Por que a Economia Criativa é uma potente estratégia de desenvolvimento
Acho que faz parte do meu destino nunca conseguir responder de maneira fácil a perguntas óbvias (qual seu nome, o que você faz…essas coisas de conversa de sala de espera). A começar pelo nome impronunciável que me levou a adotar o Lala, seguindo pelo que faço (durante muito tempo minha diversidade de atuação fez com que eu fosse esquisita, mas hoje a esquisitice tem um nome interessante: transdisciplinariedade). Durante muitos anos, quando perguntavam qual era minha área, a resposta “cultura” produzia um “ahh…” murcho seguido de olhar penalizado. Agora, a resposta “Economia Criativa” produz um “ahh !!” entusiástico, seguido de olhar com aquele tipo de respeito que a gente tem por coisas que desconhece mas soam importantes (é o poder da palavra economia, esse deus dos nossos tempos).
Então vamos lá: na parte 1 do artigo vimos que a Economia Criativa é identificada como uma das grandes estratégias de desenvolvimento para o século XXI por seu potencial de produzir desenvolvimento sustentável e não mero crescimento econômico.
Ela congrega uma série de atividades divididas em três núcleos (artes, produção de conteúdos e serviços criativos) que têm em comum o fato de terem na criatividade sua essência e elementos intangíveis como “matéria prima”. Seria então uma economia do intangível: um setor que se dedica a gerar resultados tangíveis (desenvolvimento, trabalho, recursos etc) a partir de elementos intangíveis (conhecimento tradicional, artes, propriedade intelectual etc).
O que faz ou não parte da Economia Criativa é uma discussão ampla, já que este é um setor que reúne atividades muito diferentes (de teatro de bonecos a patentes). Por que então chamar esta vasta salada de Economia Criativa? Porque, mesmo sendo diferentes, estas áreas têm muitos aspectos em comum (exemplos: distribuição é a chave e diversidade cultural uma premissa) e portanto necessitam de políticas e condições específicas para que possam efetivamente alcançar seu potencial de agentes de desenvolvimento e evolução social. Resumindo: para haver política setorial é preciso que haja um setor. Assim,é oportuno congregar estas diversas atividades num mesmo guarda chuva para que se possa desenvolver os mecanismos e ambientes favoráveis ao seu florescimento.
A maior dificuldade de se trabalhar com Economia Criativa é ao mesmo tempo o que a torna tão eficaz, um agente de transformações profundas: EC requer ação sistêmica, integrada, coordenação entre setores diferentes. Ela só pode ser trabalhada através de processos (não de produtos ou eventos isolados) e nossas instituições (governos, empresas, academia) ainda não estão preparadas para isso. O interessante é que, quando se adota a EC como estratégia, o próprio processo de trabalho faz com que as instituições vão se transformando (e as pessoas também – é lindo observar esta transformação). Ou seja, num mundo onde todos os setores, apesar de interdependentes, ainda não possuem mecanismos para atuação integrada, a sinergia e a transversalidade necessárias para atuação em EC conduzem a grandes transformações.
Ao sistematizar estes processos de atuação em EC devemos construir uma cadeia que inclua tanto os aspectos tangíveis (relacionados ao econômico), quanto aspectos intangíveis (relacionados ao social ). Assim, precisamos de um modelo includente, e nossa proposta (da Ana Carla Fonseca e minha) tem sido de trabalhar com um Ciclo Integrado de Economia Criativa, que permita esta visão/ação sistêmica, pois o conceito tradicional de cadeia produtiva é muito linear e não se aplica.
A Cadeia Integrada da Economia Criativa engloba as várias etapas (tangíveis e intangíveis) do processo criativo: formação, criação, produção, distribuição, acesso, gestão de conhecimento e memória. Cabe ressaltar que, quando nos referimos a processo estamos falando de algo maior que processamento, sendo este último um termo mais adequado para quando nos referimos a cadeias produtivas e à Indústria Criativa ( ex: o processamento do fio em vestuário ou da criação musical em fonograma).
Distribuição, acesso e gestão de conhecimento são áreas chave nesta Cadeia Integrada, por serem áreas altamente estratégicas. Quem detém seu controle, detém o controle da formação e transformação de mentalidades e hábitos das comunidades.
Para aqueles que ainda tem paciência, inumero a seguir algumas outras características que fazem com que a Economia Criativa seja uma potente estratégia de desenvolvimento, uma vez que ela:
– promove maiores oportunidades de geração de trabalho e renda, dadas as suas características, com o benefício extra de estar associada à inclusão e responsabilidade social. Acredito que, assim como o século XX foi o século da imagem, o século XXI será o século do “cuidar”. Logo, o fascinante universo representado pela interface com o terceiro setor (ONGs, sociedade civil organizada) oferece múltiplas oportunidades e alto grau de inovação.
– favorece a diversidade cultural ao incluir o uso de conhecimentos e técnicas tradicionais numa perspectiva contemporânea. Esse é um aspecto fundamental para países em desenvolvimento, já que nós temos geralmente enormes recursos culturais ainda pouco aproveitados. São saberes e fazeres originários das várias etnias que nos compõem, de nossas práticas tradicionais e (algo novo e muito rico) de todas as populações periféricas e marginalizadas que, nas adaptações exigidas por seu cotidiano, desenvolvem práticas criativas e organizacionais inovadoras.
– tem um largo espectro de formas de organização: do mercado informal, pequenas e micro empresas até grandes corporações multinacionais. Incluir estes vários níveis organizacionais não apenas é necessário (impossível desconsiderar o enorme volume da informalidade e o papel das MPEs) como conduz a novos modelos organizacionais mais adequados à sociedade e economia do futuro, tais como economia solidária, cooperativismo e gestão compartilhada.
– é um fator de integração de setores e dimensões da sociedade, por sua multidimensionalidade. Essa integração é fundamental para que mudanças realmente profundas possam ser efetuadas e para obter maior eficiência. O desperdício de recursos, tempo e credibilidade causado pela falta de atuação articulada é um dos fatores mais nefastos na condução de processos de desenvolvimento.
– não está necessariamente ligada à geração de Propriedade Intelectual, mesmo porque este é um conceito que requer alterações profundas. Eis aqui um ponto onde discordamos de outros especialistas (vindos principalmente dos países do norte, que querem “viver” de PI paga pelos países do sul). Enquanto ele fazia sentido no século XX, deixa cada vez mais de fazer sentido no XXI, num cenário de convergência tecnológica, de criações baseadas em outras criações, de intenso compartilhamento de conteúdos. Um cenário que exige um equilíbrio mais racional entre os direitos do autor e os direitos da sociedade e onde é preciso atenção para áreas fortes da Economia Criativa (como o artesanato), que tem duplo papel (econômico e social), e não geram PI.
Em síntese, o grande diferencial da Economia Criativa é que ela promove desenvolvimento sustentável e humano e não mero crescimento econômico. Todas as características acima permitem que, ao promover a inclusão de segmentos periféricos da população mundial, ela também forme mercados. Afinal, não é mais possível só brigar por fatias de um mercado que engloba apenas 30 a 40% da população mundial. É preciso fazer com que os 60 a 70% restantes adquiram cidadania de fato, conquistando – entre outros papéis mais importantes – também seu papel como consumidor.
Em tempo: eu, na verdade, sigo fazendo o que sempre fiz – cultura como estratégia de transformação e desenvolvimento. O que mudou foi o fato que isso agora está inserido no guarda chuva da Economia Criativa. E, talvez por ser este um nome que provoca AAHH e não anhn, a cultura (para ser percebida como bolo e não cerejinha) abriu mão de seu nome. Que seja uma mudança temporária, pois a cultura é maior que a economia criativa.
Lala Deheinzelin
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