No centro do debate público sobre a reformulação da Lei do Direito Autoral (9.610/98), conduzido com persistência pelo Ministério da Cultura, emerge o conflito entre dois “partidos” opostos, conflito que tende a se acirrar com a publicação recente da proposta de reforma da lei, para consulta pública, e o seu posterior envio ao Congresso Nacional.
Pretendo aqui argumentar que o desfecho deste debate será tão mais benéfico para o país na medida em que nenhum desses partidos consiga impor a totalidade de seu “programa”. A polarização tende a simplificar o debate em termos de bem x mal, e deve ser combatida através de sua ampliação. Contudo, uma análise dessas posições extremas será útil para entendermos o que está em jogo.
Devido à complexidade do tema, abordarei inicialmente um dos lados da moeda, ficando o outro para a continuação deste artigo.
O primeiro partido pretende que tudo fique como está. Tem a seu favor, antes de tudo, o ter estabelecido, em nosso extenso território, um sistema efetivo de arrecadação e distribuição de direitos musicais, construído ao longo de mais de um século de esforços. Este sistema é gerido pelo ECAD, criado por lei em 1973, durante a ditadura, como forma de unificar as ações das diversas sociedades existentes. Detém o conhecimento profundo da matéria e os recursos financeiros cuja arrecadação e distribuição a lei lhe atribui. Já outros setores da indústria cultural não dispõem de sistemas semelhantes.
A principal virtude deste partido é seu posicionamento inequívoco no combate à pirataria, cobrando das autoridades o cumprimento da lei. Embora o Governo Federal mantenha, desde 2004, um Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP), coordenado pelo Ministério da Justiça e com participação do MinC, não há notícia de uma manifestação clara deste Ministério a respeito.
Recentemente o presidente Obama prometeu declarou que os EUA irão “proteger agressivamente sua propriedade intelectual”, a qual “é essencial para nossa prosperidade e vai se tornar ainda mais neste século” . Obama sabe que o setor econômico que tem o copyright como base representa entre 6 e 12% do PIB norte-americano, e emprega entre 4 e 8,4% dos seus eleitores. Não encontrei qualquer manifestação do presidente Lula ou dos candidatos à sua sucessão sobre o assunto.
Da mesma forma deve-se razão ao partido do status quo quando denuncia a inadimplência dos usuários do DA, especialmente emissoras de rádio e televisão, que são concessionárias públicas. Em nota recente, o ECAD “lamentou” que o texto da nova Lei pretenda penalizar autores que “de forma injustificada” recusem-se a autorizar o uso de suas criações, mas “não cria qualquer penalidade para as empresas de rádio e TV inadimplentes.” É preciso aqui ter em mente que muitas dessas empresas são propriedade de famílias de políticos. E quem sabe pedir ao Ministério das Comunicações que publique seus nomes, e ao ECAD que promova uma campanha informativa para que o público, em solidariedade aos autores, sintonize somente as emissoras que estão em dia.
Por outro lado, em sua estratégia este campo às vezes peca por apostar na desinformação do leitor. Exemplo recente é o texto assinado pelo compositor Marlos Nobre , que parece não ter lido a proposta do MinC, que não fala em “acabar com o ECAD”. Outro que não quis perder tempo lendo foi Nelson Motta, que tirou sabe-se lá de onde a idéia de uma “sociedade arrecadadora estatal”, inexistente no anteprojeto.
Aqui seria o momento de recuperar uma das diretrizes aprovadas em 2005 pela I Conferência Nacional de Cultura, a de “criar um órgão regulador dos direitos autorais com conselho paritário formado por representantes do Estado, dos diversos segmentos artísticos nacionais e da sociedade civil.” É disso portanto que se trata: um órgão fiscalizador, com participação da sociedade, similar ao que por sinal já existia, o CNDA, extinto pela lei atual, em 1998. No entanto, o MinC, tendo já anunciado a criação deste órgão (agora sob o nome de IBDA – Instituto Brasileiro de Direito de Autor), voltou atrás e não o manteve na proposta publicada, demonstrando pouco respeito com a Conferência que ele próprio conduziu, da qual participaram mais de 50 mil brasileiros.
Ainda assim, a proposta atual contém uma série de artigos novos que regulamentam a atividade das associações e do ECAD, ficando a cargo do MinC assegurar o seu cumprimento. Fica faltando, contudo, a garantia de representação direta da sociedade neste processo, que a Conferência preconizou. A principal crítica do ECAD pretende enxergar nessa simples regulamentação um suposto “dirigismo”, crítica de resto já “clássica”, pelo seu uso e abuso contra outras iniciativas do Governo Lula. E que mais uma vez aqui não resiste ao exame dos fatos.
Pois se o DA é um bem privado, privada seja sua gestão. Convém no entanto lembrar que foi uma lei que criou o ECAD e lhe atribuiu nada menos que o monopólio da arrecadação e distribuição do DA. Sofre portanto de amnésia seletiva quem esquece que a autoridade com que o ECAD atua emana do Estado, de uma intervenção estatal inspirada pelo mesmo propósito de regular o mercado, que ora se pretende demonizar. Logo, se o ECAD levasse às últimas consequências esse raciocínio, deveria propor a revogação da lei atual, deixando tudo a cargo do mercado. É evidente que isso seria o fim do DA, e é por isso que todos os países civilizados tem leis sobre o assunto.
Outro argumento que constantemente aparece, ou se percebe implícito nas manifestações deste campo, e que deve ser relativizado, é o de que ele representa os autores na sua totalidade. Em primeiro lugar, todos sabem que o controle do sistema é exercido pelas empresas do ramo (Aliás, o fato de uma mesma associação congregar empresas e autores já constitui uma aberração). Em segundo, essas mesmas empresas decidem soberanamente os critérios de arrecadação e distribuição, que nunca foram objeto de discussão com a ampla maioria de seus associados. Em outros países, parte desses critérios são fixados na própria lei.
Mas há também críticas consistentes, de quem de fato leu o anteprojeto. A União Brasileira de Compositores (uma das maiores associações que integram o ECAD) alega em nota oficial que “apesar de repetidas alegações de anacronismo em relação ao texto vigente, a proposta do MinC em nada o supera…, ainda que venha divulgando ser um projeto moderno e em sintonia com a realidade virtual”. De fato, talvez a principal falha do anteprojeto seja ignorar solenemente o fenômeno do compartilhamento de músicas entre usuários finais, o chamado peer-to-peer, ou P2P. Diferencia-se da pirataria por não ser feito com finalidade de lucro, porém isso não quer dizer que não traga prejuízo ao autor. Aqui quem pretende deixar como está é o governo, cuja proposta não legaliza nem proíbe expressamente a prática. Uma solução possível seria taxar o provedor, permitindo assim remunerar o autor por esta prática, de resto generalizada.
Sem pretender esgotar o assunto, o que foi exposto até aqui basta para ilustrar a posição de um dos campos dessa disputa, em suas razões e limites. Na sequência deste artigo, iremos considerar o campo oposto.
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