A diversidade cultural como valor. Em 2001 a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO elaborou a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural.
Logo em seu 1º artigo, intitulado “diversidade cultural: herança comum da humanidade”, reforçase a idéia de que a cultura toma diversas formas ao longo do tempo e do espaço e que a diversidade está incorporada na unidade e pluralidade das identidades grupais que representam a riqueza simbólica da humanidade. Como fonte de troca, inovação e criatividade, a diversidade cultural é “tão necessária para a espécie humana quanto a biodiversidade é para a natureza”.
O ideal a ser alcançado é o pluralismo cultural, que não deve ser confundido simplesmente com a diversidade de manifestações culturais, mas como conhecimento e respeito ao “outro”. Vivemos numa sociedade em que coexistem múltiplas referências culturais afirmadas por uma “ética da universalidade de direitos e dignidade” (FIRMINO DA COSTA, 2002) que reconhece a idêntica dignidade das diferenças. Isto não significa, em absoluto, que o pluralismo seja sinônimo de congraçamento geral, mas “um espaço de emergência de demandas que não somente expressam injustiças passadas, mas a exclusão sobre a qual se assenta toda ordem social” (BURITY, 2001).
Não é que tenhamos que amar um ao outro (…) Temos é de conhecer um ao outro, e viver com este conhecimento, ou acabar como náufragos num mundo beckettiano de solilóquios em colisão (GEERTZ, 1999:30).
Em 2006 a UNESCO produziu seu mais recente documento referente à questão da diversidade cultural, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, celebrado em Paris durante a 33ª reunião da Conferência Geral da Organização das Nações Unidas entre os dias 03 e 21 de outubro de 2005. O texto oficial foi ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006. No preâmbulo dos artigos, o texto recorda ao público leitor que a cultura e a diversidade cultural são, dentre outras coisas, uma característica essencial da humanidade; nacionais e internacionais; manifestam-se na originalidade e pluralidade de identidades; fontes de coesão social; se fortalecem mediante a livre circulação de idéias e se nutrem das trocas constantes e da interação entre os grupos sociais.
Uma série de princípios chama a atenção para o fato de que nenhuma medida ou política destinada à proteção e promoção da diversidade de expressões culturais pode infringir os direitos humanos e as liberdades fundamentais como a de expressão, informação e comunicação, bem como a liberdade dos indivíduos se expressarem culturalmente. Os países que ratificaram a Convenção estão obrigados a promover em seus territórios a criação de um ambiente que encoraje os indivíduos e os grupos sociais a criarem, produzirem, disseminarem, distribuírem e acessarem suas expressões culturais, bem como acessarem as demais expressões culturais dentro de seu território e
de outros países do mundo.
Estado-Nação e globalização
Tanto a Declaração Universal de 2001 quando a Convenção da Diversidade de 2006 foram produzidas num contexto de questionamento de conceitos há décadas enraizados nos discursos e na própria vivência dos indivíduos e grupos sociais, como “Estado-Nação” e “identidade nacional”, ameaçados por um ente abstrato de cujas garras nenhum de nós está a salvo e sobre a qual muito pouco se tem refletido para além do senso comum da “ameaça externa”: a temida globalização.
O crescente e cada vez mais intenso fluxo material e simbólico entre as regiões e grupos socioculturais ao redor do globo deixa clara a dificuldade de pensarmos o Estado-Nação como o núcleo cultural comum monolítico dentro do qual há uma adesão a um conjunto de normas válidas para toda a comunidade política. Cada vez mais se percebe que o apelo à identidade nacional unitária mostra-se hoje “anacrônico e fora de foco” (COSTA, 2009). A identidade nacional é mais uma entre tantas identidades disponíveis no cardápio simbólico oferecido no dia-a-dia, quer dizer, a afirmação da nacionalidade não invalida, submete ou diminui a importância das demais formas de identificação (gênero, etnia, classe social, orientação sexual, religião, futebolística), dependendo apenas do contexto em que tal afirmação ocorre.
Seria estranho não comemorar um gol de seu time com o torcedor ao lado porque ele não professa a mesma religião que a sua, afinal de contas, a “declaração de identidade” daquele momento é a clubística.
O conceito de identidade nacional padece, assim, de certo viés monolítico. É comum encontrarmos expressões do tipo “o brasileiro é assim”, “o argentino é desse jeito”, “o francês é daquele”, num reducionismo que se choca com a diversidade cultural. Existem, é claro, patamares de homogeneidade, como a língua, por exemplo. Mas a existência de múltiplas identidades culturais invalida a noção de cultural nacional unificada. (VIEIRA, 2009: 64)
O exemplo do futebol e da religião, duas importantes dimensões simbólicas do estar-no-mundo brasileiro, expressam a identidade em permanente construção ainda que sejamos confrontados “com movimentos e grupos que pretendem estar em direta continuidade com um passado ameaçado de destruição ou injust (ificad) amente violentado” (BURITY, 2001: 9). É interessante observarmos novas compreensões do fenômeno da identidade, como a “pós-estruturalista”, que contrapõe as identidades homogeneizadoras que aprisionam a cultura à idéia de diferença, não no sentido de herança biológica ou cultural, nem de reprodução de uma pertença simbólica conferida pelo local de nascimento ou inserção cultural, mas àquela construída no processo de sua manifestação, “fluxo de representações, articuladas ad hoc, nas entrelinhas das identidades externas totalizantes e essencialistas – nação, a classe operária, os negros, os migrantes, etc.”. (COSTA, 2009: 42). Discursos e sujeitos constituem-se simultaneamente.
Esta compressão espaço-temporal, esta realidade do “tudo ao mesmo tempo agora”, não é novidade. Numa de suas crônicas no início dos anos 1970, Nelson Rodrigues dizia que “outrora uma notícia levava meia hora para chegar de uma esquina a outra esquina. Hoje não. A INFORMAÇÃO nos persegue. Todos os sigilos são arrombados. Todas as intimidades são escancaradas” (RODRIGUES, 1995). A imagem da “aldeia global” representa, para muitos, uma ameaça aos seus estilos de vida, seus valores, suas manifestações culturais, mas, o que se observa, apesar e por causa deste processo de intensificação das trocas de informação, de material físico e simbólico, é a proliferação e fortalecimento de identidades culturais diferenciadas.
Para além do multiculturalismo
Isto significa dizer que o fenômeno da globalização é vivido de maneira diversa daquela utilizada por discursos políticos nacionalistas, xenófobos, dos chamados “comunitaristas” que advogam o fechamento das fronteiras simbólicas de seus grupos por acreditarem numa “essência” cultural imutável, a-histórica. A globalização deve ser entendida para além da “indiferenciação”, da “homogeneidade”, da “pasteurização” cultural. Esquece-se que “o global termina e se realiza no local” (DA MATTA, 1996) e que as inovações não são isentas de valores e não entram em espaços vazios de cultura.
Daí a importância de se questionar os usos políticos indevidos do conceito de “multiculturalismo”, apregoado como resistência ao rolo compressor globalizante, muitas vezes desvirtuado em nome de uma sociedade mais democrática que acolhe as diferenças. Isto porque estas diferenças passam a ser entendidas como “naturais”, herdadas biologicamente, representadas por atributos físicos que pouco ou nada dizem sobre a capacidade dos indivíduos de produzir cultura, de construir simbolicamente a realidade que os cerca. Desvirtua-se, assim, a idéia básica de que multiculturalismo diz respeito, dentre outras coisas, ao reconhecimento da não-homogeneidade cultural das sociedades e à necessidade de elaboração de políticas públicas que assegurem a diversidade de grupos e tradições, porque a sobrevivência destes grupos e tradições depende da interação com outros grupos e tradições, oxigenando-os.
O multiculturalismo não deve ser usado como instrumento de segregação física e/ou simbólica em nome da manutenção de uma suposta “verdade” intrínseca à determinada identidade coletiva. O contato fortalece a diversidade porque “obriga” os membros do grupo a repensarem e atualizarem os processos de identificação e suas formas de representação. Talvez devamos utilizar o termo “interculturalidade” proposto por Canclini (2009), remetendo-nos à confrontação e à mistura entre sociedades, ao que acontece quando os grupos entram em relações e intercâmbios. A interculturalidade tupiniquim quer “tudo junto e misturado”, sem apagar as fronteiras culturais. A cidadania cultural pressupõe a participação em múltiplos contextos simbólicos, em múltiplos pertencimentos, em múltiplas identidades, em inúmeras “províncias de significado” (SCHUTZ, 1973). As trocas de experiências fortalecem as fronteiras, mais
do que as apagam, uma vez que o significado que “entra” é ressemantizado de acordo com a visão de mundo de quem está “dentro”.
Cabe ao Estado brasileiro elaborar políticas culturais que deem conta da diversidade simbólica encontrada de norte a sul do país, dentro de cada estado, de cada cidade, de cada bairro, de cada rua. A globalização pode romper as fronteiras simbólicas do Estado-Nação, mas não elimina a responsabilidade do poder público de fomentar, em parceria com a sociedade civil e a iniciativa privada, o debate e a construção de soluções para a exclusão social e, não menos importante, cultural. A ele não cabe produzir cultura, definir o que é legítimo ou espúrio, mas dar condições para que a sociedade como um todo represente e se veja representada. Somente assim conseguiremos alcançar a tal desejada democracia cultural.
Referências bibliográficas
BURITY, Joanildo. Globalização e identidade: desafios do multiculturalismo. Trabalhos para discussão. Recife: Fundação Joaquim Nabuco. 2001.
CANCLINI, Nestor Garcia. Diversidade e direitos na interculturalidade global. In: Revista Observatório Itaú Cultural nº.8 (abril/julho). São Paulo: Itaú Cultural. 2009.
COSTA, Sergio. Diferença e identidade: a crítica pós-estruturalista ao multiculturalismo. In: VIEIRA, Liszt (org.) Identidade e globalização: impasses e perspectivas da identidade e da diversidade cultural. RJ: Record. 2009.
DA MATTA, Roberto. Globalização e identidade nacional: considerações a partir da experiência brasileira. In: MENDES, Cândido & SOARES, Luis Eduardo. Pluralismo cultural, identidade e globalização. Rio de Janeiro: Record. 1996.
GEERTZ, Clifford Os usos da diversidade. In Horizontes Antropológicos n.º 10. Diversidade Cultural e Cidadania. Porto Alegre: PPGA/UFRGS, 1999.
RODRIGUES, Nelson. Os que propõem um banho de sangue. In: CASTRO, Ruy (org.). O reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Cia. das Letras. 1995.
SCHUTZ, Alfred. On phenomenology and social relations. Chicago: The Chicago University Press, 1973.
UNESCO. Convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais. Brasília: UNESCO, 2006.
______. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Paris: UNESCO. 2002.
VIEIRA, Liszt. Morrer pela pátria? Notas sobre identidade nacional e globalização. In:
VIEIRA, Liszt (org.) Identidade e globalização: impasses e perspectivas da identidade e da diversidade cultural. RJ: Record. 2009.
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