“Não são só as coisas em si mesmas que são cultura, mas também o conjunto das condições sociais nas quais essas coisas se produzem e são usadas nos objetivos e formas de produzi-las. Hábitos, costumes, rituais e tradições; crenças e esperanças; técnicas, modos e processos; sobretudo valores da ética, e da moral vigente – Tudo isto forma a cultura que, em cada momento histórico, revela o estado das forças sociais em conflito”. A Estética do Oprimido (Augusto Boal).
Os memorialistas, em um claro e impiedoso retrocesso, fazem suas críticas ao governo contra a reforma da Lei Rouanet. Eles lutam pela continuidade do comando privado sobre as manifestações culturais brasileiras. Este comando, além de patrocinado pela mão-de-obra dos trabalhadores, sustenta um pequeno coro e, como numa missão de penitência, beira ao fanatismo. O império de benesses, em nome do sacrifício compulsoriamente extraído na fonte, mantém o trono e, sobretudo preserva a contínua ascensão dos filhos do pensamento da república exclusivista e do eterno sentimento de posse, esquecem-se, no entanto, que a arte não está acima do homem, do cidadão, mas sim a serviço dele.
O argumento caluniador que se valeu das formas mais hipócritas e desumanas em prol da sustentação da escravidão nos embates com abolicionistas era o econômico. Os contrários à abolição argumentavam que o país não suportaria economicamente manter-se de pé não fosse pela manutenção dos horrores do suplício dos negros escravos.
Não foram poucos os jornais da época que, obedecendo a tirania da opinião prostituída, imprimiram suas torpes visões liberalistas, clamaram, como profetas pela continuação, sentenciaram e evocaram o juízo final.
Os mecenas, os padroeiros da renascença escravocrata que dominavam as letras publicadas em nome das mais altas patentes de conduta, contrários à abolição, agiam como legisladores nos jornais, espalhavam o pânico para, assim, manterem sob suas garras e de seus pares, o tenebroso domínio de vidas e, consequentemente, sustentarem na ponta da pena as terríveis mentiras multiplicadas em palavras de falsa inocência e de virtude econômica.
Na defesa de suas teses, os escravocratas postulavam uma identidade de direito divino, com o domínio branco por descendência, como mantenedores da excelência universal em uma Europa brasileira.
Essa visão pedagógica, colonial, patrimonialista faz-se cotidianamente presente no mundo das artes brasileiras e, em pleno século XXI, privilegia como referência e ideário a ser seguido. Em contrapartida, considera como um amontoado de africanismos as múltiplas expressões provenientes dos negros. É essa a postura antropológica das instituições brasileiras de cultura tanto no campo acadêmico quanto nas atas normativas das muitas arenas culturais que buscam, em seu desempenho, paridade com o espírito e a história da mácula européia.
Não se pode permitir que a história da arte brasileira seja penalizada por um monopólio promovido pelo banditismo literário que insiste na intolerância em nome da virtude do progresso.
Não cabe mais acalentar o sonhado eldorado cultural sem dar conta das gigantescas desproporções que o modelo institucional, um mal de época sob a luz da ambigüidade e em nome do medo das más línguas, protege e mantém os armarinhos administrativos em mãos dos cardeais brancos que, caprichosamente, exploram a mentira racista em nome da catástrofe e desonra das artes brasileiras em favor de glórias universais e do sustento tronal do oráculo da verdade e do eterno secretariado cultural brasileiro.
Como podemos falar em democracia cultural no Brasil se o comando da cultura foi tomado por uma quadrilha social que blefa, segrega a cultura negra e mestiça? Essa matéria, hipocritamente, não é visitada por quem ronca grosso contra as tiranias. O Brasil teria um ganho ímpar diante do mundo não fosse a falta de transparência, de coragem, de visão ampla e compartilhada.
A arte e a cultura do Brasil devem ser molas propulsoras de um pensamento extenso de país, para que sejam efetivamente as representantes das massas, do povo, e não de uma casta que se protege em uma teia carregada de tecnicalidade, faz a corte de palavras perversas e assalta o ofício do artista, apontando-o, chantageando-o, sem assinatura, um preconceito latente com ares de heroísmo em nome do flagelo dos príncipes.
Se quisermos evocar profecias, busquemos então a compreensão das galeras e não a exclusividade triunfalista do colonialismo patrocinado, pois isso é de uma visão laica de religiosidade puritana, muitas vezes mais lancinante que qualquer forma de fundamentalismo.
Esse silencioso agrupamento em torno do ideário branco quer sim a participação do negro na cultura brasileira, desde que o comando continue com os de sempre, editando seus textos, aleijando seus mais profundos sentidos e códigos, assim, sustentam por mais um século a oficiosidade autoritária que despreza, calunia a liderança do homem povo. Dessa forma, estará garantida a manutenção dos pilares da estupidez classista de comando irrestrito de um mesmo grupo social herdeiro das lógicas e práticas do tempo do cativeiro.
Nossas instituições culturais são botes salva-vidas das sombras escravocratas que, derrotadas, se constituíram no arquipélago de ilhotas particulares que se interagem em ciladas contra o indivíduo, sobretudo o cidadão negro. Elas reinam carregadas de limites mesquinhos como uma esponja de fel e vinagre, como xerifes da pátria, com a restrição de homens úteis a si mesmos, com o limite criminoso, impondo uma nação prostituída pelas práticas vilipendiadoras de garbo eurocêntrico favoráveis somente ao pensamento absolutista, branco na essência de suas almas e no mais complexo sentimento colonizador.
Um país não se constrói com palavras de requinte fardado. Mas se destrói com a navalha cotidiana de segregação em nome da norma, da constitucionalidade particular, privada, feita nas releituras seletivas e tendenciosas que impõem à maioria negra um lugar na eterna pobreza e marginalidade em prol do desenvolvimento do mundo moderno.
O que assistimos no Brasil é uma sofisticada e inspirada rede de práticas expansionistas, uma elite econômica que, nos últimos trinta anos, se multiplicou em espaços oficiais, em corredores e bastidores do poder político empresarial e mais ainda com a chegada da Lei Rouanet.
Ou o Brasil rompe com este modelo colonial-neoliberal ou será tragado por ele numa viagem sem volta.
Temos que contemplar no Brasil institucionalmente o equilíbrio de forças correntes que produziram um fenômeno de interfecundação absolutamente original nas artes brasileiras por nossa natural miscigenação das três raças. No entanto, as novas forças criativas filhas deste ambiente multiplicador têm sido caladas, privilegiando a europeização do espírito artístico no país. Modelos copiados integralmente neste novo realinhamento de forças econômicas com suas matrizes no coração da Europa que, através da cultura, buscam a política de expansão de suas filiais pelo mundo.
Precisamos ser devolvidos ao ambiente comum nacional, a uma visão de soberania, possível somente com o equilíbrio representativo. Calar a nossa cultura, os nossos tambores, a nossa criação e visão critica, é calar o Brasil, é entregar a nossa bandeira de liberdade à imposição do Velho Mundo.
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