Minha cara amiga Ana de Hollanda,
Te escrevo primeiramente para cumprimentá-la pela nomeação de Ministra da Cultura. Que bom que o escolhido tenha sido uma artista! Que você tenha ânimo, saúde e sorte para as tarefas que tens a cumprir. Se precisar, toque os tambores, estaremos a posto para entrar em cena e defender os interesses da cultura do Brasil!
Sua tarefa não será fácil, sabemos. Você – permita-me chamá-la de você apesar da cerimônia do cargo sugerir que eu a chamasse de Vossa Excelência ou algo do gênero, nesse caso escrevo a companheira, não protocolarei a carta no MinC – então, continuando, você vai suceder uma gestão extremamente meritória. Iniciada por outro colega da MPB, Gil, que lançou as bases do que podemos chamar de fundação do MinC, e continuada pelo Juca, que antes já ocupava a estratégica função de secretário executivo de seu antecessor.
Quando Gil foi nomeado me lembro de todos terem ficado apreensivos com a indicação. Era como se Lula tivesse tirado um coelho da cartola, ninguém esperava e, num primeiro momento, ninguém acreditou. Foi preciso um tempo para que a gestão Gil se impusesse como uma gestão qualificada e que finalmente daria ao MinC um status muito superior ao que tinha até então.
Muitos são os legados positivos da gestão Gil/Juca que precisam ser preservados e aprofundados. Muitos mesmos. Pontos de cultura,valor ao patrimônio imaterial, apoio aos museus (IBRAC), desburocratização, e muitos mais. Você foi uma espectadora atenta dessas mudanças, num momento mesmo foi agente dessas mudanças, como coordenadora de música da Funarte na gestão do nosso companheiro Antonio Grassi.
E é justo sobre a área de atuação da Funarte, ou seja, as artes, que quero lhe dirigir algumas palavras, pois considero que, no mais, se souberes preservar o que foi conquistado até aqui no âmbito geral do Ministério, e ainda, se você aprofundar a discussão da Lei do Direito Autoral e do temerário fim da Lei Rouanet, tirando a discussão do assembleismo que marcou a fase final da gestão Juca – que muitas vezes deixava o debate resvalar para um maniqueísmo do tipo excluídos x privilegiados, ricos x pobres, Sudeste x Nordeste –, certamente chegaremos a conclusão que é possível ter consenso em vários tópicos das duas discussões, e a partir deles melhorar ambos os projetos – se fores nessa linha, como traduzo das informações contidas no seu discurso de posse e nas primeiras declarações a imprensa, continuaremos avançando.
É o próprio Juca quem admite: arrepende-se de não ter dado mais atenção às artes, justamente a área de atuação da FUNARTE. Você viveu a experiência na pele: de fato a alta direção do MinC bateu de frente com a direção da Funarte por longos seis anos – de oito de governo. Primeiro com a gestão Grassi e depois com a gestão Frateschi. Somente nos dois últimos anos, com o querido companheiro Sérgio Mamberti à frente da Fundação, parece ter havido entendimento e parceria entre os dois órgãos. Nisso tudo quem perdeu, quem deixou de ter avanços mais significativos do que os alcançados até aqui, fomos nós, os artistas.
Portanto, um olhar atento para essa área parece ser de fato uma das prioridades da nova gestão, aconselhada tanto pelo ministro que sai como mencionado por você.
A Funarte tem uma longa história de lutas e conquistas para a classe artística brasileira. Criada em 1975 sua existência é anterior a do próprio MinC, quando era um departamento do Ministério da Educação e Cultura. Nos anos 70 e 80, mesmo ainda sob a ditadura militar, soube ser a casa dos artistas fomentando a cultura com diversos projetos relevantes, entre eles o Pixinguinha.
No entanto, desde a famigerada extinção dos órgãos ligados à cultura no governo Collor (1990), a Funarte, recriada pelo governo Itamar (1994) não conseguiu se colocar da maneira que esperávamos no cenário cultural. Mesmo contando com os avanços das últimas gestões, notadamente a do Grassi e a do Mamberti, mesmo assim a estrutura da Funarte parece não se adequar mais à nova realidade do movimento artístico. E não é a toa. A Funarte foi criada em 1975 com atribuições que hoje pertencem ao MinC. Ela foi fruto de um processo histórico do desenvolvimento das instituições governamentais de cultura, que se iniciaram no antigo Ministério da Educação e Cultura e do seu Programa de Ação Cultural (PAC) de 1973. Durante muitos anos o teatro teve uma administração autônoma, no Serviço Nacional de Teatro e mais tarde com a FUNDACEN (Fundação Nacional de Artes Cênicas). Todas essas instituições e os movimentos que as criaram são parte de um processo histórico que deságua na criação do MinC. É o MinC e não a Funarte, o herdeiro de fato e de direito desses movimentos. O fato da Funarte ter sido recriada paralela a recriação do MinC e sua direção ter sido mantida no Rio de Janeiro, enfraqueceu sobremaneira as suas funções, pois elas já tinham outro fórum para desenvolver-se. Ficamos, as artes, acuados no Rio, nostálgicos da nossa cidade capital cultural, distrito federal, enquanto em Brasília as coisas de fato aconteciam (pelo menos quando aconteciam…)
Vamos usar a sua área como exemplo: a maior representação que a música brasileira tem no governo federal – que patrimônio maior o povo brasileiro tem que não a sua música? Talvez só a nossa flora e nossa fauna, no mais a música é o nosso maior patrimônio, um dos mais preciosos instrumentos de formação de identidade nacional! – pois bem, a mais alta representação oficial desse importantíssimo e estratégico segmento da cultura brasileira é… um cargo de terceiro escalão no ministério… Cargo esse que já foi ocupado por você, que portanto sabe muito bem das limitações que lhe foram impostas por essa situação inacreditável. Nas artes cênicas a mesma coisa. Ou seja, os gestores que deveriam lutar pelos nossos interesses, que deveriam estar com equipes de planejamento, com orçamento condizente com a importância da área, estrutura de funcionamento para abarcar todas as modalidades do fazer artístico em todo território nacional, ao contrário, são pessoas que trabalham com equipes mínimas (competentes e heróicas!), que estão subalternos ao presidente da Funarte – e não diretamente ao ministro (quantas vezes você despachou com o Ministro quando era assessora?), enfim, que não tem estrutura, condições técnicas e orçamento para levar adiante os enormes desafios que temos pela frente.
É preciso reencontrar o papel da Funarte nos tempos atuais. Mas é preciso desde já entender que a música e as artes cênicas não cabem mais dentro dela. Esses segmentos merecem e precisam de orgãos autônomos, com direito a assento em Brasília, sede do ministério e centro do poder, com dirigentes nomeados diretamente pelo ministro e com estrutura e orçamento compatível com sua funções. Sim, é mais do que urgente criar a Secretaria de Música e a Secretaria de Artes Cênicas, dentro da estrutura do MinC.
No início do governo Lula, essa era a proposta do Gil. Havia a Secretaria de Artes Cênicas e Música, herdada do governo anterior. Por conta da desconfiança que tínhamos da nova gestão (Gil), e da inutilidade da Secretaria nos anos anteriores (governo FHC), houve um consenso equivocado da classe artística – do qual eu partilhei – de que o melhor seria ficarmos sob a responsabilidade da Funarte do que de uma secretaria que até então não tinha mostrado a que veio e um ministro que até então desconfiávamos da capacidade de gerir o ministério.
Hoje considero que cometemos um erro histórico. Afinal, o centro nervoso da formulação e implementação das políticas públicas para as artes esteve no MinC e não na Funarte, como não poderia deixar de ser. Estou falando genericamente. Não quero desconsiderar o trabalho desenvolvido pela Funarte nos últimos anos. Na minha área, o teatro, a criação do Prêmio Myriam Muniz na gestão Grassi e o trabalho de articulação dos editais do Pró-Cultura, na gestão Mamberti, levada a cabo exemplarmente pelo diretor de CEACEN Marcelo Bones, foram tábuas de salvação preciosas. Apesar disso, tenho a convicção de que se estivéssemos, desde o inicio da gestão Gil, representados dentro do primeiro escalão do ministério, teríamos alcançado avanços mais significativos.
É só uma questão de ajuste, pois, na verdade, os dois principais instrumentos de gestão e de implementação das políticas públicas para o setor, já estão diretamente ligados ao MinC, e não à Funarte. Falo do Fundo Nacional de Cultura, sobre o qual recai todas as expectativas de que finalmente o Minc tenha editais que atendam as mais variadas demandas de produção, fomento, circulação, apoio a grupos estáveis, pesquisa, etc, enfim todas as modalidades do fazer artístico, que não encontravam sustentação na lei de incentivo, e, ela mesma, a lei Rouanet. A Funarte, é claro, tem desenvolvido o papel de assessoramento técnico de ambas as fontes. Mas não é ela, nem seus dirigentes, que são os protagonistas dessa estrutura. E deveriam ser.
Você sabe que iremos enfrentar dias difíceis. Não só por ser início de governo, e isso sempre é complicado, mas, na real, a cultura, apesar dos avanços, continua sendo o patinho feio do governo. Dos 36 existentes, o Ministério da Cultura terá o terceiro menor orçamento em 2011, à frente apenas dos da Pesca e do Esporte. Chega a ser fantasioso o discurso do ministro que sai de que o governo assumiu a cultura como uma prioridade… Credito essa e outras falácias a verve de líder estudantil secundarista do nosso querido Juca, a quem, apesar de várias divergências, presto minha homenagem pessoal, reconhecendo-o como uma figura fundamental para o extraordinário desenvolvimento do MinC nesses últimos oito anos. Mas apesar das conquistas, a cultura continua sem ser prioridade, está longe disso, e a sua luta para estabelecer-se como ministra, pelo orçamento da pasta – para que, no mínimo no primeiro momento, não haja retrocessos, será dura.
Uma de suas primeiras medidas, a nomeação do Grassi para voltar a Funarte, me pareceu acertadíssima. Grassi foi um bom gestor do órgão, reorganizou a Funarte, criou o Prêmio Miriam Muniz e o Klauss Vianna. Com você à frente da música, tivemos a volta do projeto Pixinguinha. Grassi é querido pelos funcionários da casa e respeitado pelos artistas. Por essas qualidades acredito mesmo que ele seja capaz de fazer as mudanças que precisamos, ou seja, fazer a passagem das áreas de artes cênicas e da música, para secretarias no corpo do ministério, para que essas áreas possam, finalmente, assumir um papel condizente com a sua importância dentro do Estado Brasileiro.
Despeço-me mais uma vez cumprimentando-a pela disposição que já demonstraste para as enormes tarefas que tens pela frente. Até agora só vejo de meus companheiros de ofício demonstrações de confiança na sua liderança. Ao longo dos próximos anos certamente teremos a oportunidade de conhecer-nos pessoalmente e discutir estas e outras questões. Especialmente, espero conversar sobre uma política do MinC voltada para o teatro infanto- juvenil – tenho a honra de presidir o Centro Brasileiro de Teatro para Infância e Juventude/CBTIJ – segmento que nos deu tantos artistas importantes e fundamentais, que é hoje responsável por uma imensa gama de artistas espalhados por todos os estados brasileiros, mas que no entanto, não se vê reconhecido no nosso MinC, com o planejamento de políticas voltadas para o setor. Sua proposta – em boa hora! – de interação com o ministério da Educação, certamente nos levará – nós, arte-educadores e criadores de arte para crianças e jovens – a ganhar uma posição de destaque dentro do seu trabalho. A criação da Secretaria de Artes Cênicas terá, obrigatoriamente, que contar com um departamento voltado para esse segmento tão representativo do teatro brasileiro.
Fique com meu abraço e acima de tudo…
MERDA para você!
Dudu Sandroni.
*Íntegra do artigo publicado dia 22/1 no caderno Prosa e Verso, do jornal O Globo