Acordo, leio as notícias e vejo que a reforma da Previdência passou na comissão especial da Câmara e vai a plenário. Nada surpreendente, a consulta popular foi rejeitada. Idade mínima para se aposentar será de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres. Uma gastrite nervosa faz-se presente e, nessas ocasiões, busco remédio dos livros de História, de onde extraio dados.

5793059580_07a2fc072a_z“O que digo é que o governo tem recursos e há de empregá-los contra aqueles que quiserem perturbar a ordem pública. A questão não pode ser levada pelo modo por que tem sido. Este país não pode viver em contínuo desassossego.” A fala não é de qualquer interino dos tempos atuais, mas sim do Barão de Cotegipe, proferida a respeito de um projeto de lei que desassossegou o Império.

O projeto, elaborado de acordo com os interesses do governo, deu origem à Lei 3270, de 28 de setembro de 1885, mais conhecida como Lei dos Sexagenários, pela qual seriam alforriadas pessoas maiores de 60 anos. O intuito, na prática, era fazer crer que o país não estava na contramão do pensamento libertário mundial, que singrava dos horrores do trabalho escravo para as maravilhas do trabalho livre… Na mesma tacada, procrastinava a abolição da escravatura – promulgada somente três anos depois.

Os principais argumentos empregados para circunscrever a alforria dos sexagenários aos exatos termos do projeto de lei – isto é, sem qualquer emenda –, aludiam à iminência de uma crise de proporções apocalípticas na economia, à desorganização das lavouras e ao próprio peso que aquele contingente de sexagenários representaria para o Estado. Na câmara dos deputados, no senado, nos jornais, em quase toda parte o assunto fervilhava. Diz-se “quase”, porque, em geral, as senzalas e os cemitérios não dominam assuntos crivados de cálculos.

Havendo impacto na economia, a imprensa quis logo saber, em números objetivos, quantos seriam os sexagenários em todo o território brasileiro. Pelo recenseamento de 1872, a população escravizada era de mais de 1 milhão e meio. Desse total, apenas 87.942 eram sexagenários, segundo a Gazeta de Notícias, de 13 de abril de 1885. Interessante notar que a relação percentual entre a população total de escravos e os sexagenários variava muito de província para província. Ou seja, nas províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, onde a pessoa escravizada valia mais, ela também vivia relativamente mais. Já nas províncias periféricas como o Paraná, por exemplo, a população de cativos somava 7.788 pessoas, das quais 88 eram sexagenários.

Em suma, embora o contingente sexagenário fosse irrisório, hastear a bandeira do pensamento libertário sempre teve seu preço. Justamente esse preço, em especial o preço unitário de cada escravo, levou muitos dos senadores à histeria, em sessão para aprovação da Lei. Já no artigo 1º, havia uma tabela com valores por idade… Dispensável será dizer que um sexagenário valia quase nada. Menos do que ele, só mesmo a sexagenária – 25% menos.

Para que tanto cálculo? A questão básica era saber quem iria indenizar o ex-dono do sexagenário pela desapropriação. O Estado, lógico, sempre assoberbado e soberbo, jamais assumiria semelhante dívida. Portanto, o natural é que o próprio sexagenário fosse obrigado a indenizar o ex-dono. Mas como? Com quais recursos? Ora como… Com mais trabalho!

Embora valesse pouco, esse pouco é muito, quando só se tem força de trabalho – se é que aos 60 ainda se tem essa força… Pois bem, os senadores de outrora julgaram que sim, o sexagenário precisaria trabalhar mais alguns anos para indenizar a própria alforria, consumada, via de regra, por volta dos 65 anos de idade, caso o liberto ainda estivesse vivo. Que ironia!

Outra ironia – e mais uma autoindulgência do Estado para consigo mesmo – diz respeito ao caso dos inválidos. O § 2º do artigo 3º da Lei dispunha que o sexagenário inválido não seria alforriado e obrigava o dono a alimentá-lo, vesti-lo e tratá-lo em suas moléstias. A discussão sobre essa obrigatoriedade fez aumentar o barulho entre os senadores. O Senador Martinho Campos insurgiu-se contra a disposição, a qual, para ele, encerrava um “mau princípio”, pois “se o senhor for obrigado a ficar com o escravo invalido, poderá lembrar-se da maneira por que um homem se livra do outro…”. Além do mais, considerou a regra “engraçada”, à qual deveria ser acrescentado que não serão libertados “os que morrerem”.

Mas a grande preocupação da Lei – e isso é perceptível em toda a leitura – é a posterior ocupação dos sexagenários como homens livres. Claro que, à época, passeatas, greves gerais, excursões a Curitiba eram impensáveis para a casta dos sexagenários, mas legislador que é legislador tem que ser visionário, e aqueles enxergaram longe. Dispõe o § 15º do artigo 3º: “O que se ausentar de seu domicílio será considerado VAGABUNDO e apreendido pela polícia para ser empregado em trabalhos públicos ou colônias agrícolas”. Do mesmo modo, aquele que, após a alforria, não encontrasse trabalho para a própria subsistência era considerado vagabundo, seria preso e enviado a trabalhos forçados.

Esse artigo com todos os parágrafos foi aprovado na sessão de 16 de setembro, sendo rejeitadas por 28 votos contra 7 as emendas em benefício dos libertos, propostas pelo senador José Bonifácio. Vencido, o senador proferiu amargo discurso: “Pensam o senado e a câmara que deram um meio de disciplinar o trabalho? É o contrário. Esta disciplina do trabalho não respeita a equidade. Torna o homem livre um homem inteiramente sem direitos, condenado ao trabalho”.

Ainda alguns meses antes, durante toda a campanha abolicionista, a Gazeta de Notícias surpreendia a existência, no Mato Grosso, de um centenário, um cativo com 102 anos de idade. Ante a possibilidade desse homem não conhecer as dignidades da vida livre, o articulista não conteve exclamações: “Um século de escravidão! Oh! Perversidade humana!”.

Qual fim terá levado o cativo? A matéria é desconhecida. É possível que tenha morrido antes da alforria, que já estivesse enfermo ou que tenha sido preso por vagabundagem. É possível que o cativo tenha trabalhado até os 105 para indenizar o ex-senhor. É possível, inclusive, que alguns de nós sejam netos longínquos deste ou daquele. Tudo é possível. No arranjo das possibilidades situa-se a empatia ou a falta dela.

 

Berlim, quarta-feira, 10 de maio de 2017.

Antonio Salvador é escritor e PhD-Candidate em Direitos Culturais pela Humboldt-Universität zu Berlin. Escreve a coluna “O Coice” às segundas-feiras.


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Escritor. PhD Candidate em Direitos Culturais pela Humboldt-Universität zu Berlin.

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