Quando Mário de Andrade em seu livro, “Ensaio sobre a música brasileira”, faz uma observação sobre o seu desinteresse pelo sucesso pessoal de Villa Lobos e Pixinguinha, entre outras coisas, ele chama atenção para, diante das questões nacionais, os símbolos têm pouca eficácia na mudança real de um quadro implantado como política cultural.
A correta percepção de Mário é construida no sentido de que a ordem vigente de aspectos doutrinários tinha sim suas válvulas de escape, assim como uma panela de pressão. Mesmo com a contundência de Villa Lobos que dizia, “Eu sou o folclore!”, numa clara observação de que a música do povo não está lá no povo, numa condição longínqua como é tratada com o imaginário primitivo de organização social, ao contrário, Villa Lobos, com essa frase, tenta de todas as formas, desconstruir essa idéia do artista descolado emocionalmente do seu mundo. Portanto, é bom que lembremos que não precisamos, necessariamente, estar naquele ambiente folclórico, pois ele está naturalmente em nós e não há detergente capaz de tirar essa coloração vibrante da nossa forma de agir e pensar cultura.
 
Não há dúvidas, o Brasil se desenvolveu e se mantém debaixo da mão pesada e bem articulada de um fundamentalismo social que estrangula as vias de acesso das camadas historicamente mais pobres. Truncar o pensamento nacional é a forma mais eficaz de desarticular as unidades de consenso natural da sociedade . A sociedade constrói seus códigos, e o poder do Estado, impregnado de uma lógica de domínio, fabrica conceitos sob o manto da legalidade e, consequentemente, de uma representativdade forjada pela força do capital.
 
Pouco ou nada vale, dentro da nossa estrutura societária, símbolos como Machado de Assis, mesmo que a sua história seja carregada de códigos, sua obra será sempre admirada, mas o personagem, será sempre alvo de filtros. Sua condição social de origem é aspecto da delicada obra de exclusão de seu universo para que o conjunto de todos os seus aspectos não interfira na ordem vigente.
 
Portanto, o tombamento de algumas comunidades quilombolas e suas expressões artísticas terá uso compartimentado para que o mesmo não altere socialmente a doutrina mátria. É politicamente correto, nos dias de hoje em que vivemos uma escassez de originalidade nas expressões culturais por obra de uma alinhamento promovido pela globalização, que preservemos as memórias num almoxarifado institucional, mas jamais damos qualquer assento com plena liberdade de ação a essas comunidades e suas culturas. Estas, por sua vez, estarão sempre vigiados de perto por nós que somos tão bem intencionados a ponto de nos dispormos a fazer a ponte entre a civilização constituida e a civilização excluida, sem essa vigilância, nada feito. Autonomia é uma palavra proibida dentro de todas essas questões. A nossa sociedade constituida, credenciada, sabe muito bem construir suas vias de acesso para fugir de qualquer embate.
 
Estamos hoje assistindo a uma batalha, ponto a ponto, quando, por exemplo, um milionário é preso por suspeita de conduta criminosa e, imediatamente é solto e, nas redações da grande mídia, são exacerbados alguns erros técnicos que a polícia venha a ter cometido, na verdade, estamos assistindo a inversão de valores onde o crime é vitimizado e o punidor é o punido. As nossas lógicas instituicionas foram construidas nessa base, nesse jogo de cartas marcadas, mas o artista tem por obrigação o papel de trazer à luz uma nova discussão, uma nova perspectiva.
 
Acho estranho, profundamente delirante, inútil, o discurso de individualização desse homem que, por um julgamento pretensioso ou covarde diante do seu próprio meio, se classifica como autônomo, como pêndulo universal, como homem, como artista de utilidade universal. Seus sensores estão ligados a um cosmos, como se os outros homens do mesmo planeta não tivessem as mesmas propriedades. Esse discurso tão primitivista, carregado de uma delicada arrogância, tem como principal característica a neutralidade diante das questões urgentes da arte como forma de expressão humana e de mudanças concretas. Há sim uma viagem a ser feita, custeada pelos frutos da nossa identidade. Arte nenhuma se constrói com o discurso de um “não sei lá de onde”, sou tudo, sou todos, é o discurso que dilui qualquer tipo de comprometimento diante do quadro que lhe é apresentado cotidanamente. Fugir por essa tangente facilitada pela ausência de um combate efetivo às questões de sobrevivência do homem que nos é mais próximo, é um ato de covardia duplamente mitificador diante das agudas e urgentes  necessidades de mudança. Porque, além de não somar vozes para as necessárias mudanças, dá ao gênio auto-proclamado, assento confortável nos meios que dominam esse perverso pensamento. Tanto a lei Rouanet quanto as políticas de repasse direto de recursos do MinC às ações culturais, são sabotadas na fonte. Por que na fonte? Porque a doutrina já está lá e, na primeira gota de qualquer nascente brasileira haverá a mão sabotadora dessa doutrina social e, é bom que se diga, usa o artifício de “cultural” para manter as coisas como estão. E como sabemos que uma simples gota de veneno dentro de um balde de água limpa é suficiente para não termos mais a água pura, ficamos impossibilitados de abastecer o nosso corpo social dessa água que jorra nos quatro cantos do país.
 
Sou, particularmente, um apreciador da palavra “desconstruir”, até porque, construção de modelos socioculturais é obra concreta de uma bem pensada ordem constituída para engessar as insurreições. Nada adianta criarmos leis, uma após a outra. Ficar no nosso canto nos defendendo de cada ataque comandado por poucos botões de artilharia pesada, é um jogo desigual e inútil. O adversário está lá em seu calabouço há, exatos 508 anos, estrategicamente colocado no coração central das nossas instituições, assim como um forte, de onde se tem toda a visibilidade do povo. Então, qual é o caminho? É enfraquecer as suas bases, é literamente desconstruir esse organismo e reeditá-lo numa atitude revolucionária, do contrário, ficaremos nessa de tirar água do poço e tentando enxugar gelo.
 
Este inimigo, que se faz invisível, existe e tem seus pontos fracos, por isso, foge do contato direto, do embate, ele está, assim como a maioria dos crimes lesa pátria deste pais, amparado pela legalidade de cúpula. Não adianta colocarmos tigers nos quilombos, transformando-os em grifes, pois dali será extraido pela sociedade de domínio apenas o que a ela interessa e fará uso mais uma vez dessa parcela excluida em benefício próprio.
 
Portanto, qualquer artista com a crença na sua capacidade de universalização, será sempre um falastrão inútil diante das questões prioritárias da arte, que tem como necessidade original, ser a voz do seu mundo, de ser uma transformadora de lógicas constituidas. Os discursos além dessas fronteiras são feitos de costas, como num ato de deserção de uma luta  urgentemente necessária, e são, na realidade, tão vagos e pretensiosos quanto o vampirismo brasileiro do além do aquém, e constroem, com a mesma ausência de consistência, frases como a famosa, “toca aqui e se ouve lá”, de João Sayad.


Bandolinista, compositor e pesquisador.

4Comentários

  • Alexandre Reis, 29 de julho de 2008 @ 16:24 Reply

    Caro Carlos Henrique,

    O grito é bem forte mesmo de todos estes homens e mulheres que fazem Cultura no Brasil. Eu reconheço em seu texto muito do que presencio aqui, muito do que reflito e do que me passa na atual conjuntura. A fonte não secou, de fato não… a lei continua fazendo e refazendo a arte. O problema que você bem soube apontar é o “veneno”. Se ao invés desse veneno todo pudéssemos refletir a Cultura como uma jarra cheia de água e pura apenas. E essa doutrina social, nossa que termo difícil de analisar, mantenedora incondicional dos artifícios culturais gera uma sociedade ainda muito aquém de saber criticar a essência do fazer cultural. Parece coisa que Deus dá para poucos, para os profetas. Para o homem que procura apenas uma condição confortável em sua vida, essa doutrina ainda parece incapaz de dar-lhe sobrevivência à vida na sociedade. Eu espero que os artistas possam saber onde eles querem chegar com suas propostas inovadoras ou tradicionais! Eu não tenho receio da fonte, nem da água envenenada, eu sei que ela está assim há muitos anos. Os gregos pensaram nisso; mas fomos nós que executamos isso agora, 2000 e tantos anos depois deles. O ambiente padece disso, eu não consigo pensar no meu processo técnico em dança contemporânea distante dessa essencial condição qualitativa. Montar uma estrutura cultural dentro de uma doutrina social me incita a desconstruir tudo, como você bem soube colocar aqui e me deixa incômodo, insatisfeito, onipotente… e digo que preciso cuidar disso a cada dia. Me concederam o direito de aprender, me explicaram o juízo e os valores, só não me foi dito que eles portavam verdade. Na filosofia de Nietzsche a verdade é um ponto de vista, ele julga os artistas como também os filósofos em função de suas obras primas. Se Beethoven tivesse escrito apenas uma só sinfonia, aquela que fosse considerada a melhor, seria igualmente tão grande como o compositor. Desse modo eu parabenizo a sua preciosa colocação aqui no Cultura e Mercado e espero novamente ler seus pontos de vista. Obrigado!

  • Carlos Henrique Machado, 30 de julho de 2008 @ 14:01 Reply

    O problema Alexandre, é que o Estado, desde a chegada da côrte até hoje, tem a mania de interfirir na jarra de água e, quer porque quer, transformá-la em scott, e o mercado em coca-cola. Se o próprio Estado não respeita a química natural da água, por que o mercado irá respeitar?
    O problema é que o mundo das artes, hoje, mais do que nunca, necessita é de água limpa, o que o Brasil tem em abundância, é fonte pra todo o lado,
    mas, com nossa mania de copiar, nao conseguimos valorizar a nossa própria água, simplesmente como água. Então, fazemos essa coisa, esse ki-suco 12 anos, e a ressaca diária é inevitável.

  • Carla Pereira, 4 de agosto de 2008 @ 8:43 Reply

    Carlos,
    desconstruir é, sim, a palavra diante das instituições a que estamos todos submetidos. Instituições abstratas e concretas forjadas sob o molde do mercado, que por definição histórica não deve compromisso a objeto algum para além do ganho material imediato, acelerado e maximizado que é capaz der obter dele.
    Dentro dessa lógica, toda a natureza vem sendo consumida numa velocidade jamais vista na história da humanidade e é justamente a natureza humana a que vem sendo mais perversamente deteriorada diante de nossos olhos e corações.
    E eu, que nasci durante o governo Médici, que olhar me resta diante desse mundo de guerra-fria com ameaças atômicas, e de aulas de Educação Moral e Cívica que me formou? Que comemorei ao ver a contra-cultura no poder e que hoje me vejo amordaçada diante da “seleção natural” imposta pelas entrelinhas da burocracia e da mentalidade tecnicista onipresente no poder? De antolhos, submetida a produção cultural programada, onde artista é nome a cada dia mais improvável e se confunde com o multiplicador ou “animador cultural”, passa-tempo gerador de renda?
    O artista jamais estará submetido a um padrão de produção, antes morrerá de fome ou de tédio!
    É ao antolho e à mordaça que me trouxeram ao mundo
    que dedico a palavra desconstruir, porque cultura não se constrói, assim como o artista também não. Cultura e artista no Brasil tem é que libertar para brotar na terra!
    Mas no Brasil a terra tem dono e extermina o que brota sem planejamento, investimento e organização institucional, em busca de seu padrão auto-referente (a que estamos todos submetidos, treinados, formatados) confunde nossa riqueza com erva daninha, o que pode prosperar?

  • Carlos Henrique Machado, 6 de agosto de 2008 @ 13:15 Reply

    Carla!

    No mesmo dia em que tive a infeliz notícia de que os dois pontos e cultura em Volta Redonda estão nas mãos de pessoas ultra, mega, super incluídas, de transbordar, recebi um telefonema de um mestre de folia de reis de mais de 50 anos de tradição, pedindo para que nós aqui em casa o ajudássemos a fazer uma caixiha para a aquisção de quepes e um violão, pois o meso mestre já havia tomado dinheiro emprestado R$500,00 com um agiota para a aqisição da sanfoinha (cabeça de égua).
    Ah!!, os dis pontos de cultura são, fundamentamente, pontos comerciais, uma, empresa de publicidade e a outra, salas de exibição de cinema. Não têm projetos, estao `a caça de um para justificarem suas contrapartidas. Essa é uma dura realidade, mas é de fato, concretíssima.

    Essa boiada, a qual pertencemos e mesmo os que acham que não pertencem, é conduzida, depois da engorda, para o matadouro e com financiamento do Estado, a rapaziada la do andar de cima se esbalda no banquete.

    Na verdade, Carla, pior que o preconceito no Brasil, é esse comando social da lei do Gerson. Em tudo a casta se metee leva a melhor sempre!!!. Como dizia Jovelina Pérola Negra, pagodeira de primeira linha e que de boba não tinha nada, “Sobrou pra mim, o bagaço da laranja”.

    E como disse a revista carioca de humor, “Hitler está vivo, mora na zona sul, gosta de samba de raiz e frequenta o samba da Lapa”, os contornos da nossa memória escravocrata estão aí vivos com seus emblemas e com a estátua e Caxias, patrono do exército, bem de frente para o Morro da Providência. Ou seja, a nossa elite adora o funk “tá dominado, tá tudo dominado”, e as tiutiucas do jet set deitam e rolam.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *