“Aliada à Internet, a distribuição digital permite o pagamento direto ou o download gratuitos de criações digitalizadas, driblando os canais tradicionais e restituindo ao produtor o direito de estabelecer o preço e as condições de uso de suas obras”

Montevidéu, março de 2007, data importante para o debate sobre economia da cultura na América Latina. Promovido pelo Convenio Andrés Bello, em parceria com o Ministério da Educação e Cultura do Uruguai, o Seminário Laboratorio de Economía de la Cultura” reuniu um grupo reduzido de especialistas em economia da cultura de distintos países da região. Dentre a miríade de temas seminais em discussão, da concentração dos meios de comunicação a estudos sobre o perfil do artista, um me pareceu especialmente merecedor de debate: a exclusão digital como exclusão cultural.

Os fatos que sustentam a ameça do abismo digital são conhecidos. Enfatizemos dois. O primeiro diz respeito ao gargalo na circulação de produtos e serviços culturais, que se acirra a olhos vistos com a concentração dos canais de distribuição. Segundo dados da Unesco, mais de 80% das telas de cinema do mundo estão nas mãos dos grandes conglomerados internacionais. Torna-se fácil entender porque são raros os filmes indianos ou chineses em exibição fora de seus países de origem, embora sejam produzidos em número maior do que os que mostram o passaporte dos Estados Unidos. Na música, cerca de 70% do mercado mundial é controlado por quatro majors. No setor editorial, aquisições e fusões fermentam o índice de concentração, sugerindo ser mais fácil promover o tráfego das culturas pelos meandros da globalização. Se observarmos os catálogos das editoras atuantes no Brasil, veremos que realmente há escritores brasileiros com presença internacional. Mas, enquanto estes são raros, tornam-se cada vez mais restritos os espaços abertos à publicação de obras dos novos escritores brasileiros em seu próprio país.

O segundo ponto diz respeito ao malfadado torniquete imposto pela exacerbada tendência a registrar, controlar e exigir direitos de propriedade intelectual, tão veementemente denunciada e combatida por iniciativas como o Creative Commons e os modelos de open business em geral. Alta dos preços dos livros, revolta diante dos preços dos CDs, restrições legais crescentes à circulação de saberes. Ora, direis, a culpa é da pirataria. Ação ou reação?

As tecnologias digitais, ao romperem com o paradigma de distribuição linear e proporem o protagonismo individual, possibilitam um sem-número de canais alternativos de distribuição. Aliada à Internet, a distribuição digital permite o pagamento direto ou o download gratuitos de criações digitalizadas, driblando os canais tradicionais e restituindo ao produtor o direito de estabelecer o preço e as condições de uso de suas obras. Faz isso a custos marginais tendendo a zero, conforme o best-seller “A Cauda Longa”, no qual se defende que as tecnologias digitais permitem a muitos títulos anteriormente considerados de nicho se mostrar lucrativos em conjunto. Além disso, oferecem uma gama gigantesca de formas de criar a baixo custo, transformando um computador em um pequeno estúdio de música e vídeos.

O problema, justamente, é que são poucos os que se beneficiam desse novo modelo que reverte o círculo vicioso da concentração. A grande maioria não só é excluída desse processo de produção, distribuição e acesso alternativo, como fica cada vez mais na rasteira de uma linguagem crescentemente inalcançável. É a exclusão digital levando em seu vácuo à exclusão cultural.

Dados mais recentes da Internet World Stats dão conta de que a penetração da Internet na América Latina e Caribe em janeiro não passava de 16% da população da região. Na Ásia, 10,5%. Na África, 3,5%. Na América do Norte, 69,4%. Ora, dirão as vozes críticas, não são dados surpreendentes, tendo em vista o perfil da economia dessas regiões. Certo – e é justamente aí que reside o problema. Reproduz-se um esquema perverso de exclusão econômica, que leva à exclusão do conhecimento, que reforça a exclusão econômica. E de um ciclo recorrente de exclusão digital que leva à exclusão cultural e vice-versa.

Mas há esperanças. Enquanto governos, indústrias e a sociedade civil defendem a criação de computadores habilitados para a Internet a baixíssimo custo, uma forma complementar de motivar a inclusão digital se afigura no horizonte: a telefonia celular. Graças à convergência digital, aos baixos preços dos aparelhos, à cobertura da rede e aos saltos tecnológicos, a inclusão digital começa a se configurar como um sonho mais factível. Dados do Núcleo de Coordenação e Informação do ponto BR (www.nic.br) revelam que, em 2006, enquanto a posse de computadores no Brasil era de 19,3%, a de celulares atingia 67,7%. Hoje, há mais linhas de telefones celulares no Brasil do que linhas fixas.

Também na criação a possibilidade de inclusão cultural motivada pelos celulares se mostra promissora. Um exemplo é o Mobilefest, festival internacional de arte e criatividade móvel, que partirá este ano para sua segunda edição. E o que dizer das cifras galopantes de negócios dos produtores de conteúdo para celulares? Se para todo problema há uma solução, aproveitemos este veio de possibilidade da convergência digital a nosso favor. E fiquemos atentos às implicações das decisões na esfera da TV digital, já que seu impacto pode catapultar nossas chances de estreitar o abismo digital – ou nos condenar definitivamente a ele.

Ana Carla Fonseca Reis


Economista, mestre em administração e doutora em urbanismo, autora dos primeiros livros brasileiros em economia da cultura, economia criativa e cidades criativas. É consultora e conferencista em 29 países e sócia-diretora da Garimpo de Soluções.

3Comentários

  • Maria Alice Machado de Gouveia, 28 de abril de 2007 @ 17:31 Reply

    Ana Carla: o grande problema do abismo digital está não no acesso ao equipamento – computador e linha de Internet – que esse´já é grande – mas sobre tudo na capacidade de usá-los para gerar novas formas de difusão de conteúdo cultural – dificuldade que muitos setores da cultura ainda têm em lidar com a “nova economia”. O pessoal ainda acha que comprar livro é importante, quando eu (que compro mais de 10 livros em média, por mês) acho que livro serve para juntar poeira e fazer peso nos armários, estantes, caixas, cestas e tudo o mais que eu uso para enfiá-los. Assim como os CDs – que graças a Deus estão sendo substituídos pelos Ipods. O negócio é que enquanto se discute um modelo de entrega de produto ultrapassado – olha só o Mec distribuindo os livros escolares aí gente – por caminhão, barco etc. quando era só botar uma impressora média em cada cidade e imprimir localmente os livros – que implica na propriedade particular e física do bem, os produtores culturais da periferia já estão muito mais adiante, quer dizer, os que sabem usar o computador e os programas para gerar e difundir produtos culturais.
    Abraços – Maria Alice Gouveia

  • Ana Carla, 1 de maio de 2007 @ 20:22 Reply

    Oi, Maria Alice. Concordo que a disponibilidade de equipamentos e software não seja condição suficiente para resolver o problema – mas, infelizmente, ainda é condição necessária. Não querendo pecar pelo otimismo, fico esperançosa quando vejo pessoas de classes sociais marginalizadas e/ou de idade avançada deliciando-se com as estrepolias tecnológicas que os celulares nos oferecem. Enquanto essa familiaridade for fomentada, sob as mais diversas vertentes, a bandeira ainda valerá a pena!
    Abs, muito bom vê-la por aqui!

  • Lucio Sorrentinho, 3 de maio de 2007 @ 16:51 Reply

    Acho que a única coisa que pode ser pior do que um militante anti-digital é um militante anti-livro. Não é verdade que livro só sirva pra juntar poeira. Livro lido, relido, emprestado, passado a diante, discutido, não junta poeira. Livro bem comprado, por critério, não por impulso ou só porque esteja na moda, também não junta poeira. Além do mais, se as pessoas não forem treinadas para ler LIVRO, ninguém nunca poderá ser treinado para ler em tela. Só falta, mesmo, alguém supor que o Brasil estará avançando apenas por alguém pôr laptops nas mochilinhas dos pobres. O Estado brasileiro tem, sim, de distribuir MUITO LIVRO pelo Brasil. A inclusão digital é um processo CULTURAL de letramento pra educar cidadãos e eleitores. Não é um processo de digitalizamento à moda diabo, só pra inventar consumidores de bugigangas digitais. Quanto à questão papel versus outros suportes, lembro que nenhuma pessoa ou empresa de bom-senso (nem o Bill Gates) arquiva só em suporte digital documentos que se espere que durem mil anos, pela suficiente razão de que não se sabe quanto tempo durarão os novos suportes. Besteira tem limite. Escrever que livro “junta poeira”, sinceramente é pregar o atraso do Brasil. Nem na Idade Média — e nem os analfabetos — jamais desprezaram o livro impresso. Nenhum hard-drive invisível substitui uma prateleira visível de livros visíveis.

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