Nada mais desprezível e repetitivo do que certas falas sobre cultura que jorram nos congressos, seminários, na mídia, hoje em dia. A impressão é que houve uma perda da capacidade de produzir pensamento e a ausência de platéias seduzidas pela reflexão. Não se interroga a produção simbólica, faz-se reivindicações, relatos, comentários para animar um auditório acostumado ao olhar da televisão. Se algum dia na história, o filósofo, o intelectual, o crítico, o artista, o poeta ocupavam o lugar privilegiado de formar opinião, hoje, esse lugar é ocupado pelo produtor, o empresário cultural, o profissional de marketing. E a cultura é vista apenas como um agente de estímulo da economia de uma sociedade em declínio.

O discurso fica na superficialidade. Que a cultura é um bem de consumo, ninguém duvida, gera emprego, garante retornos significativos para a economia de uma cidade. Mas os profissionais do marketing, os políticos e os empresários ignoram na cultura a sua lógica: a do sentido, que ela é uma dimensão da existência do homem. “O que chamamos ‘cultura’, portanto é a ciência e a consciência com que o homem ocupa o espaço e o tempo de sua morada histórica. E o homem culto é aquele que cultiva essa ciência e essa consciência.” (Gerardo Mello Mourão). A cultura é um conjunto de práticas por onde transitam uma autonomia, a experiência de uma saber e uma política específica. O patrocínio que substituiu o antigo mecenato reduziu os problemas da cultura às leis da economia e o poder do patrocinador acabou decidindo sobre padrões estéticos ou linguagens. Há uma valorização arbitrária de um produto cultural em detrimento de outro e a divulgação fica submetida a um jogo de poder de quem manipula direta ou indiretamente com os mídias e o mercado.

Somente com talento e invenção é difícil competir no mercado. Os profissionais que ganharam celebridade através do marketing cultural animam o espetáculo que faz da cultura um supermercado de entretenimentos. “Nos meios de comunicação, a confusão que se estabelece entre o princípio tradicional de celebridade baseado nas obras, e o princípio midiático baseado na visibilidade da mídia é cada vez maior.” (Pierre Bourdieu). A cultura passa a ser apenas o que ela representa no campo da economia e da diversão. Enquanto se discute as leis de incentivo a cultura não se discute a idéia de cultura  e as instituições culturais não cumprem o papel de difundir um princípio de cidadania cultural. Uma política cultural indecisa, calcada em princípios poucos profissionais que desprezam ou desconhecem o fazer e suas materialidades específicas. E sem trabalhos, sem críticas, sem um suporte que sustente a formação e a divulgação da informação não vamos construir nenhuma credibilidade cultural. “A arte age e continuará a agir sobre nós enquanto houver obras de arte” (Merleau-Ponty). E não discursos sobre as obras.

Uma cidade, um Estado, um País passam a ter uma existência cultural e conquistam um reconhecimento no futuro quando aprendem a respeitar seus artistas e intelectuais, quando aprendem a conviver e garantir as disparidades culturais. Entendemos que as instituições culturais como; fundações, universidades, museus, etc. têm um papel importante a cumprir na produção e divulgação da informação dos produtos artísticos acima de compromissos pessoais e políticos que ignoram a   natureza da linguagens artísticas. “No curso de grandes períodos históricos, juntamente com o modo de existência das comunidades humanas, modifica-se também seu modo de existir e perceber” (Walter Benjamin).  A produção cultural participa dessas mudanças com a tarefa de transformar a realidade dentro de um território determinado da sociedade e do pensar onde a cultura age.


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Artista plástico, poeta e arquiteto.

8Comentários

  • Marcelo Facci, 30 de maio de 2008 @ 17:57 Reply

    As relações de patrocínio na sociedade capitalista estão imbuídas de interesses próprios à nossa época assim como a aristocracia do mecenato no passado tinha os seus interesses sociais atendidos pela sua posição de benfeitores das artes.
    O julgamento da qualidade da arte que um e outro financia tem que ser feita de forma muito cuidadosa. Senão corremos o risco de propalar inverdades e incentivar o julgamento fácil de que a arte que o mercado compra não tem valor. Li aqui um artigo do Kluk Neto que mostrou uma abertura dos maiores projetos da lei rouanet em 2007. Pela lista do topo, dá pra ver que não estamos falando de Xuxa ou os Trapalhões.
    A Cultura reflexiva é contemplada nesse universo sim. Mais do que isso é preciso perceber que o prestígio ou a demanda (olhe que cruel) que a arte engajada vai ter junto aos cidadão, é um problema que vai ser resolvido pelo amadurecimento da capacidade de reflexão de toda a coletividade. Então depende de um processo mais amplo de evolução da sociedade que se inicia pela superação de lapsos sociais e educacionais.
    O erro está em querer desprestigiar os canais de incentivo fiscal como a Lei Rouanet e suas lógicas de interação com o mercado, atribuindo à ela toda a responsabilidade pelo pouco espaço que a arte reflexiva e experimental tem atualmente. Se a sociedade e seus valores fossem diferentes (e isso não é culpa da lei rouanet) essa arte estaria no topo das prioridades de patrocínio na mesa dos marketeiros. Podem ter certeza disso.

  • Michel Ferrabbiamo, 1 de junho de 2008 @ 19:23 Reply

    Olá amigo,

    Gostei muito deste seu texto, estamos programando um Fórum em nossa cidade (Ipatinga/MG) e como não tenho nenhum contato com vc exceto esse gostaria que me enviasser contato:
    mferrabbiamo@gmail.com

  • RôMULO DUQUE, 2 de junho de 2008 @ 15:33 Reply

    Não o paragrafo de abertura do texto acima é brincadeira.
    Quem está negando a questõa antropológica da cultura???????
    Que eu tenha lido em todas as questões apontadas ninguem.

    O que está em discussão é um mecanismo de incentivo a cultural chamado LEI ROUANET. E é só.

    E por favor menos. A grande maioria dos debatedores que se colocaram até hoje em “congressos, seminários, na mídia, hoje em dia. ” são profissionais altametne capacitados tanto tecnica quanto intelectualmente.

  • Priscila Marques, 2 de junho de 2008 @ 16:35 Reply

    Vou assinar embaixo do comentário do Marcelo Facci. Chega de extremismos. Concordo com Almandrade sobre a ausência de políticas culturais bem estruturadas neste país, e concordo que o excesso de debate sobre a Lei Rouante vem tirando o foco de outras questões que deveriam merecer igual (ou maior) espaço, como as próprias políticas públicas para a cultura. Mas jogar toda a culpa em cima dos bandidões – os diretores de mkt de empresas patrocinadoras – como boa parte da classe cultural e artística gosta de fazer, é não notar que o buraco está bem mais embaixo.

  • Júlio Coelhorosa, 2 de junho de 2008 @ 20:52 Reply

    – Vou assinar embaixo do comentário do Marcelo Facci. Eu também! Entretanto, diante de pensamentos alheios e citações insalubres…
    Jacques Barzun!

    “Ao desejarmos satisfação, criamos imagens desse mundo e aquelas que “funcionam” no sentido amplo de saciarem nossos múltiplos desejos – físicos, morais e estéticos- constituem nossa cultura e nossa realidade. Uma vez que ajudamos, individualmente, a formar a realidade e abordamos, assim, a ordem que desejamos, uma democracia de esforços deve, necessariamente, seguir-se. O desejo operado através da mente dá forma à propósitos, que se ramificam, por sua vez, na forma de teorias, artes, ciências – todas pragmáticas, em sua natureza, e verdadeiras, enquanto evoluem, falsas e perigosas quando mal aplicadas e mantidas como absoluto.”

    “Quanto ao que é um homem de idéias, considero-o qualquer homem que usa a cabeça para dominar a dificuldade colocada ante ele; o imigrante analfabeto é tão frequentemente um homem de idéias quanto um bacharel é um imbecil. A capacidade de da impulso a um pensamente, nem que seja um centímetro além da noção vulgar e corrente, é a única coisa, de fato, que distingue a classe intelectual do resto. O resto é, sem dúvida, a espinha dorsal da nação, mas, assim como no corpo humano, também no copo político a coluna vertebral acaba mesmo a entrada da cabeça’’.

    (Jacques Barzun – Da Liberdade Humana)

  • Júlio Coelho rosa, 2 de junho de 2008 @ 20:58 Reply

    “Quanto ao que é um homem de idéias, considero-o qualquer homem que usa a cabeça para dominar a dificuldade colocada ante ele; o imigrante analfabeto é tão frequentemente um homem de idéias quanto um bacharel é um imbecil. A capacidade de da impulso a um pensamente, nem que seja um centímetro além da noção vulgar e corrente, é a única coisa, de fato, que distingue a classe intelectual do resto. O resto é, sem dúvida, a espinha dorsal da nação, mas, assim como no corpo humano, também no copo político a coluna vertebral acaba mesmo a entrada da cabeça’’.

    (Jacques Barzun – Da Liberdade Humana)

  • Dinovaldo Gilioli, 20 de agosto de 2008 @ 10:48 Reply

    As reflexões contidas no artigo são atuais e necessárias, porque coerentes e críticas à realidade capitalista que impõe não só o consumo mas, o que é pior, o desejo de consumo – campo simbólico de domínio permanente. O “deus mercado” , que regula a vida e aniquila sonhos, precisa ser combatido justamente no “campo da cultura”, onde se legitima e se justifica valores e o modo de viver de uma sociedade.
    Parabéns Almandrade pela pertinência e atualidade do texto.

  • Silmar Oliveira, 18 de fevereiro de 2011 @ 20:27 Reply

    Tomei a liberdade de reproduzir seu texto – sss://bit.ly/eoWxKy. Qualquer irregularidade corrijo ou se necessário, tiro do ar.
    Parabéns e obrigado.

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