Hoje teremos o início da propaganda eleitoral obrigatória do próximo pleito municipal. Provavelmente, a cultura e a arte estarão fora da pauta, assim como acontece em todas as esferas de poder no Brasil. É certo que sempre tivemos dificuldade de encontrar uma dosagem equilibrada entre política e cultura, tem algo estranho no meio de tudo isso, falta objetividade, falta um quê de pragmatismo de ambas as partes. As vezes, esses cacoetes revelam desastrosas passagens como aquela da república do Canecão, logo no início do primeiro mandato de Lula. Os caciques chegaram gritando pedindo seus apitos de volta, ao estilo, “índio quer apito senão der, pau vai comer”. E, com a mesma falta de critério, o governo cedeu para os pirracentos tubarões de sempre.
Num certo momento, todos estranhamos quando Paulo Bete fez uma acusação de que Lula tinha pouco charme cultural, pois não frequentava teatros, um bruta-montes, uma declaração pouco honesta de Bete, um histórico petista que, naquele momente, andava a se pendurar nos ombros de Fernando Henrique Cardoso, dando-lhe títulos de nobreza e requinte para conseguir patrocínio, sem dúvida, uma cena desagradável e constrangedora que só tem paralelo com a voracidade dos nossos astros globais pressionando os congressistas com o intuito de conseguir mais verbas para suas caríssimas peças, tanto para o contribuinte mecenas, quanto para o público pagante. Mas, como dizem por aí nas rodas de samba e choro, deixa quieto, Deus está vendo! Fico a me perguntar, como podem políticos e artistas, fundir questões de um mesmo interesse ou comungarem de um princípio comum quando as suas posturas de origem são tão díspares?
Isso se deu de uma forma natural, digamos, inteligente entre Juscelino e o movimento da bossa nova. Juscelino, com o seu carisma, conseguiu burlar a imagem de um seresteiro tradicionalista que tinha em sua residência trânsito livre, o grande violonista Dilermando Reis. Logo Dilermando que tinha uma marca característica que lhe custou relativamente caro diante dos olhos do movimento da bossa nova que não aceitava os nossos tradicionais contrapontos.
Mas não é dessa tecnicalidade que estou querendo dizer. Duas coisas caracterizam bem os governantes e a zona sul do Rio de Janeiro. Uma, é a eterna saída estratégica para justificar toda a falta de um planejamento sólido administrativo e social pelas perdas da condição de capital do império e da república. E, o eterno Estado da Guanabara continua ainda nutrindo os fetiches dos nossos governadores que, na realidade, tornam-se super-prefeitos da capital, digo super de recursos, não de ações, pois o caos no Rio de Janeiro só se amplia. O que quero dizer é que se os governantes cariocas forem classificados como fluminenses, para eles soa como ofensa. Não conseguem estender intelectualmente um pensamento de Estado, ficam naquela coisinha de colocar tudo num caldeirão festivo nas areias de Copacabana. Assistimos então, o resultado dessa panela de pressão social que virou o Rio de Janeiro. No mesmo passo, a Funarte do Capanema se confunde com Ipanema e segue o mesmo rítmo ditado pelo metrônomo da eterna capital, pelo menos no charme, pois ninguém é de ferro, claro. Passeiam pelo Estado, com seus representantes, assim como passeavam as carruagens da coroa, distibuindo sesmarias culturais a seus aduladores de plantão.
Pois bem, longe do manifesto reiteradamente fantasiado pela trupe de Ipanema e bairro Peixoto, dos universos que rodeiam as fantasiosas histórias dos Castros e dos Motas entre o Joby e a Pizzaria Guanabara, reduto de militares linha dura, hoje entre o pijama e o manifesto sonolento, há um quê de produtivo.
Havia no movimento da bossa nova uma certa questão de afirmação contra a mudança de endereço da capital brasileira. Juscelino, hábil, construiu uma imagem, mesmo elitista, de um presidente bossa nova, futurista, moderno, em apoio a uma modernidade musical que estava longe de ser tão moderna, porque todos eles eram frutos de uma modernidade bem mais ampla e complexa que teve origem e desenvolvimento, na década anterior, no genial paulistano, Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, que, até hoje, não recebeu os devidos créditos nem da bossa nova, muito menos dos paulistanos por sua fantástica obra.
Se Juscelino foi autor da retirada do charme e benefícios que a capital Rio de Janeiro tinha até então, o que deixou todos enfurecidos pelas bandas da Garota de Ipanema, como pode ser então a imagem de JK, de presidente bossa nova? Um mineiro que gostava dos bordões seresteiros dos casarões de Diamantina. Pois é, num dado momento, todos ganharam. Juscelino conseguiu com isso, convencer a nossa elite de que caminhávamos para um futuro de brisas leves, para uma sociedade literalmente soft, onde a marca da modernidade estava ali naquele momento. Mesmo que o movimento não tenha efetivamente passado do túnel Rebouças, foi sim um grande salto estilístico, conceitual, mas restrito a uma área social que soube também dialogar com o poder e por isso, podemos assistir aos reflexos desse movimento que, se em sua dimensão foi pequeno, em sua publicidade, foi enorme. Estão aí as várias comemorações do seu cinquentenário.
Tudo isso foi um factóide tanto político quanto cultural? Não exatamente, mas se ambas as partes estavam na hora e no lugar errados, como conseguiram essa liga? Lógico, se complementaram em seus interesses, e os dois mitos estão aí.
Não quero com isso, fazer crer que devemos nos inspirar neste episódio, mas acho que cabe a nós, artistas e produtores, construir um manifesto claro, legível, franco sobre todas as questões que consideramos, mais que pertinentes, necessárias para a sobrevivência do homem brasileiro, assim como o feijão e arroz, não caviar e salmão. Precisamos nos concentrar num discurso producente, verdadeiro, na construção de uma pedagogia que nos é de total responsabilidade para indicarmos formas políticas bem delineadas que complementem a mesma do povo brasileiro, com a sua concessão absolutamente prioritária de fazer e contemplar a sua cultura.
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