“É estranho dizer isso, mas a inclusão social no Brasil tem que necessariamente passar por uma guilhotina que acabe de vez com os constrangimentos, com as pressões das classes dominantes, que são a minoria, carregadas de um vírus intervencionista que olha para toda e qualquer manifestação saída dos sentimentos do povo como alguma coisa de menor qualidade artística”.
PESADELO
Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro
Quando um muro separa
Uma ponte une
Se a vingança encara
O remorso pune
Você vem me agarra
Alguém vem me solta
Você vai na marra e ela um dia volta
E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte
Olha o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós…
Olha aí
Você corta um verso e eu escrevo outro
Você me prende vivo e eu escapo morto
E repente…olha eu de novo
Perturbando a paz exigindo o troco
Vamos por aí eu e o meu cachorro
Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem de nós….
Olha aí
O muro caiu, olha a ponte
Da liberdade Guardiã
O braço do Cristo – Horizonte
Abraça o dia de amanhã
Olha aí
Quando criei meu trabalho Vale dos Tambores tinha a intenção, antes de traçar um paralelo entre o universo dos terreiros e o choro brasileiro, de abrir uma picada em uma nova direção sobre a forma de analisarmos todo um caminho construído pela sociedade brasileira e que a história, desatenta a fatos relevantes, narrou com muitas e perigosas distorções.
A capa do projeto Vale dos Tambores tem significado de síntese, uma fotografia de 1870 de uma banda de música formada somente por escravos de uma fazenda de café do Vale do Paraíba no século XIX, é uma imagem que revela um misto de dor e tristeza e, ao mesmo tempo, um símbolo de vitória de resistência.
Naquele período, no século XIX, é que tivemos um traço definitivo, característico da música brasileira. Como disse Mário de Andrade, um burilamento estético consagrado pelo povo que ia se definindo com os anos que antecederam o século XIX. As bases da nossa música ali estavam já determinadas. Uma música com características amplas, um abrigo fácil para todas as outras linguagens que ainda viriam de dentro ou de fora do Brasil, fazendo do choro brasileiro, mais extraordinariamente ampla linguagem do mundo da música.
Nenhum outro conceito musical no mundo guarda uma palheta tão diversa como o nosso choro, uma música que vai dos sanfoneiros de calango, passa por tradicionais chorões como Pixinguinha, e chega aos eruditos como Villa lobos, passando por todas as leituras jazzísticas como a de Moacir Santos ou o samba-funk de Dom Salvador e mais uma infinita linguagem brasileira, não para de se transformar. Posso afirmar que nem toda a liberdade que o Jazz propõe tem tantos e tão extensos adjetivos, contemporâneos ou de tradição como a imensa linguagem que caracteriza o choro brasileiro e que, sem dúvida, é a forma mais fiel de representatividade artística do povo Brasileiro.
Quando o choro ganha as principais salas de música do mundo quem na verdade, quem na verdade está ganhando este espaço é a sociedade brasileira que, fora das formalidades estéticas impostas como único caminho, traçou um paralelo de liberdade criativa e vem, cada vez mais, se transformando na imagem da nossa alma perante o mundo.
Voltando à banda de escravos, o seu símbolo máximo está ligado à história formal da nomenclatura “choro brasileiro”, pois dela é que virá o traço de toda a organização proposta pela sociedade nos anos que antecederam essas formações. Não podemos tratar a arte como alguma coisa medicamentosa, a arte é fruto de um sentimento que sequer sabemos os motivos que nos levam a buscar essa forma de comunicação. O que se sabe é que no Brasil nenhum projeto com base no totalitarismo conseguiu um mínimo de resultado plausível para justificar ações que impõem toda uma ordem conceitual. É estranho dizer isso, mas a inclusão social no Brasil tem que necessariamente passar por uma guilhotina que acabe de vez com os constrangimentos, com as pressões das classes dominantes, que são a minoria, carregadas de um vírus intervencionista que olha para toda e qualquer manifestação saída dos sentimentos do povo como alguma coisa de menor qualidade artística.
Meus amigos, não é possível continuarmos com essa idéia! Será que continuaremos com essa política irracional que em nada de concreto se sustenta? Os mais pragmáticos que apelem para os números! Os mais céticos com a cultura do povo, sejam céticos com sua própria inteligência artificial. As nossas instituições são de uma aridez formidável, não conseguem aquecer nem o próprio pão, que fará dar conselhos ou constranger quem está fora dela. Está porque quer, porque não sente que ali há calor humano, há sim, uma série de planilhas, pilhas e pilhas de papel, um roda-moinho político, uma encruzilhada social, um despacho estatal. Não sei como podem imaginar um mundo em que todos pisam na mesma calçada, continuar crendo que há de fato um ser ingênuo, tolo e rudimentar e o outro, com suas poucas letras que produz um pavão, acreditar que toda uma fantasia, positiva ou negativa, possa dar orientações a quem quer que seja. A classe média, coitada! Perdida em si, é exemplo claro, filha do constrangimento, da hipocrisia, da mesquinhez do aparelho do Estado, constrange, cada vez mais, as escolhas da sociedade.
As instituições brasileiras têm queixo de vidro, por isso, não se realimentam, pois crêem que toda essa porcelana que as cercam, protegem-nas do que na verdade são. Não há comunhão com portas fechadas, com decretos impositivos. Tudo isso é uma bobagem com fundamentos rasos.
Esta belíssima letra da música “Pesadelo” de Maurício Tapajós e Paulo Cesar Pinheiro, composta durante a ditadura militar deveria ser lida diariamente como um ato cívico nos nossos departamentos de cultura. A fotografia da banda de escravos a qual me referi, deveria servir também de exemplo diário para que toda e qualquer forma de intervenção seja sempre expurgada. Se tivéssemos mesmo a coragem de assumir uma postura social relacionada à cultura, às artes, o primeiro caminho seria não excluir, não aconselhar, não produzir bolhas, vácuos, lacunas através de um verbo intransitivo que é a arma de fácil utilização pelo comando. Mas que também recebe na mesma monta toda a rejeição de uma sociedade que reinventa, dia após dia, formas de se proteger contra essa farsa social que no Brasil tem o nome de “projeto cultural”.
Não há exatamente um bode no Ministério da Cultura, há sim, em quase a totalidade das instituições de cultura do país, uma cabeça de burro enterrada em seus calabouços, aqui chegada junto com as famosas caravelas Santa Maria, Pinta e Nina, enterrada nas terras de Vera Cruz. A cabeça desse burro é o grande amuleto das nossas sagradas instituições culturais.
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