Há poucos dias participei do espaço de entrevistas do Wikieducação/ Educartis/ Cultura e Mercado, com Leonardo Brant, sobre o tema “Cultura e Orçamento”. Falávamos lá na necessidade da cultura conquistar consensos na sociedade sob pena de ficarmos marcando passo.
A primeira questão proposta pelo Leo foi uma avaliação da gestão Gil. Considerei que o marco geral – certamente não o único – foi a batalha por 1% do Orçamento da União para o Ministério da Cultura. Batalha perdida pelo Ministro mais popular desde que foi criado o MinC na década de 80. O que nos leva à óbvia conclusão de que não se trata de tema menor. Se Gil não conseguiu, quem conseguirá?
E buscando nos livros as elaborações sobre política, economia e orçamento público eis que de fato realmente o tema se apresenta em sua forma real, maior e não menor, complexa, de modo que se pode perceber logo quão ingênua é a idéia de que alguém – seja ele quem for, a celebridade que for e até mesmo o Presidente da República com todos os seus poderes – poderia solucionar o caso com um simples ato legal, com um decreto ou uma MP (Medida Provisória), por melhor que sejam suas intenções.
E esse raciocínio não é para desestimular aqueles que lutam e querem seguir lutando por mais recursos públicos para investimento em cultura, mas para contribuir com a reflexão necessária, um fósforo no escuro túnel.
Na entrevista, referi o trabalho Políticas Públicas e Orçamento Público – Conflitos e Cooperação (publicado em Reforma Política e Cidadania – Instituto Cidadania e Fundação Perseu Abramo), de autoria de Celina Souza, professora da Universidade Federal da Bahia.
Celina inicia lembrando que “as últimas décadas registraram o surgimento das políticas públicas”, e conseqüentemente das instituições a elas vinculadas, incluindo nisso a legislação relativa. Nestas mesmas últimas décadas também surgiram as políticas fiscais restritivas “que passaram a dominar a agenda da maioria dos países, em especial dos em desenvolvimento”, destaca, acrescentando que, “do ponto de vista da política pública e do orçamento público, o ajuste fiscal implica na adoção de orçamentos equilibrados (…) e restrições à intervenção do Estado na economia e nas políticas sociais”. E provoca:
– Como desenhar políticas públicas capazes de impulsionar o desenvolvimento econômico e de promover a inclusão política e social de grande parte de sua população (dos países em desenvolvimento e de democracia recente, onde isso ainda não foi minimamente resolvido), ante a realidade orçamentária de recursos escassos?
E segue Celina. Ela nos alerta para o fato de que as análises sobre políticas públicas e orçamento público implicam em responder à questão sobre o espaço que cabe ao Estado nas decisões sobre estes dois processos. E aí entra numa questão fundamental para o nosso ramo das políticas públicas de cultura, analisando os implicantes decisórios nas questões orçamentárias:
– Os decisores agem e se organizam de acordo com regras e práticas socialmente construídas, conhecidas antecipadamente e aceitas (citação de MARCH, James G. e Olsen, Johan P. Democratic Governance. Nova Yorque, The Free Press, 1995, p.28-9).
Analisando os conflitos entre as diversas correntes teóricas sobre gastos públicos – por exemplo, sobre aplicação “racional” ou “irracional” dos recursos – afirma que, “diferentemente dos políticos (…) e dos ministros responsáveis por programas setoriais ou sociais, eminentemente ‘gastadores’, os ministros da Fazenda são aqueles que podem impor restrições à busca do auto-interesse (político) dos parlamentares e dos demais ministros. Por terem essa capacidade, eles passaram a representar os interesses do contribuinte médio contra os grupos de interesse específico (…)”. Obviamente que dentro do quadro ideológico dominante. Poder que se configurou cada vez mais forte nos últimos 15 anos (e que inclusive impulsionou FHC nos tempos de Itamar) e que passou a ser compartilhado com o Ministro do Planejamento e, principalmente, com o Presidente do Banco Central.
Num outro parêntese: recordemos que o Presidente Lula recomendou ao novo Ministro Juca Ferreira, na solenidade de sua posse e em público, que aprenda os caminhos para acessar essa gente.
Mas, voltando à Celina, sobre a sempre tão polêmica carga tributária brasileira, esta, segundo ela, – embora apareça como a mais alta na América Latina – está abaixo dos países industrializados e dos países do hemisfério Norte. De qualquer modo, a arrecadação federal cresceu acima das expectativas nos últimos anos, em parte produto da criação de impostos como a CPMF (hoje extinta) e em grande parte graças aos resultados do boom econômico.
Eis que – no andamento do ensaio – surgem as questões chaves: mas para onde estão indo os recursos e como estão sendo tomadas as decisões sobre sua aplicação? Celina responde:
– Os recursos do orçamento público têm sido destinados, cada vez mais, ao pagamento dos juros da dívida e ao cumprimento dos acordos com os credores nacionais e internacionais (…). E do ponto de vista da despesa por programa, vem existindo também clareza em relação a priorizar a área da saúde (…). Existem, assim, duas grandes políticas públicas claramente definidas, o que se confirma pelo volume de recursos a elas alocadas nas últimas leis orçamentárias (ela analisa dados de 1998/99 que seguem, dez anos depois, com uma divisão em percentuais por área bastante similares aos orçamentos dos tempos mais recentes).
As duas grandes políticas públicas são o pagamento dos juros da dívida com o conseqüente cumprimento dos acordos e a área da saúde, ao que aporto uma terceira área não tratada no ensaio de Celina, e que se coloca na segunda posição entre os gastos por programas no orçamento federal: a educação, somando-se os gastos com o ensino fundamental e superior. Quadro que se repete nos demais níveis de governo – uma vez que grande parte dos Estados brasileiros encontra-se diante de grave crise no equilíbrio de suas contas (o Rio Grande do Sul e Alagoas, os mais gritantes do momento) e uma vez também que a “convenção” sobre as prioridades – incluindo todos os compromissos já assumidos pelos governos nestas áreas – se reproduz no âmbito local (estadual e municipal).
Há, portanto, já há muitos anos, um cenário estabelecido e aceito pela sociedade no que tange a divisão dos recursos públicos, especialmente na priorização do cumprimento dos acordos nacionais e internacionais, nos investimentos em saúde e em educação. Cenário esse agravado pela escassez de recursos (o que se configura especialmente pelas diretrizes da gestão macro-econômica do país), funcionando como um repressor imbatível para a ampliação do alcance das demais políticas públicas.
No caso da cultura, a questão se mostra ainda mais complexa, quando se constata que – diante dos parcos recursos que restam para todas as políticas públicas, excetuando-se a saúde e a educação, há uma gigantesca disputa pelos farelos do pão. Cultura versus proteção ao trabalhador, assistência social, defesa, ciência e tecnologia, transporte, infra-estrutura, segurança, meio-ambiente, turismo, esporte, etc.
Reside aí um dos problemas centrais do tema Lei Federal de Incentivo à Cultura. Vamos aprofundar nos comentários dos leitores e nos próximos artigos em Cultura e Mercado.
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