Durante uma palestra na ensolarada Fortaleza, dez anos atrás,recebi um convite um tanto inusitado: duas produtoras organizavam um Festival de Jazz e Blues durante o carnaval. Como se não bastasse, outra informação: o dito evento ocorre na cidade serrana de Guaramiranga, ao sul de Fortaleza, em condições climáticas diferentes das que conhecemos em cidades das região nordeste: frio (temperatura chega a 13 graus, equivalente a “neve” para os irmãos da região). Outra peculiaridade: elas me conheceram num seminário onde descobriam mais sobre a lei de incentivo à cultura, que elas usavam para obter financiamento. Confesso que achei tudo estranho e guardei no subconsciente.

No final do ano passado um amigo, que não é muito chegado em carnaval, me convida novamente pro inusitado “vamos a Guaramiranga no carnaval ouvir jazz de ótima qualidade?”. Neste momento, não tive duvida, era o segundo chamado: emiti minha passagem e fiquei imaginando o que seria esse lugar. Que curiosidade!

Cheguei em Fortaleza na sexta a noite e viajei para meu destino no sábado. No caminho, um belo almoço na subida da serra do Baturité. Chegando no prometido local foi o tempo para um banho e sair para checar a primeira noite.

Inacreditável. A área toda produzida com tenda, com vista para árvores e montanhas, foi montada especialmente para o evento e nomeada de “cidade do jazz e blues”. A organização e o programa estavam impecáveis: atrações internacionais de qualidade com  brasileiros de ponta. Imaginem o filho de John Coltrane, Ravi, se apresentando ao saxofone com um jovem pianista israelense. E muitos outros feras: o cubano Omar Puente, o gaúcho Yamandú Costa e talentos americanos e brasileiros reunidos. Ao final dos concertos as jam sessions rolavam até 3h da madrugada. Tudo lotado: quase 1000 pessoas em cada show e mais que isso nas madrugadas, abertas ao público e gratuitas. Estrutura: não deixa nada a desejar para os grandes festivais de jazz do mundo: som, acústica e luz espetaculares.

Ao longo do dia em passeio pela cidade, nada de “mela mela” (guerra de farinha comum nos carnavais do interior do Ceará): grupos iniciantes de jazz tocando em restaurantes, ensaios e escolas abertas recebendo oficinas com grandes instrumentistas. A cidade, em doze anos de festival, incorporou o evento e tem nele sua marca. Artesãos de toda região comentavam o retumbante sucesso comercial da instalação de suas tendas nesse período. Tudo harmônico e coerente.

Na parede do festival as marcas do Ministério da Cultura (Lei Rouanet) e dos patrocinadores. O evento é financiado inteiramente com incentivos fiscais, gera empregos e renda numa região carente de atividades desse tipo. Ponto a favor para os incentivos culturais!

Por fim, o amadurecimento da vocação (cidade do jazz e blues) faz de Guaramiranga hoje uma cidade que encontrou seu nicho de desenvolvimento cultural, no time das chamadas “cidades criativas”.

Quatro dias de música, chuva e sol, friozinho e boa comida foi o que precisava para lavar a alma neste carnaval. Volto descansado e com uma vontade danada de dividir essa sensação boa que tive por lá. O Brasil tem coisas incríveis acontecendo e muita gente fazendo coisa muito bacana. Torço para viver muitas outras experiências sensacionais como essa.

 


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Advogado, sócio do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados. Presidente das comissões de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB/RJ e autor do livro “Guia do Incentivo à Cultura".

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