O Brasil, em pleno 2008, não consegue se libertar das verdades impostas no campo da cultura. As instituições brasileiras construíram suas bases voltadas para um projeto de exclusão determinado por uma casta. Ao longo da sua frágil história republicana, com constantes mudanças de regras, ora por força das armas ditatoriais, ora pelos casuímos político-eleitorais que dobram mandatos e golpeiam a constituição, em plena democracia, continuamos a assistir ao que é dito popularmente: ao contrário do pobre, o pão do rico sempre cai com o lado da manteiga para cima. Há sempre um jeito de mexer uns pauzinhos nas leis que deveriam contemplar a maioria, transformando-as numa confraria em benefício de poucos.

OS FESTIVAIS DE INVERNO E O ESCOTISMO CULTURAL

“Me dá uma angústia atualmente imaginar em Brasil… é uma entidade creio que simbólica este país. Realidade? Não me parece que seja não e, quanto mais estudo e viajo as manifestações concretas do mito, mais me desnorteio e, entristecer, não posso garantir que me entristeço: me assombro. Na verdade, na verdade este nosso país inda pode dar esperança de si… mas simplesmente porque arromba toda a concepção que a gente faça dele”. (Mário de Andrade).
 
Sei não! Tem horas que tenho a nítida impressão de que quanto mais eu mexo a colher de pau, mais caroço aparece neste angu da Lei Rouanet. Tenho lido algumas colocações que gostaria de pontuar: em primeiro, sobre a questão da concentração de benefícios que a Lei Rouanet trouxe para o sudeste. Alto lá! Meus nobres amigos, sudeste uma vírgula! Aqui na minha região, no interior do sudeste, por exemplo, assistimos agora a uma extraordinária febre de festivais de toda ordem, música, teatro, cinema e literatura, este último principalmente. Alguns com repercussão internacional, vistos com olhos nus, acompanhados por um ufanismo fogueteiro, temos algumas impressões bastante distorcidas do quadro, do balanço real de toda essa falácia.

A crença que alguns têm de que isto esteja movimentando cultural e economicamente esta região, não passa de miragem, pois, de concreto mesmo, o que existe é uma ampliação da exclusão e a segregação da cultura do homem do interior dentro do seu próprio ambiente, explico: a forma com que é aplicado aqui na região este conceito de festivais é uma cópia fidedigna do período oitocentista, com a mesma relação extrativista do interior para a capital, ou seja, província/império. Aliás, não me canso de dizer que a falta de compromisso dessas empresas patrocinadoras com o seu entorno, e são muitas aqui na região, é o bico de papagaio mais explícito desta coluna empenada da lei que deveria ser rebatizada como Lei Jouanet. Mas vamos lá: continuemos com a nossa peregrinação em busca do empirismo, como dizia Nelson Rodrigues, “do sobrenatural de Almeida” para podermos sobreviver de cultura nos mantendo, resistindo, sendo desta região, porque, se dependermos dos professores de Deus, neo-bandeirantes que prometem a catequese e a inclusão cultural para a caboclada daqui, nós matutos, caiçaras ficaremos com aquele velho ditado surgido aqui mesmo nesta região no ciclo do café, “só para inglês ver”, ditado este, relacionado à pintura dos solários de arquitetura francesa que tinham suas senzalas embaixo completamente sem circulação de ar, onde foram desenhadas janelas para que quando, segundo reza a lenda, os ingleses passassem de trem, tivessem a ilusão de que as senzalas tinham janelas, como eles exigiam do baronato.

Lendas à parte, o que vemos aqui não é a consagração do curupira, muito menos do saci, o que assistimos perifericamente é a um piquenique das quintas, debaixo dos arvoredos centenários, em pleno século XXI na era do trem bala, uma mistura perigosa, num conluio que confronta qualquer norma de desenvolvimento sustentável de gestão cultural e econômica, um turismo pontual e ganancioso, sem qualquer critério, sem mapeamento e sem calendário. Assistimos, na realidade, a expectativa dos ecos que nunca chegaram de todo esse foguetório.

Vejamos bem, meus amigos, a FLIP aqui na região, Paraty, o balanço apresentado com retumbante empáfia sobre inclusão através de empregos temporários que chegam a, em média, quatro dias, ou seja, bico do bico do bico, foi de duzentos e cinqüenta subempregos lá no quintal da casa grande. Funciona assim: as cidades são alugadas por grandes corporações culturais de Rio e São Paulo, vendidas aos seus consumidores dos grandes centros como um oásis histórico e bucólico, longe das paulicéias desvairadas e da guerra civil carioca, principalmente. A promessa do culto ao culto, da celebração do intelecto, do reflexivo, da pirotecnia e do contorcionismo conceitual, artisticamente falando, lógico, pois ninguém é de ferro, as palavras de ordem mudaram de tietagem para workshop e master class e o, já consagrado, coquetel aos devidamente credenciados.

Temos também no pacote político-culturalmente correto, a questão em voga, ainda mais aqui nestas terras cabrálias, dos purís, ararís e coroados, a  eco logística, onde a guimba do cigarro jogada no chão pelo caboclo é punida com um olhar atento e fulminante para o transgressor da nova ordem mundial.
O caboclo não consegue entender porque tomou um carão do ecologista do Leblon porque jogou o resto do seu pito no chão, já que viu suas cidades e sua historia serem submersas, vide “São João Marcos”, além de ver o Rio Paraíba ser depredado, em nome do desenvolvimento, por muitas das próprias patrocinadoras que sustentam estes eventos por honra da consciência cultural/ecológica/turística/econômica e outros blá, blá, blás.

Este mingau, essa papa sem liga, essa baba de quiabo é aplaudida e apoiada por todo o secretariado das três esferas do executivo, que podem, assim como as nossas corporações estatutárias de cultura, engrossar seus balanços ao estilo, me engana que eu gosto. Poderia eu ficar aqui olhando toda essa pasmaceira intelectulogística quieto, “Ai que preguiça!”, mas sou obrigado a mandar nossos senhores da economia cultural ir catar coquinho e levarem juntos os seus mecenas.

Cá nessas bandas de Macunaíma das saladas em forma de cortejo tradicional dos santos do pau oco, com essa nova retaliação do TSE aos blogs de opiniões políticas, vemos, os coretos, imagem caricaturada do interior, virarem palanques políticos, para uma sociedade que anda à caça do divertido apimentado, do exotismo caricato e teremos a valorização otimizada de todo esse circuito que contempla a máxima, “se com lona é um grande circo, com muro é um grande hospício”.

O vai-e-vem de uma remontagem de gosto duvidoso das liras, sinhás e mucamas, dos Dórias, dos hits ingleses e suas histórias em quadrinhos, dos super-heróis políticos que, na craca ideológica típica dessa profusão de interesses eleitorais, mandam às favas qualquer coerência,  esses festivais se tornam um novo showmício/oba-oba,também quero. E a cultura brasileira, onde fica nisso tudo? Ah, meus amigos! Vamos refletir o que o nosso monsenhor, o cineasta âncora empresarial, Jabor, nos ensina cotidianamente, aquela velha forma americana de criar um inimigo da guerra fria eterna. Assim, um produtor, um artista coerente se transforma num xiita radical que quer explodir a todos, ou num bolchevista, num stalinista à moda antiga. Esta chatice tão manjada de se criar um inimigo para que o nosso articulista âncora faça as suas bravatas ilusionistas em nome do empreendedorismo fisiológico já deu no saco.

Então, nós daqui que assistimos à chegada dos escoteiros e seus lobinhos disciplinados em nome da civilidade da fala contida,e temos que ficar quietos, calados, não fazer barulho para não acordar a visita e ver se sobrou na quarta-feira de cinzas de todo este carnaval de teatralidade cultural, regado a jardins e pipocas, e catar, um a um, cada piruá que sobrar no fundo dos seus saquinhos jogados ao chão para nos alimentarmos dele e termos força para limpar a cidade, deixá-la limpinha para o próximo ano e tudo recomeçar do mesmo jeito. Os artistas e produtores daqui continuarão encontrando fechadas as portas das empresas instaladas aqui na região, para a produção local e de costas para a rica e verdadeira história cultural local que, a cada dia, tem seus capítulos renovados ,representados por seus próprios personagens.
Por tudo isso, vamos parar de dizer de boca cheia que o sudeste é o grande beneficiado com a Lei Rouanet. Não é, no máximo, o que se pode dizer e com a boca entortada pelo mesmo cachimbo viciado de um preto velho (branco pintado de preto) ao estilo, “A Cabana do Pai Tomás”, é que os benefícios financeiros deste festival de festivais continuam a se dar onde sempre se deram, no sudeste, mas nas cidades do Rio e de São Paulo.


Bandolinista, compositor e pesquisador.

1Comentário

  • Aressa Rios, 13 de julho de 2008 @ 3:11 Reply

    É como já dizia o velho Mestre Carnaúba…
    “É preciso abraçar os encantos…”
    – Mestre Carnaúba –
    (repentista, 99 anos)

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