Felipe Lindoso é colaborador de primeira grandeza do Cultura e Mercado. Suas análises detalhadas e precisas sobre a situação da leitura e do mercado do livro no Brasil revelam o conhecimento de quem se dedica há anos a um dos principais problemas estruturais do país.

Recentemente discutimos por aqui o comparativo entre as pesquisas “Retratos da Leitura no Brasil”, realizada em 2000 e novamente em 2008. “Apesar do nome idêntico, as pesquisas são bem diferentes, e trazem resultados diferentes”, postula o consultor.

Como o assunto é sério e merece um pouco mais de cuidado, fizemos o seguinte bate-papo virtual:

Leonardo BrantO que mudou de fato no mercado editorial e nos hábitos de leitura de dez anos para cá?

Felipe Lindoso – A dinâmica do mercado editorial não mudou. Há uma tendência de concentração de editoras e livrarias, a “morte” de pequenas editoras e livrarias e o “nascimento” também significativo de outras editoras – livrarias, nem tanto.

Mudou, entretanto, o patamar da produção editorial. Enquanto em 1990 foram produzidos 22.479 títulos e 239.392.000 exemplares (dados da primeira pesquisa da produção editorial, feita pela Fundação João Pinheiro por encomenda da CBL), em 2009 os números são 52.509 títulos e 386.387.000 exemplares. Ou seja, enquanto a população do Brasil aumentou aproximadamente 21%, a produção de títulos aumentou 133% e a de exemplares 61%.
Isso quer dizer, em primeiro lugar, que aumentou a bibliodiversidade no país – a quantidade de títulos por habitantes ficou muito maisvariada; em segundo lugar, o número de exemplares produzidos também melhorou.

Permanecendo no terreno da produção editorial, em 1990 produzíamos 1,6 livros per capita; em 2009 essa proporção é de 2,05 livros per capita. Note-se que, nesse período a população do país cresceu mais de 30% e a produção de livros per capita ficou bem abaixo disso, na casa do 20%.

LBMas os índices de produção de livros são a mesma coisa que índices de leitura?

FL – Não, o índice de produção de livros per capita não é a mesma coisa que índice de leitura. Isso por várias razões. Por exemplo, uma parte dos livros produzidos é descartada: livros escolares que ficam desatualizados, assim como algumas obras de referência. Por outro lado, uma boa parte da produção anual é somada a dos anos seguintes. O livro que lemos num ano não são necessariamente os produzidos naquele ano.

Para medir os índices de leitura tivemos duas pesquisas, os “Retratos da leitura no Brasil”. A primeira foi feita no ano 2000 e a segunda em 2008.

Apesar do nome idêntico, as pesquisas são bem diferentes, e trazem resultados diferentes.

Na pesquisa do ano 2.000 – da qual fui um dos coordenadores – trabalhou-se com os seguintes parâmetros para definição do universo da pesquisa: a) população maior de 14 anos; b) desses, os que tinham pelo menos três anos de escolarização. Dentro desse universo se procurou descobrir os seguintes dados: a) quantos estavam lendo um livro no momento da pesquisa (e que tipo de livro era esse); b) quantos tinham lido pelo menos um livro nos últimos três meses (e que tipo de livro era esse); c) quantos declararam ter lido pelo menos um livro no último ano (sem especificar necessariamente que livro. Da mesma maneira, foram feitas perguntas sobre compra de livros (quantidade e valor gasto), quantidade de livros existentes no domicílio; e também perguntas sobre a valorização do livro para o entrevistado. Disso tudo resultaram tabelas várias por idade, sexo, renda, escolaridade, porte da cidade onde moravam, local onde compravam livros e muitas mais. A amostra foi estruturada segundo os padrões técnicos normais para uma margem de erro de 5%.

LBQual a razão de se fazer esse recorte da população?

FL – Nas discussões preparatórias com a Adélia Franceschini e sua equipe, que constituem uma conceituada empresa de pesquisas de mercado, consideramos que o corte aos quatorze anos se justificava basicamente pelo seguinte: o leitor a partir dessa idade já possui um grau significativo de autonomia na definição do que lê, quando lê e o que quer ler; os mais jovens, ao contrário, tendem a ler basicamente o que pais e professores indicam para leitura. Essa idade também era a idade limite alcançada, naquela época, pelos programas federais de compra de livros escolares, o PNLD. Os números de livros pela população escolar eram conhecidos, informados pelo MEC. O corte adicional da exigência de três anos de escolarização foi dado pelas pesquisas pedagógicas que mostravam que esse era o número de anos na escola que garantia uma capacidade mínima de letramento.

Ou seja, estávamos procurando o leitor efetivamente alfabetizado e já com um grau de autonomia para decidir o que lia.

Essa pesquisa deu um índice leitura de 1,8 livro lido por leitor/ano.

A pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” de 2008 adotou uma perspectiva diferente. O universo era constituído por toda a população acima de cinco anos de idade, independentemente do grau de escolaridade. Ou seja, a pesquisa buscava abranger o conjunto da população que, de alguma maneira, pudesse estar exposta ao contato com os livros, na escola ou fora dela; incluía também os analfabetos, procurando saber qual a apreciação desses sobre o livro e a leitura; em relação aos mais jovens, inclusive em processo de alfabetização, procurou-se também conhecer a influência da família na formação de hábitos de leitura.

O conjunto das perguntas era basicamente semelhante. As diferenças eram relativamente poucas quanto ao tipo de perguntas feitas nas duas pesquisas, e a quantidade de tabelas geradas também foi semelhante. Essa pesquisa foi feita por equipe do IBOPE.

Essa pesquisa deu como resultado geral um índice de leitura de 4,7 livros por habitante/ano. Só que, nesse número estão computados uma média de 3,4 livros lidos por habitante/ano em livros escolares. Sem esses, a média cai para 1,3 livros por habitante/ano.

Entretanto, para efeitos de comparação, foi feito um recorte da amostra semelhante à da pesquisa de 2000. O resultado, com esse recorte, foi um índice de 3,7 livros por leitor/ano. Ou seja, houve efetivamente um aumento do índice de leitura, e muito significativo, mais que dobrando. Mas não é um aumento de 150%.

Mas mesmo essa comparação é complicada, pois nesse caso não se “expurgou” a quantidade de livros escolares lidos por esse universo recortado.

Não participei da coordenação dessa pesquisa, embora tenha escrito um capítulo do livro que a apresentou ao público e também tenha participado da etapa final de discussão e análise dos dados.

O que importa destacar aqui é que as duas pesquisas são tecnicamente consistentes. Mas, a definição de universos distintos entre as duas torna a compração dos dados muito mais complicada. Ou, dito de outra forma, não é possível nem válido comparar automaticamente os índices de leitura produzidos pelas duas pesquisas.

Infelizmente – e com muita frequência – jornalistas despreparados fazem essas comparações. E, ao fazerem isso, geram “interpretações” absolutamente fantasiosas sobre a questão.

Em resumo, pode-se dizer que a pesquisa de 2008 constata um aumento dos índices de leitura da população brasileira. As diferenças metodológicas, entretanto, tornam difícil se estabelecer com precisão a velocidade desse aumento. Somente quando for feita nova pesquisa, com a mesma metodologia da de 2008, é que podemos fazer comparações mais precisas.

LBAs novas tecnologias da informação e comunicação promovem que tipo dealteração no mercado e no hábito de leitura do brasileiro?

FL – As mudanças tecnológicas (introdução dos e-books e e-readers) ainda são muito recentes para que possam aparecer claramente na pesquisa de 2008. O que é evidente é que a variável educação é muito significativa no aumento dos índices de leitura. Entre 2.000 e 2008 aumentou muito, tanto proporcional quanto em números absolutos, a quantidade de brasileiros com mais escolaridade. A população com nível médio e superior de escolaridade vem aumentando significativamente nos últimos anos. E os dados do MEC mostram que nos últimos quatro anos a expansão do ensino superior foi notável. Isso provoca aumento nos índices de leitura, sem dúvida nenhuma.

Nos últimos três anos (situação ainda não captada pelas pesquisas) também aumentou de forma muito significativa o investimento do governo federal na aquisição de livros para bibliotecas públicas. Isso certamente se refletirá de modo positivo nas próximas pesquisas.

LBDiante da situação atual do livro e da leitura no país, quais as prioridades para o próximo presidente?

FL – No artigo que publiquei recentemente no Cultura e Mercado sobre e-books e e-readers chamei atenção para uma janela de oportunidade que se abre com a introdução das novas tecnologias. Se o MEC, no novo governo, implementar a adoção dessas novas tecnologias, os custos de logísticas serão muito reduzidos, o que permitirá a distribuição, para a população escolar, de mais livros, inclusive de literatura e ensaios. Essa ação dependerá também do avanço dos programas de inclusão digital.

O grande desafio continuará sendo o da expansão da rede de bibliotecas públicas. É fundamental manter o ritmo da expansão dos investimentos nessa área que se verificou nos últimos dois anos. Se isso acontecer poderemos observar, no final do próximo mandato presidencial, uma situação muito melhor.

O aumento da renda também contribui para a melhoria dos índices de leitura. Mas, como venho dizendo há anos, a grande questão do acesso ao livro e à leitura não se reduz à compra de livros. A grande questão é o do acesso da população aos livros e à leitura. E isso significa uma expansão muito maior e com maior qualidade (equipamentos, formação de pessoal, informatização, etc.), do sistema de bibliotecas públicas no Brasil.


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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