“É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar” diz o ex-ministro Gilberto Gil. A ausência de políticas para a valorização da arte, a disfunção das bienais, museus e seus curadores em relação à coisa pública, a crise de setor financeiro e o consequente deslocamento dos sistemas de apropriação da arte e a criminalização de manifestações artísticas em espaços públicos são sinais inequívocos do esvaziamento do copo. Por outro lado, pode significar a retomada necessária do tempo e do lugar da arte em nossa sociedade.
A atitude do Ministro da Cultura em busca de uma resolução sob a ótica cultural para o encarceramento da jovem ativista que realizou intervenção durante a “Bienal do Vazio” é exemplar e coloca o ministério no eixo central da pauta social.
Resta saber se estamos de fato começando a enxergar uma nova função política para a cultura, mais ampla, assertiva, transformadora, ou apenas mais uma jogada de marketing político: copo cheio ou vazio?
Por que não tratar a economia como um fenômeno cultural? Pois não é disso que estamos falando, uma cultura do consumo dominando a cultura de vida? E a violência, o tráfico, os conflitos sociais, a segregação racial, não são questões seculares que guardam conexão direta com a formação cultural do povo brasileiro? Por que resolver essas questões com política penitenciária?
Isso para não falar na educação, como processo cultural dos mais efetivos. Ao contrário disso, vem agonizando há séculos como estrutura estanque e distante das diversas realidades culturais brasileiras, subordinando todos ao olhar enclasurado do Planalto Central.
E a saúde, gerida em torno dos interesses das indústrias alimentícias, farmacêuticas, hospitalares e de planos de saúde privados, quando deveria reconhecer e distribuir informação sobre modos de vida e conhecimentos ancestrais sobre o uso de plantas, alimentos e práticas saudáveis, presentes sobretudo em nossa rica cultura indígena e afro-brasileira. Prefirimos tratar de doença a tratar de saúde. Uma questão tão grave quanto dar tratamento de segurança pública para uma atividade artística realizada dentro de uma instituição cultural.
Há um copo vazio nisso tudo: a decadência do serviço público e sua subordinação à lógica mercadológica. Um nazismo disfarçado, que se instaura subliminarmente em cada relação humana pautada pelo interesse econômico.
Basta refletir: quem tem o poder de estabelecer o que é e o que deixa de ser arte hoje no Brasil e no mundo: a mídia, os museus, os curadores, os galeristas, as corporações? E quem tem o poder de criar e disseminar os referenciais simbólicos compartilhados por toda sociedade: a igreja, as cadeias de TV, o governo, a universidade?
E uma possibilidade de encher o copo, transcendendo essa lógica linear e esquizofrênica, que coloca em risco todas as formas de vida de um planeta em nome de um único símbolo, materializado em forma de papel-moeda. Esta possibilidade é a valorização da arte em nossa sociedade.
Precisamos criar urgentemente, independente de qualquer outro mecanismo hoje em funcionamento, um poderoso fundo para as artes. Autônomo, livre de interesses governamentais, corporativos, de entidades representativas, inclusive dos próprios artistas, com dinheiro suficiente para cuidar de toda a produção artística à margem do mercado. O mesmo fundo precisa subsidiar e investigar novas formas de pesquisa, produção, distribuição e exibição da nossa rica diversidade, em sistemas que desafiem e reiventem uma economia da cultura, com bases humanas e sustentáveis.
Só assim podemos pensar numa sociedade mais digna, capaz de lidar com a violência do capitalismo, sem que o artista seja obrigado a subordinar seu trabalho a um projeto civilizatório, ou a interesses econômicos setoriais, ou ainda mais amplos. O pleno exercício da cidadania passa pela livre expressão, acesso ao fazer e ao fruir cultural.
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