A delicada relação entre a produção cultural e o aparato estatal é uma das questões mais delicadas e viciosas de nossa sociedade, resultando um déficit quase que intransponível para a formação do imaginário, individual e coletivo, com sérias conseqüências para uma noção mais profunda da própria nação, do povo e do Estado.
O Estado deve garantir os direitos culturais a todos os cidadãos, o que significa oferecer acesso aos bens e serviços culturais, além do direito à criação e à expressão. “Somos todos sujeitos culturais, mesmo que não sejamos todos criadores de obras de arte e de pensamento”, reforça Marilena Chauí.
Os direitos e liberdades culturais usurpados com o processo de colonização, desde então jamais tornaram-se realidade em terras brasileiras. Essas garantias básicas do cidadão podem ser traduzidas por espaços públicos destinados ao diálogo e à troca de conteúdos culturais diversos, seja literatura, música e os mais diversos estímulos audiovisuais disponíveis, além dos que ainda serão gerados a partir dessas interações.
Sem um ambiente favorável à recuperação desses elos perdidos, só possível com a formação e o desenvolvimento de um indivíduo livre, dotado de espírito crítico e capaz de definir-se e identificar-se a partir de referenciais próprios, e não construídos para atender interesses políticos ou mercadológicos, veremos todos os nossos esforços por políticas culturais esvaírem-se e perderem efeito, por sua insuficiência diante deste vácuo cultural.
As políticas de cultura no Brasil têm se relacionado com a questão do financiamento às artes de maneira equivocada e anacrônica. Ainda que tenhamos avançado nos últimos anos em relação à percepção da função pública da cultura e das artes, são poucos os avanços na relação entre Estado e produção cultural.
Diante disso, como lidar com o desafio de desenvolver a capacidade artística da sociedade, incentivando novas possibilidades de recriar o mundo e construir novas utopias e maneiras de lidar com a realidade?
Em primeiro lugar é preciso tirar a arte do lugar incômodo onde se encontra, deixar de ser algo que exige o esforço da sociedade. É preciso compreender a arte como algo que sustenta a sociedade, que dá sentido e propósito para uma morada compartilhada por todos.
Propõe-se, assim, um novo passo em direção à ética nas relações socioeconômicas, com o entendimento de que a cultura é ponto de partida para um projeto de nação, para o desenvolvimento social, para as oportunidades econômicas, mercados potentes, empresas inovadoras, brasileiros capazes, competentes e livres.
O relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, de 2004, coloca os direitos e liberdades culturais no centro da discussão sobre o desenvolvimento: “para que o mundo atinja os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e acabe por erradicar a pobreza, tem de enfrentar primeiro, com êxito, o desafio da construção de sociedades culturalmente diversificadas e inclusivas”.
Para se tornar efetivo como instância de representação e regulação da sociedade, o Estado precisa inserir a cultura em sua agenda prioritária, não somente pelas inúmeras oportunidades que ela representa como elemento de um projeto de desenvolvimento baseado nos valores humanos, mas, sobretudo, por sua capacidade de ativar os organismos de participação social. Para isso, deve reconhecer e estimular a diversidade como elemento de configuração de uma sociedade plural e participativa.
A ideia é ativar a capacidade de ação de governantes e agentes da sociedade civil organizada em torno de uma nova função política para a cultura, superando o aspecto de domínio e forja de uma condição civilizatória determinada, para uma funcionalidade transformadora, de compreensão da própria realidade social, superando e experimentando novos processos de convivência e diálogo entre realidades diferentes e, às vezes, conflituosas.
Faz-se necessária, portanto, certa insubordinação da cultura, em sua função política, aos demais elementos e instrumentos de construção do bem estar social. Em tempos de soberania absoluta dos mercados e do aspecto macro-econômico, precisamos pensar uma re-inversão de valores, colocando o humano em primeiro lugar, e a economia a serviço da co-existência de todas as formas de vida de nosso planeta.
Na mesma direção, precisamos deixar de pensar a educação como uma forma direta e linear de acesso ao mercado, para pensarmos na autonomia e na capacidade de expressão do ser humano, cada vez mais subtraído de sua subjetividade.
O mercado cultural é, ao mesmo tempo, ameaça e oportunidade. Ao ocupar-se do imaginário, gera distorções de percepção deste espaço compartilhado. Por outro lado, oferece a chance rara de dar voz e espaço para o artista na sociedade, numa encruzilhada de sobrevivência e responsabilidade.
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