O maior evento de artes do Brasil e um dos mais respeitados do mundo, a Bienal Internacional de São Paulo chega à sua 28a edição concretizando-se como a melhor metáfora para o momento vivido pelas políticas para as artes. A “Bienal do Vazio”, como foi apelidada, pretende discutir o inexistente institucional das bienais e talvez o vácuo da presença do Estado no segmento. Gosto, desde o início, da proposta dos curadores. Mas saí da coletiva de imprensa com a impressão de que o vazio é também conceitual, forjado à custa da falta de recursos e da fragilidade institucional. Tive essa certeza quando ouvi o alerta da curadora adjunta, Ana Paula Cohen, sobre a ameaça de ataque dos ativistas que realizaram recentemente uma intervenção da galeria Choque Cultural.

Demonstrando preconceito e desconhecimento a respeito de um dos mais importante movimento das artes visuais da atualidade, a Bienal transforma o polêmico e ousado movimento em caso de polícia. Um release de imprensa no website da Bienal aponta que “há boatos de que um grupo de pichadores está se reunindo para pichar o segundo e terceiro andares do pavilhão da Bienal, incluindo as obras dos artistas. Uma jornalista da Folha Online perguntou na coletiva de imprensa da manhã de ontem se há receio de atos de vandalismo a exemplo do que houve recentemente na Galeria Choque Cultural. A curadora Ana Paula Cohen disse que ouviu boatos de que o mesmo organizador da pichação da galeria de Pinheiros está recrutando pessoas para pichar o pavilhão, ‘inclusive está pagando meninos da periferia, que podem não saber no que estão se metendo, pois haverá segurança no parque'”.

Cris Arenas, do Instituto Pensarte, que é artista plástica e blogueira de Cultura e Mercado para assuntos de artes visuais, esteve comigo na coletiva e irá nos presentear uma análise mais profunda a sse respeito. Mas o que deu para perceber é o enorme abismo que separa a institutição e sua curadoria do cotidiano das artes na cidade de São Paulo, tamanho o reducionismo e o preconceito com que a “periferia” foi tratada. Como sempre, no cacetete.

O grupo, chamado “PiXação: Arte Ataque Protesto” e liderado por Rafael Guedes Augustaitiz, conhecido como Rafael Pixobomb, tem como meta protestar contra a comercialização da arte de rua. Em junho eles picharam o prédio do Centro Universitário Belas Artes, onde Augustaitiz estudava antes de ser expulso pelo ato, e em setembro danificaram vinte obras da Galeria Choque Cultural.

A intervenção já se tornou a principal atração da Bienal, ainda que não se concretize de fato, pois escancara a precariedade do diálogo da instituição e sua curadoria com a sociedade.

A mostra
Segundo a organização, a edição deste ano promete propor ao público visitante a oportunidade de participar e contribuir ativamente para o processo de reflexão sobre o modelo e a cultura das exposições bienais no circuito internacional de arte e o papel da própria Bienal de São Paulo neste contexto. Com um formato distinto das edições anteriores, “a mostra tem como objetivo desenvolver um trabalho investigativo e crítico, que acompanhe as transformações ocorridas não apenas no lugar em que se inscreve, mas também no plano internacional”.

Espera-se, com essa nova proposta que, ao final dos 42 dias de exposição, a Bienal de São Paulo reencontre sua especificidade e se coloque novamente “em vivo contato” com seu tempo. Com 42 artistas convidados, de 22 países, e quatro projetos especiais, os curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen propõem diferentes ferramentas para essa tarefa. Considerando que parte das práticas artísticas contemporâneas não se restringe à produção de um só objeto passível de contemplação em um mesmo tempo e lugar, a mostra pretende articular às diferentes estratégias de exposição, debate e difusão.

Mais do que isto, a instituição parece lutar contra a crise que vem atrevassando, ao propor um evento enxuto, com muita reflexão sobre o passado. Com uma ousada decisão de deixar o segundo andar do pavilhão, com uma área de 12mil m², inteiramente livre, a exposição deste ano terá 42 artistas convidados contra mais de 120 da edição passada. Em relação ao orçamento, as diferenças também são enormes. Esta edição teve cerca de R$ 9 milhões de investimento contra os R$ 18 milhões investidos há dois anos.

Estrutura
A exposição, que acontece de terça a domingo, das 10h às 22h, com entrada livre, se organizará a partir de componentes diferentes, distribuídos pelos quatro andares do Pavilhão. O andar térreo do Pavilhão Ciccillo Matarazzo será transformado em uma grande praça pública, retomando a proposta original do arquiteto Oscar Niemeyer para o Parque do Ibirapuera em 1953. Esse espaço terá intensa programação durante as seis semanas do evento, e abrigará apresentações de música, dança, performances, cinema – sempre a partir de propostas que entendam a “praça” como um espaço de convívio social no tempo presente –, promovendo o contato entre público e artistas e consolidando a mostra como um espaço social temporário.

Ao contrário das bienais anteriores, que transformaram todo o interior do pavilhão em salas de exposição, desta vez o segundo andar estará completamente aberto, revelando sua estrutura, com o objetivo de oferecer ao visitante uma experiência física da arquitetura do edifício. Para a organização, é nesse território do suposto vazio que a intuição e a razão encontram solo propício para a busca de outros sentidos, de novos conteúdos. Intitulado “Planta livre”, o espaço refere-se ao conceito criado por Le Corbusier, em 1926, para definir um dos cinco princípios da nova arquitetura: com o uso de pilotis e o concreto armado, as paredes não são mais usadas na sustentação dos andares de um edifício. Estes princípios estão na base da arquitetura moderna brasileira.

Outro objetivo da 28ª Bienal de São Paulo é chamar atenção para o Arquivo Histórico Wanda Svevo, o único e mais valioso patrimônio da Fundação Bienal de São Paulo, a sua memória, e principal fonte de referências para qualquer reflexão e programa que vise a uma avaliação e reciclagem da instituição. A ocupação do terceiro andar busca ativar a história deste arquivo, que foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo, e que guarda a memória não somente dos 57 anos da Bienal de São Paulo, mas de todo um percurso da cena cultural brasileira.

Já os artistas e obras selecionadas para a exposição no terceiro andar tem como proposta pesquisar os limites entre realidade e ficção, entre construção de documentos e verdades instituídas, entre memória pessoal e história coletiva. Partindo de diferentes perspectivas, os projetos tem como objetivo oferecer novas leituras e interpretações sobre alguns aspectos da história da Bienal. A idéia do espaço expositivo montado no terceiro andar é apresentar um ambiente introspectivo – mais próximo ao tempo da biblioteca ou do arquivo do que ao tempo das grandes exposições e da indústria cultural.

Ganhando grande destaque na mostra, o espaço Vídeo Lounge pretende conectar os acontecimentos da praça com o campo da reflexão e da pesquisa. Organizado por Wagner Morales, ao longo de seis semanas, cerca de 150 títulos serão exibidos nas 10 telas situadas no primeiro andar do pavilhão ou projetados no auditório criado no terceiro andar do prédio. A seleção procura contemplar a produção videográfica das últimas cinco ou seis décadas, trazendo pela primeira vez ao Brasil obras clássicas, como por exemplo os programas realizados por Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville para a televisão nos anos 70.

Ciclo de conferências
Desde junho, a organização da mostra vem promovendo um ciclo de conferências da 28ª Bienal. A plataforma está articulada a partir de quatro temas. O primeiro: A Bienal de São Paulo e o meio artístico brasileiro: memória e projeção – um conjunto de relatos orais com as memórias, avaliações e expectativas de profissionais sobre a instituição e suas realizações –; foi realizada pelas quintas-feiras à noite, no auditório do Museu de Arte Contemporânea da USP, dentro do prédio da Bienal. Com a inauguração do evento, o território de reflexão passa a ser realizado, até dezembro, em um auditório criado pelos arquitetos Felipe Crescenti e Pedro Mendes da Rocha dentro do terceiro piso do pavilhão. A continuação contará com seminários Backstage – com profissionais responsáveis pelas agências governamentais e organizações privadas que financiam em grande parte a realização de mostras periódicas internacionais, promovendo novas formas na política das nacionalidades; Bienais, bienais, bienais… – composta por diretores e curadores, pretende organizar, por meio do depoimento de diretores e curadores, um inventário de tipos e categorias de mostras sazonais, seus diferentes objetivos e modos de desenvolvimento; e História como matéria flexível: práticas artísticas e novos sistemas de leitura – que pretende abrir uma reflexão sobre práticas artísticas contemporâneas que propõem novos sistemas de articulação de idéias e projetos, em diferentes tempos e espaços, criando instrumentos de mediação específicos entre o discurso artístico e/ou curatorial e um público interessado. É ainda parte dessa plataforma uma série de conversas com artistas que se relacionam com a história da Bienal de São Paulo. O site da 28ª Bienal será alimentado com relatos de todas as conferências e vídeos.

Além disso, a 28ª Bienal contará com quatro publicações. O Jornal 28b – distribuído semanalmente junto a um jornal gratuito com circulação em toda a cidade de São Paulo – , que traz a programação da mostra, textos críticos, artigos e intervenções de artistas. O conjunto completo de nove números formará o catálogo final da exposição. O Guia da Bienal reúne entrevistas dos artistas sobre os projetos desenvolvidos para o evento e uma outra publicação irá apresentar uma coletânea de textos sobre a mostra publicados desde 1951, criando um recorte da memória crítica da Bienal de São Paulo. Também está prevista uma seleção de ensaios, comunicações e depoimentos especialmente encomendados no processo de realização da 28ª Bienal.

A página na web da 28ª Bienal também permitirá ao público participar ativamente do debate sobre a Bienal de São Paulo através da adição de documentos e a definição de percursos e leituras individuais do evento. Além da programação completa da exposição, o site irá disponibilizar os registros em vídeo das conferências e um banco de dados com informações sobre os artistas participantes e seus projetos.

Leonardo Brant, com a colaboração de Carina Teixeira


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

2Comentários

  • XTO, 27 de outubro de 2008 @ 11:54 Reply

    O ato dos pixadores também pode mostrar como existe necessidade de preencher esse vazio da Bienal. Acho que deveriam liberar logo o espaço pra quem quiser expor… E isso também faz pensar como o vazio incomoda, como não se consegue confrontar o vazio, o silêncio. Ansiedade pós-moderna bem mala. Vai dormir, pessoal.

  • valério cicqueira, 30 de outubro de 2008 @ 20:36 Reply

    Temos que ouvir a música do Chico Buarque: Copo Vazio. Ela tem muito a dizer. Levar o vazio a sério, seria muita ousadia. E foi.

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