainda o agravante de que não conhecemos quais são os critérios a serem utilizados pela CNIC, uma vez que eles serão disponibilizados somente 90 dias antes do envio dos projetos ao Ministério. Ora, se hoje – quando a maior parte dos critérios já se encontra evidenciada na Lei Rouanet há alguns anos – ainda ficamos estarrecidos diante de algumas das decisões do Ministério da Cultura, como acreditar na eficiência e transparência dos critérios que serão definidos por grupos que, a cada dois anos, preencherão os quadros CNIC?
As polêmicas no Direito são inúmeras, profundas e constantes. É comum no Poder Judiciário existirem juízes que pensam de forma opostas em face de normas idênticas, ou serem encontradas perspectivas inovadoras sobre assuntos já amplamente discutidos. E tudo isto acontece – chegamos enfim ao nosso ponto – em áreas onde as normas tem quinze, vinte, trinta anos de existência, e já foram, como ainda o são, estudadas repetidas vezes. Assim, é exatamente por conta da pluralidade e transitoriedade das interpretações das normas jurídicas que se torna preocupante a ausência de pelo menos parte dos critérios norteadores da aprovação dos projetos culturais estabilizada na nova Lei Rouanet.
A situação se agrava ainda mais se adicionarmos à equação que pretende a nova Lei Rouanet alocar liberdade sem precedentes à CNIC sem, no entanto, tal poder estar equilibrado pelo único contrapeso que atualmente restringe a discricionariedade da Comissão, qual seja a vedação à análise subjetiva dos projetos. Desta sorte, se for impossível manter na reforma da Lei a vedação da apreciação subjetiva, deve-se ao menos restringir esta imensa discricionariedade com a pré-determinação de critérios na própria Lei, que será estável e passará pelo crivo do Congresso Nacional.
Um quarto ponto de preocupação é que os referidos critérios serão definidos por “comissão paritária” cuja composição não se sabe, e o efetivo input da sociedade não se viu. O Projeto de Lei restringe-se a dizer que CNIC terá composição paritária (50% de integrantes provenientes dos quadros estatais e 50% da sociedade civil), o que, por si só, não garante à sociedade civil um concreto poder decisório. Na atual CNIC, por exemplo, embora seja ela paritária, o controle pela sociedade civil resta mitigado pelo voto de minerva do Ministro da Cultura. Isto demonstra que, na prática, o poder decisório ainda pende para o lado do Estado, eis que este pode driblar o comando constitucional de participação da sociedade civil organizada através de pequenos ajustes nos processos de tomada de decisão e nomeação para composição da Comissão. Deveria o Projeto de Lei definir com clareza a maneira de escolha dos membros da CNIC, o efetivo poder decisório destes, e como serão protegidos de pressões governamentais.
Por conta disto, insistimos na estipulação de critérios que garantam uma passagem menos atribulada ao objetivo propugnado pela reforma. Critérios que minimizem as chances de corrupção e favoritismo.
Ademais, não fosse bastante a alocação de tamanho poder em um órgão que não tem experiência em geri-lo (mormente em face da transitoriedade da Comissão e de suas regras) sem a especificação de como será exercido este poder, os procedimentos administrativos do Ministério da Cultura já demonstram hoje graves descumprimentos aos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, muito embora o âmbito de sua discricionariedade seja consideravelmente menor. De fato, é perfeitamente possível encontrar projetos idênticos marcados por decisões opostas da CNIC. Assim, a não ser que a tramitação dos processos no MinC amadureça muito em termos de motivação e transparência, ocorrerá um insofismável “samba do crioulo doido”, no qual tudo que a CNIC disser virará lei (trocadilho não intencional).
Isto porque, em face das largas prerrogativas da CNIC, o único meio que o proponente deterá para impugnar eventuais decisões injustas será o processo administrativo, que se não for forte e republicano, não garantirá ao proponente que seus argumentos sejam realmente considerados.
Por tudo isto, faz-se necessário a fixação específica, ainda no Projeto de Lei, dos contornos do processo administrativo da aprovação, do acompanhamento e da prestação de contas dos projetos culturais, indicando as etapas do procedimento, prazos recursais, prazos prescricionais, os órgãos ou agentes responsáveis pela emissão das principais decisões e pelo julgamento dos recursos. Tudo isto com marcado respeito às prerrogativas do administrado impostas pela Constituição e pela Lei Federal de Processo Administrativo, quais sejam o direito à comunicação nos autos, o direito de produzir provas e aduzir alegações finais antes das decisões, o direito de recorrer, o direito de ter ciência das tramitações, o direito de ter efetivo acesso aos autos e de tirar cópias dos documentos nele presentes (por si mesmo ou por procuradores devidamente constituídos na forma da lei processual) e de saber os motivos das decisões que lhe tocam, com indicação não só das normas relevantes, mas também dos elementos que levaram o analista a subsumir o projeto em concreto à norma apontada.
Alguns dizem que devemos confiar no MinC e na sua capacidade de apontar o que é culturalmente relevante. Que se trata de órgão governamental fundado em alicerces democráticos, possuindo, portanto, legitimidade para definir os projetos que possuem maior mérito artístico-cultural. Que se não permitirmos separar o que é culturalmente relevante daquilo que não é, cairemos em um lugar indesejável no qual tudo pode ser patrocinado, pois “se tudo é arte, nada é arte”. Ainda que este argumento seja válido, confiança se conquista, e atual lei muda muito de uma vez só. Se hoje com regras (mais ou menos) estáveis e uma menor discricionariedade do MinC na aprovação dos projetos (visto que o núcleo duro dos requisitos está claramente evidenciado na legislação) ainda se tem grande confusão e subjetividade na aprovação dos projetos, perguntamos: o que acontecerá quando for permitida a elaboração de regras instáveis, por julgadores inexperientes, sem os limites da vedação de apreciação subjetiva e a garantia de um eficaz processo administrativo?
* Texto escrito por Alessandra Drummond e Bernardo Assis.
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