Foto: Herdeiro do Caos
A democratização dos incentivos fiscais para a área cultural só será alcançada quando o pequeno contribuinte, seja pessoa física ou jurídica, tiver formas de incentivar o projeto do seu bairro, de sua comunidade. Se isso não for possível, de forma simples e desburocratizada, os incentivos fiscais serão sempre meio de ação privilegiado para grandes empresas e investidores.

A divulgação do anteprojeto da nova Lei de Fomento e Incentivo à Cultura por parte do MinC enseja uma bela discussão sobre o assunto.

A justificativa do Ministério da Cultura para a mudança da legislação se alicerça em duas vertentes. A primeira é que a atual legislação – a chamada Lei Rouanet, Lei 8.313/91 – provoca distorções graves: concentra os investimentos no mecenato e, no uso desse instrumento, não consegue financiar projetos de interesse mais amplo; a distribuição regional dos recursos também é injusta, favorecendo amplamente as regiões sudeste e sul, em detrimento de áreas mais carentes – Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Segundo o Ministro, apenas 3% dos proponentes captam 50% dos recursos disponibilizados. Juca Ferreira alega também que as empresas só financiam projetos culturais quando este dá retorno de marketing.

A segunda vertente do projeto de lei é o reforço pretendido pelo ministro nos recursos próprios para o Ministério da Cultura. Para isso, quer reforçar o Fundo Nacional de Cultura, criando também cinco fundos setoriais, a loteria da cultura (em futura lei) além da expectativa de aprovar uma emenda constitucional que obriga a vinculação de 2% do Orçamento da União para a Cultura.
Diga-se, desde logo, que o aumento dos recursos orçamentários do MinC é uma reivindicação fundamental, assim como a melhoria das condições operacionais do ministério, que não tem representações ou delegacias em todos os Estados, nem meios de atuar nacionalmente. Mas isso veremos mais adiante.

Como todas as medidas de aumento das receitas do MinC dependem não apenas da intervenção legislativa como também da tesoura do Tesouro Nacional, o caráter voluntarista dessa parte da solução fica óbvio: conta-se com o ovo no fiofó da galinha. E, enquanto isso, a galinha do incentivo fiscal que já põe alguns ovos – se não de ouro, pelo menos em reais sonantes – marcha para o abatedouro.

As distorções da Lei Rouanet são há muito conhecidas. De fato, há um predomínio de projetos ligados ao chamado “marketing cultural”. De fato, há distorções na distribuição regional dos recursos. E, pior ainda, a ênfase maior é dada à produção de bens culturais e não à sua difusão e fruição por parte da população.

Mas, o que provoca isso?

Responder a essa questão é essencial para que se possa definir as premissas de uma modificação da Lei de Incentivos Fiscais.

A Lei Rouanet e o projeto atual coincidem em um ponto central: só podem se beneficiar dos incentivos fiscais as empresas que estão no regime de lucro real.

O que são as empresas enquadradas no sistema do “Lucro Real”:

Enquadramento no Regime:

# OPCIONAL para qualquer empresa, independentemente da atividade ou nível de faturamento, desde que mantenha os controles formais exigidos na legislação do Imposto de Renda.

# OBRIGATÓRIO para empresas com receita bruta anual acima de R$48 milhões e/ou que enquadrem-se em qualquer uma das hipóteses de adesão obrigatória definidas em lei.

Do universo de 2.992.041 empresas que declararam Imposto de Renda em 2004, observemos como se distribuem pelos regimes tributários:

APURAÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA DE PESSOAS JURÍDICAS – 2004 (EM MILHÕES DE REAIS)

Regime de Apuração do IRPJ

Receita (Imposto Recolhido)

% sobre o total da receita

Número de empresas

% sobre o total de empresas

LUCRO REAL

2.381.021,29

80.79

178.723

5,97

– Geral e Corretoras

1.782.259,15

60,47

176.030

5,88

– Financeiras

545.498,07

18,51

2.440

0,08

– Seguradoras

53.254,08

1,81

253

0,01

LUCRO PRESUMIDO

268.207,93

9,10

683.520

22,84

SIMPLES

180.384,30

6,12

1.978.727

66,13

– Microempresa

66.258,73

2,25

1.644.383

54,96

– Empresa de pequeno porte

114.125,57

3,87

334.344

11,17

 

Ministério da Fazenda – Estatísticas Tributárias 11 – Consolida DIPJ 2004.

– Empresa de pequeno porte

114.125,57

3,87

334.344

11,17

EMPRESAS IMUNES

63.555,87

2,16

38.581

1,29

EMPRESAS ISENTAS

53.974,48

1,83

112.490

3,76

TOTAL

2.947.143,88

100,00

2992.041

100,00

Lucro Real PJ em geral: Receita Líquida das Atividades + Receita Líquida da Atividade Rural; Instituições Financeiras: Receitas de atividades financeiras; Seguradoras: Receita Total; Lucro presumido: Receita Bruta; Simples: Receita Bruta; Empresas Imunes e Isentas: Origem e Aplicação de Recursos.

A opção por restringir o universo dos possíveis investidores em projetos culturais fez com que se definisse que esses investimentos fossem feitos SOMENTE pelas grandes empresas. Que, como sabemos perfeitamente, dispõem de equipes completas de advogados e contadores para fazer as contas, e que só soltam dinheiro se houver retorno para isso, de alguma forma. Sua Excelência diz, corretamente, que os investimentos da cultura são feitos com dinheiro público: é o que as empresas deixam de recolher para o Tesouro Nacional que aplicam nos projetos culturais. O fazem, entretanto, não apenas porque é legal fazê-lo, como também porque já foram estimuladas especificamente a fazer isso. E, ainda assim, poucas são as que usam os incentivos fiscais.

Como sabemos – já que vivemos em um regime econômico capitalista, – os capitalistas e as empresas acumulam capital não por serem bonzinhos ou altruístas, mas porque BUSCAM INCESSANTEMENTE O LUCRO, como já dizia aquele filósofo alemão que teimam em dizer que está fora de moda. É o normal e o esperado das empresas.

Abacateiro teu recolhimento é justamente
O significado da palavra temporão
Enquanto o tempo não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão

REFAZENDA – Gilberto Gil

Tudo indica que os rapazes do MinC – herdeiros do compositor/cantor, – esperam que amanheça tomate e anoiteça mamão. Ou que tudo vire guariroba, e o capitalismo mude suas características essenciais e passe a ser altruista. Mas, por enquanto, empresa capitalista é assim:

A conta é feita até os últimos detalhes. Com a crise econômica, por exemplo, tivemos relatos de empresas – que estão no lucro real e tiveram lucro ano passado – que desistiram de patrocinar projetos no final do ano passado por uma razão muito simples: o pagamento do IR pode ser diferido até a entrega da declaração de ajuste; quem tem dinheiro em caixa pode aplicá-lo ou reservar para uma conjuntura adversa. Portanto, bye bye aplicação na cultura.

Existe um outro problema, que será tratado com mais detalhes adiante: a burocracia para a aplicação em projetos é tão abrumadora que, na verdade, só torna viável as grandes iniciativas, feitas certamente pelos grandes aplicadores.

Consideremos, por exemplo, uma biblioteca de bairro. Para ter acesso a recursos incentivados, essa biblioteca deve ter uma Associação de Amigos devidamente registrada – o que seria positivo se houvesse – e que já tivesse um projeto aprovado no MinC. Para usar os recursos, entretanto, a Associação dos Amigos teria que captar no mínimo 20% dos valores aprovados, abrir a conta no Banco do Brasil e, depois de captar os recursos, solicitar ao MinC a permissão para movimentar a conta. Ora, uma empresa que desejasse doar – incentivada – dez mil reais para essa biblioteca, deveria ter tido um imposto a pagar de no mínimo R$ 250.000,00. Ou seja, um lucro líquido tributável por volta de R$ 1.800.000,00. Aí temos o paradoxo. Certamente não se trata de uma pequena empresa. Mas também, para que se dar ao trabalho de patrocinar com R$ 10.000,00 um projeto de biblioteca local? Projeto esse que teve que ser dimensionado para R$ 50.000,00 para que, captando 20% disso, pudesse movimentar a conta. No final, vira um projeto pequeno para uma empresa que deseja ter retorno mercadológico, e impossível para as empresas pequenas que simplesmente desejem beneficiar a comunidade onde estão instaladas.

O projeto se enrola, assim, nas duas pontas: na burocracia para aprová-lo, ainda que em limites relativamente modestos. E, por outro lado, a própria burocracia das grandes empresas, que tendem a desprezar esse tipo de aplicação.

Qualquer tributarista sabe que, ao restringir o universo possível das fontes, concentra-se também o número de “pagadores”. No caso, das empresas que podem investir em projetos culturais. Tanto na Lei Rouanet – vigente – quanto no projeto, optou-se por esse universo restrito de 178 mil empresas, com a justificativa, certamente, de que aí está o grosso do dinheiro. Só que o “grosso” do dinheiro é concentrado. E vai ser aplicado somente em grandes projetos, pelas empresas realmente grandes, e projetos que tenham retorno mercadológico. E desprezou-se o universo de mais de 88% das empresas brasileiras, que pagam imposto de renda e que não podem aplicar nem um tostão em projetos culturais. E que poderiam ter motivações mais prosaicas e menos mercadológicas para incentivar projetos locais.

Reclamar da concentração, portanto, é, no mínimo, hipocrisia. Ou simplesmente má fé. A lei INDUZ à concentração. E o projeto repete a dose.

Mas a coisa ainda é pior.

A lei atual e o projeto abrem a janela para que as pessoas físicas que pagam IR possam investir em projetos culturais. Ótimo, divino, maravilhoso, como diria, também tropicalisticamente, nosso ex-Ministro.

Mas ninguém se lembra de explicar como se faz isso.

Um cidadão que queira investir seus seis por cento do IR em projetos culturais tem que fazê-lo no ano calendário, DESEMBOLSANDO o recurso independentemente do que já lhe seja descontado na fonte. Depois, na declaração de ajuste, dirá que quer aplicar esses seis por cento, e onde deseja fazê-lo. Daí, feitas as contas, vai esperar que em algum momento do futuro lhe seja creditada a restituição. Ou seja, é descontado na fonte, paga adiantado o investimento na cultura e espera a devolução do IR. Eu, particularmente, considero um nível extraordinário de altruísmo e amor à cultura o fato de 2.069 pessoas terem feito alguma aplicação, como pessoas físicas, no ano de 2008, em projetos culturais.

Alguns dados do IR de pessoas físicas permitem uma clareza maior sobre o assunto.

Segundo as informações da Receita Federal para o ano de 2004 (último ano disponível), a situação do IR naquele ano foi a seguinte:

INFORMAÇÕES BÁSICAS DA DIRPF 2004 – QUADRO RESUMO

Número total de declarantes: 18.047.676

Descrição

Valor (em milhões)

Freq. (unidade)

Média (R$)

Imposto de Renda devido

31.548,05

6.261.601

4.157.94

Imposto de Renda pago

35.792,27

8.608.178

4.157,94

– IR a pagar

3.135,77

1.833.090

1.710,65

– IR a restituir

7.379,97

7.280.662

1.013,84

Ou seja, ao optar-se por pescar os investimentos no universo das cento e oitenta mil maiores empresas do país, desprezou-se o que seria possível captar junto a outras mais de oitocentas mil empresas. Os contribuintes pessoas físicas somam mais de dezoito milhões e apenas um pouco mais de dois mil contribuíram com a cultura em 2008. Isso demonstra cabalmente que a possibilidade de benefício fiscal para as pessoas físicas não passa de ficção.

E de má qualidade.

Obviamente há algo errado aí.

Pode-se justificar dizendo que a contribuição dessas empresas e das pessoas físicas seria irrelevante para a área cultural?

Vejamos.

Se, do universo das empresas em regime de lucro presumido e no simples, conseguissem arrecadar como incentivo fiscal apenas 1% do imposto que foi pago, essa soma chegaria a quase quatro bilhões e meio de reais. Se os contribuintes pessoas físicas também entrassem com 1% do imposto devido, isso somaria mais de trezentos e quinze milhões de reais. Por ano.

Claro, se usarmos o mesmo critério com as empresas do lucro real, em tese 1% do IR equivaleria a quase vinte e quatro bilhões de reais. Por ano.

Ora, no total de dez anos, entre 1999 e 2009 (deste último ano, obviamente, dados incompletos) alcançou-se um pouco mais de cinco bilhões e meio de reais para projetos culturais.

Não é pouco o dinheiro que, em tese, se poderia captar junto às pequenas empresas e as pessoas físicas. Os números mencionados são, obviamente, simplesmente hipotéticos. E tecnocrata argumentará que é pouco dinheiro comparado ao que se consegue junto às grandes empresas. Mas essa argumentação subestima dois fatores:

Em primeiro lugar, o impacto social do envolvimento das pequenas empresas e das pessoas físicas com os projetos locais. O simples fato de abrir essa janela já seria socialmente muito significativo.

Em segundo lugar, na medida em que houvesse um esforço dos proponentes de pequenos projetos locais e da própria propaganda institucional do governo, o captado junto a esses dois segmentos atualmente desprezados tenderia a aumentar.

Isso sem falar no uso do VALE CULTURA, que será abordado mais adiante, como mecanismo para que as pessoas físicas usufruam dos benefícios fiscais.

O monto total de incentivos fiscais é definido anualmente por decreto presidencial. E esse teto nunca foi alcançado.

A ampliação do universo de possíveis investidores, por isso mesmo, não afetaria em nada a renúncia fiscal da União. Mas abriria a possibilidade para que os pequenos investidores, inclusive as pessoas físicas – se fosse mudada a sistemática para que pudessem usar a renúncia fiscal – aumentassem seu quinhão de participação.

A constatação das distorções – predominância do marketing das grandes empresas, concentração regional – é apenas a primeira parte do diagnóstico. Seria, digamos assim, como o médico verificar onde dói no paciente.

Mas se não houver uma compreensão correta do que causa a dor, o remédio será ineficaz. E o doente pode morrer.

No nosso caso, é isso que ocorre. O Ministério da Cultura viu o ovo óbvio: marketing e concentração. Mas não viu a causa disso: o universo restrito dos possíveis investidores.

Como resultado, partiu para a solução mágica. Não pode ser mais assim e vai ser assado porque nós queremos que assim seja: as empresas em vez de aplicar em projetos que lhe interessem, passarão a aplicar no Fundo Nacional de Cultura, que então distribuirá equanimemente os recursos, compensando as debilidades regionais, as manifestações artísticas menos prestigiadas e, sob a égide do MinC, a cultura florescerá.

O “Doutor” MinC, partindo do diagnóstico errado, não conseguiu nem receitar aspirina para o paciente com câncer. Partiu para a sangria, a velha solução medieval.

A seguir:

A SANGRIA, A IMPREVIDÊNCIA E O ARBÍTRIO


>> Note-se que o programa de Bibliotecas da BN não induz a constituição de Associações de Amigos. Basta a constituição da própria biblioteca por ato da Prefeitura.

>> Não sou advogado, mas acho que há uma falta de isonomia tributária nessa discriminação. Por que alguns podem usar benefícios fiscais e outros não?

>> O MinC divulga em seu site alguns números. Informa, por exemplo, o total captado pelo mecenato, em cada área, ano a ano; informa também quais foram as empresas (sempre no regime do lucro real, é claro), que aplicaram – e soma tudo que foi aplicado, sem desglosar ano a ano por empresa. Mas só informa a quantidade de pessoas físicas que investiu em projetos culturais, sem dizer quanto foi captado, nem por ano, nem o total dessa captação de pessoas físicas. Devem ter ficado com vergonha de mostrar a disparidade de dados.


Antropólogo, jornalista e consultor de políticas públicas para o livro e leitura, é autor do livro "O Brasil pode ser um país de leitores?"

2Comentários

  • Apoena, 1 de abril de 2009 @ 8:56 Reply

    Finalmente leio algo sóbrio sobre a Rouanet…

    Se o objetivo for meramente regionalizar o uso da lei, crie faixa de renuncia fiscal.

    Empresas de pequenos porte poderiam patrocinar até 50% dos impostos devidos, de médio porte 25%, etc.

    Assim os empresários locais poderiam patrocinar a cultura do seu entorno. Bom negócio para todos.

    Com 4% de renuncia só empresas enormes participam do jogo, dominado pelas estatais. Aliás, não sei qual a choradeira do MINC se o maior beneficio, o da Petrobras, já é politizado e aparelhado?

  • Fernando, 1 de abril de 2009 @ 10:35 Reply

    Argumentos contundentes e bem fundamentados. Ótimo material para discussão. Só não acho que tanto sarcasmo e ironia contribuam para uma reflexão mais séria.

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