Gegê Leme Joseph é museóloga e a arquiteta. Depois de 10 anos atuando em museus na África do Sul e outros países, ela acaba de voltar ao Brasil e tornou-se sócia da Deusdará, empresa especializada em projetos audiovisuais, culturais e museais.
Entre seus trabalhos estão a participação na implantação de museus como o Constitution Hill Complex, o Kliptown Open Air Museum e o Samora Machel Museum; no desenvolvimento de exposições para o Nelson Mandela Museum; e consultorias estratégicas para museus como Maropeng: Cradle of Humankind, entre outros.
Cultura e Mercado conversou com Gegê para saber quais os desafios brasileiros na gestão de museus hoje. Confira na íntegra:
Cultura e Mercado – Quais são os principais obstáculos para uma boa gestão de museus?
Gegê Leme Joseph – Há uma série de fatores relevantes que poderíamos entender como obstáculos para uma boa gestão de museus: dificuldade em obter recursos financeiros contínuos para manutenção, modernização e operações, a dificuldade em remunerar adequadamente seus funcionários chave, quadros espremidos de profissionais, dentre outros. Mas, a meu ver, o obstáculo primordial nos dias de hoje está no desafio que os museus encontram para refletir, de dentro para fora, as mudanças que vêm ocorrendo em suas funções e raison d’être, e os impactos definitivos que estes impõe aos modelos de gestão prevalentes até hoje.
Esta revolução no pensar museológico mundial não começou agora, mas foi bastante priorizada desde a última crise econômica mundial. Em países onde recursos públicos para os museus escassearam, iniciou-se um processo de pressão governamental e pública para que eles se tornassem mais sustentáveis. Para isso, estão tendo que se tornar mais relevantes, se aproximar de suas comunidades de interesse e estabelecer com elas uma relação de utilidade pública verdadeira. Somente comprovando relevância para seus públicos, os museus têm conseguido continuar acessando recursos públicos para suas operações. Além disso, estão tendo também que buscar formas criativas e comerciais de transformar seus próprios recursos (coleções, arcabouço de pesquisa, espaços, pessoas etc.) em produtos e serviços que, ainda que alinhados com sua missão, sejam atraentes e capazes de gerar receita. Assim, museus estão passando a se centrar nas necessidades reais de seus públicos e não na percepção de necessidade estabelecida por seus profissionais.
Essa mudança de perspectiva tem grande impacto na gestão dos museus. Este desafio, que atinge museus a nível mundial, coloca em todos nós profissionais de museus a responsabilidade de adaptarmos nossas práticas em busca de um modelo sustentável de gestão museológica que seja adequado a um museu relevante e significativo para seus públicos. Entretanto, sua efetivação ainda encontra diversas barreiras e resistências dentro da própria comunidade museológica. Esse é para mim o maior obstáculo à boa gestão de museus nos dias de hoje.
CeM – Em comparação com outros países, podemos dizer que o Brasil está em dia ou muito aquém no que diz respeito a uma boa gestão nessa área?
GLJ – Bem como outros países, o Brasil está em processo de mudança de seus modelos de gestão para refletir os novos pensares e fazeres museológicos. Há profissionais de peso atuando tanto em nossas instituições públicas quanto privadas, muito empenhados em construir esta transição de forma efetiva e sustentável. Museus e centros culturais têm atraído públicos crescentes, como comprova o sucesso de grandes exposições temporárias e de instituições como o Museu do Futebol em São Paulo, Inhotim em Minas Gerais, o MAR no Rio de Janeiro e tantos outros.
Entretanto, para a maioria dos museus, essas mudanças de modelo de gestão são lentas e esbarram não só nas dinâmicas naturais de adaptação das práticas profissionais e estruturais, mas também nas especificidades dos modelos de financiamento público para cultura, que apesar de terem muitas vantagens, acabam por favorecer projetos focados em resultados isolados ao invés de potencializarem investimentos na reestruturação organizacional dos museus. Isso limita a capacidade de os museus implementarem mudanças de dentro para fora e coloca o desejo de mudar de seus gestores em descompasso com sua capacidade de executar mudanças.
Sinto que ainda há necessidade de avaliarmos nossas instituições buscando maior integração entre departamentos, com o mundo globalizado e potencializando seus recursos materiais e humanos. Museus são guardiões de um patrimônio tangível e intangível inestimável, e é imprescindível que analisemos como melhor disponibilizá-los para nossa sociedade, a real beneficiária desses recursos. Isso deve se refletir desde a visão institucional à estrutura organizacional e políticas museológicas. Há um caminho para promovermos esta integração e trazermos as necessidades, expectativas e desejos do público para o centro das estratégias de gestão dos museus, e portanto permitir que novos modelos de gestão venham a promover os resultados que estamos buscando.
CeM – Os museus renovaram sua missão e atividades com o passar dos anos, em todo o mundo. Deixaram de ser locais “de coisa antiga” e passaram a ser espaços culturais com novas atividades e funções. Os modelos de gestão, de modo geral, acompanharam essas mudanças, ou ainda falta muito?
GLJ – Alguns museus são hoje modelos de utilidade pública, aliando através de seus serviços e exposições espaços de educação e entretenimento para crianças e famílias, educação ampla para adultos, acesso à informação qualificada, participação pública, além de serem centros de referência em assuntos específicos. Cito como exemplo o Museu de Ciências de Londres, que atrai grandes quantidades de visitantes, mas principalmente locais, e tem números impressionantes de revisitas. Tanto esse museu como outros, como o Museu de História Natural de Londres, o de Nova Iorque, o MoMA em Nova Iorque, conseguiram estabelecer relações duradouras com seus públicos e tornaram-se para eles parte de seu cotidiano, seja para visitar uma nova exposição, participar em discussões, visitar o café, comprar um presente ou só para rever uma obra ou coleção com a qual desenvolveram uma relação.
Essa relação afetiva e duradoura com o público é 100% fruto de um modelo de gestão focado na criação de uma experiência museal em consonância com as necessidades, expectativas e desejos de suas comunidades de interesse. Para que esse foco de gestão seja possível, ele deve permear toda a estrutura organizacional do museu, dos bastidores à ‘frente da casa’, do almoxarifado aos recepcionistas, do discurso e práticas dos diretores, curadores e pesquisadores até o guia do museu. Não há muitas instituições no mundo que tenham conseguido atingir esse nível de integração e coerência. Mas o desejo existe, e o caminho está sendo trilhado para isto.
CeM – No Brasil temos museus públicos, privados e geridos por Organizações Sociais de Cultura. É assim também no exterior? É possível dizer o que funciona melhor, ou cada modelo tem seus prós e contras?
GLJ – Cada país tem uma especificidade de gestão de museus. Essas são mais condicionadas pelas políticas públicas culturais e seus impactos sobre as instituições. A maioria dos países no mundo tem museus públicos e privados e organizações sem fins lucrativos que gerem diversas instituições. Em geral, o melhor modelo é aquele que permite independência a seus gestores para tomarem decisões pautadas em reais benefícios para os museus e não em pressões políticas. Museus, públicos ou privados, são instituições complexas e possuem ‘stakeholders’ com interesses diversos. Faz parte da boa gestão atender as necessidades dos ‘stakeholders’ e manter ao mesmo tempo intactos os valores, visão e missão do museu, e consistência absoluta em seu foco. É um trabalho delicado e de equilíbrio tênue, mas faz parte da cartilha de boa gestão não só de museus, mas de instituições em geral.
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