O ano de 2008 está marcado por diversas comemorações: os cinqüenta anos da estréia de “Eles não usam Black Tie”, peça de Gianfrancesco Guarnieri, encenada pelo teatro Arena; os cinqüenta anos do surgimento da Bossa Nova, além das diversas manifestações acadêmicas, sindicais e de grupos ligados à diversos movimentos sociais acerca das greves que atingiram o Brasil nas décadas de 1960 e 70 e que marcaram a ascensão das manifestações populares que questionavam as condições sociais, políticas e culturais que ficaram restritas desde golpe militar em abril de 1964.
O campo político ficou caracterizado no pós 64 pela reestruturação do sistema político brasileiro. Evento refletido nas ofensivas do governo militar no sentido de implantar no país uma política de desenvolvimento econômico, a qual, estabelecida nos moldes do capitalismo internacional e da abertura do mercado para a crescente “indústria cultural”, envolveu profundas mudanças em relação à forma como o setor cultural brasileiro passou a ser entendido naquele instante.
Além da forma repressiva com que “dialogaram” com as diversas produções artísticas surgidas desde o pré 64, as políticas culturais – entendidas dentro do processo de modernização conservadora da sociedade, caracterizado pela política desenvolvimentista do Estado – implantadas pelo regime militar também se caracterizaram pela forma mercantil com que o setor passou a guiar os rumos de suas atividades visando a “democratização” da cultura no país. Entretanto, uma democratização que deveria ser concretizada a partir do avanço da “indústria cultural”, papel atribuído, principalmente, ao crescimento dos mecanismos de comunicação em massa, representado pelo fortalecimento dos grandes conglomerados televisivos no Brasil.
As mudanças ocorridas nesse processo podem ser facilmente identificadas no atual cenário do setor cultural nacional, principalmente com relação às dificuldades encontradas pelo trabalho artístico, que precisam adequar suas pretensões ao mercado consumidor para, assim pleitear subsídios para sua realização, seja ele público ou privado, caso contrário deve limitar-se à buscar formas alternativas de financiamento, o que geralmente acontece com recursos próprios.
Uma maneira já histórica, e muito debatida, de identificarmos esse problema no setor cultural é através da análise dos mecanismos de financiamento de projetos culturais, estabelecidos pelas políticas públicas e privadas para o setor cultural no Brasil. Indiretamente, mecanismos como a Lei Rouanet ou a Lei do Audiovisual estão mais ligados a esse novo e precário produto artístico, voltado para o consumo, do que propriamente interessado em novas experiências culturais. Nesse processo, o empresário ou a empresa, se inserindo nas chamadas “leis de fomento e incentivo à cultura”, estabelece critérios, visando a imagem que esse produto estabelecerá para a empresa, para poder qualificar os projetos que receberão investimentos para sua realização. Esses mecanismos abrem espaços para que tais investimentos acabem por assumir uma posição na qual o produto cultural fortalece a imagem e o valor da empresa responsável pelo fomento. Esse fator – fortalecimento da marca através do consumismo cultural – é extremante importante a ser analisado, principalmente ao observamos o continuo crescimento do capital investido no setor.
Com isso, podemos identificar a questão central da problemática, ou seja, o novo quadro cultural globalizado se configura por uma nítida posição de mercado de bens de consumo, no qual a cultura já não é nacional, mas particular, de diferentes grupos locais, diferentes etnias, de mulheres, afro brasileiros, luso brasileiros, ítalo brasileiros, Greco brasileiros e por aí vai. Essa nova configuração é identificada pela cultura do consumo num estágio em que as identidades, ou melhor dizendo, as expressões culturais nacionais” – se é que também podemos chamar assim – perdem espaço frente às constantes criações de signos de identificação global.
Determinar as necessidades, os desejos e os interesses do mercado cultural para o fortalecimento e a construção de uma identidade ou expressão globalizada, essa é a característica do “novo intelectual” que vemos atuando no setor cultural nacional, no qual o marketing cultural não é necessariamente sinônimo de responsabilidade social ou de comprometimento com o desenvolvimento cultural nos países.
Com o entendimento de que uma política cultural deve constituir-se como “meio pedagógico”, além de se comprometer com o exame crítico da realidade sociopolítica, Carlos Nelson Coutinho afirma ser difícil encontrar ao longo da década de 1990 algum grande artista ou movimento artístico brasileiro que se colocou a discutir ou pensar caminhos para os problemas culturais, políticos e sociais brasileiros, o que acaba por abrir espaços para o surgimento do “intelectual orgânico” da mídia, ou seja, com menos autonomia crítica e menos criatividade, que visa uma ampliação, quase sempre desordenada, da produção cultural.
Diferentemente dos trabalhos artísticos formados no contexto da efervescência cultural das décadas de 1960 e 1970, em que eram debatidos diversos projetos culturais “preocupados” com o fortalecimento de uma “identidade nacional” para a sociedade brasileira, os “novos intelectuais orgânicos” da mídia surgem inseridos num contexto em que o avanço do capital se dá de maneira totalizadora nos setores da sociedade. Esse processo, quase sempre mercantil, adotado por agentes e produtores culturais caracteriza-se como um avanço das políticas pretendidas para o setor cultural durante o regime militar no Brasil, o que pode ser identificado a partir da priorização do consumo em larga escala das produções artísticas, também integrante dessa nova lógica cultural.
Se inserindo nesse contexto de identidades cada vez mais globalizadas e ao mesmo tempo constituintes de diferentes grupos, o mercado cultural acaba criando necessidades de produções de signos que visam suprir essas demandas massivas do capital financeiro. Os efeitos dessa nova configuração podem ser observados no setor cultural através do caráter mercadológico que a cultura enfrenta nessa nova lógica, na qual a banalização dos produtos culturais e artísticos, tornados tão evidente pelas indústrias culturais de massa, tem atuado de maneira cada vez mais voltada para atender às demandas culturais específicas, o que faz o trabalho artístico ser avaliado pelo seu valor de inserção nesse mercado fragmentado de bens culturais simbólicos.
Nesse momento, quando vivemos uma “fragmentação cultural” e um constante avanço da “indústria cultural” em todas as esferas da sociedade, mesmo diante do efeito globalização tanto discutido, Coutinho insiste na constituição de uma cultura nacional, a qual “nada tem a ver com nacionalismos, muito menos com populismos, pois o intelectual que se coloca a discutir os problemas do seu cotidiano e de sua sociedade é capaz de oferecer uma representação mais ampla e concreta do real.” Segundo o autor faz parte da ideologia imposta pela globalização do capital financeiro a idéia de que o estado nacional terminou, de que a nação deixou de ser um espaço de tomada de decisão. Nesse sentido, os representantes do setor cultural nacional devem se posicionar de forma crítica, ou seja, para Carlos Nelson Coutinho, “o escritor nacional popular não é um populista, [ele] se coloca do ângulo dos interesses populares para responder às grandes questões nacionais, que estão cada vez mais articuladas com o plano internacional”. Para termos uma dimensão desse problema, basta observarmos as dimensões que o setor cultural está alcançando através das propostas estabelecidas pela Convenção da Unesco ou mesmo em discussões sobre a presença da cultura em acordos firmados em órgãos como a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Dialogando com essas características, podemos observar hoje certo aumento dos “incentivos” destinados ao setor cultural, principalmente de iniciativas oriundas de grupos privados, pois a cultura se caracteriza como recurso lucrativo no atual mercado nacional. Para exemplificar melhor esse quadro, basta observar que os maiores investidores em cultura no ano de 2005 no Brasil foram os Bancos, totalizando 50% dos investimentos na área.
Durante o Fórum de Investidores Privados em Cultura, realizado em São Paulo no dia 24 de abril de 2007, organizado pelo Grupo de Institutos, Fundações e Empresas – o Gife, grupo que integra 101 instituições em todo o Brasil. Dentre os investidores privados em cultura no país, sete pertencem ao Gife: Bradesco, Banestado, Itaú, Gerdau, Unibanco, Banco do Brasil e Vale do Rio Doce – reuniram-se fundações, institutos culturais, indústria, empresas e governo, oportunidade em que foram divulgados dados sobre a avaliação da economia da cultura no país, mostrando estatisticamente o quadro cultural brasileiro e quais são os maiores investidores privados em cultura no Brasil.
Segundo o Ministério, a Cultura no Brasil envolve cerca de 290 mil empresas e movimenta em torno de R$17, 8 bilhões por ano, entretanto, segundo o ministro Gilberto Gil, é necessário um maior investimento da iniciativa privada na área cultural. Entretanto, através de dados apresentados pelo Sesi (Serviço Social da Indústria) ao jornal O Estado de São Paulo, em 25 de abril de 2007, observamos que somente cinco Estados brasileiros não possuíam, até aquele instante, legislação própria de incentivo à cultura: Alagoas, Maranhão, Amazonas, Roraima e Rondônia, o que acaba por prejudicar ainda mais a produção e o acesso à cultura pela população, pois, esse fato se agrava também quando pensamos que com as atuais leis federais essas regiões são as que mais sofrem a falta de investimentos, pelo fato de não se constituírem como grandes mercados consumidores para o Marketing Cultural.
Dados como esses demonstram como o “mercado cultural” se tornou um ótimo aparelho para investimentos, devido às lacunas abertas durante um longo processo da política nacional de desenvolvimento e pelos mecanismos de incentivo à cultura, criados durante esse processo no Brasil, os quais privilegiam investimentos em projetos que, muitas vezes, visam somente a manipulação e o controle social do que deve ser entendido e consumido como cultura, pois, uma das principais características da indústria cultural é o papel de “controlador social” do consumo cultural, pois as escolhas são condicionadas pela lógica do mercado, mantendo na sociedade a idéia do consumo através do entretenimento cultural. Aspectos como esses, segundo o autor Frederic Jameson (1995), nos revelam que a ideologia dessa nova cultura se torna praticamente indistinguível da identificação da cultura de massa com a cultura propriamente dita.
Dada essa lógica mercantil do setor cultural e, conseqüentemente, a fragmentação das chamadas “identidades culturais”, podemos observar que apesar das leis de incentivo à cultura serem, quase que em sua totalidade, o único meio e o maior instrumento de subsídio para maioria dos trabalhos realizados pelo setor cultural no país, esses mecanismos vêm se configurando, cada vez mais, como leis de incentivo ao mercado cultural, principalmente quando observamos que entre 1996 e 2001, a região Sudeste recebeu 85,7% do total de investimentos no setor, sendo que desse total São Paulo recebeu cerca de 42,7% e o Rio de Janeiro, 36,7%.
Dados como esses revelam como os mecanismos de incentivo à cultura no Brasil facilitam o caráter mercantil pretendido pelas empresas que financiam projetos culturais através dos instrumentos oferecidos pelas leis municipais, estaduais e federais. Apesar de observarmos um crescimento no setor no estado do Paraná, o investimento em cultura é fortemente concentrado na região Sudeste do Brasil, totalizando cerca de 1,4 bilhão de 1996 até 2002. Logo, podemos afirmar que parte considerável desses investimentos é feita de maneira a objetivar um efetivo retorno comercial, ou seja, pouco ou nada tem haver com a tão pretendida “democratização cultural” prevista pelo fomento. É nesse sentido, também, que os mecanismos de fomento acabam por se tornarem limitados aos grandes centros, pois, da maneira como são apresentadas, não viabilizam o acesso à cultura de forma igualitária em todos os estados brasileiros, mas sim, somente aqueles que apresentam um potencial financeiro e comercial para o retorno desses investimentos.
Ao pensarmos sobre uma política cultural que atue de maneira realmente democrática, em qualquer âmbito, seja ele municipal, estadual ou nacional, é necessário também o entendimento de que essa política deve ser feita de maneira a viabilizar o acesso e a produção dos bens culturais como um todo e não somente em regiões que acabam por se configurar como um mercado lucrativo no setor. A valoração e o fortalecimento do setor cultural, até mesmo para as empresas que investem em cultura, estão diretamente ligados ao aumento e ao incentivo da criação e da produção de bens culturais em qualquer espaço. Essa tal “fragmentação cultural”, juntamente com o atual formato mercantil do setor cultural nos mostra como os grandes grupos empresariais acabam por “criar” especialistas no processo de produção e gestão de recursos financeiros dirigidos à suprir a demanda dessa nova “diversidade cultural”, criando seus próprios “intelectuais orgânicos” para fortalecer o mercado da “democratização cultural”. Nesse processo político, no qual os investimentos privados são de grande, ou melhor, de fundamental importância para o fortalecimento do setor de produção e reprodução da cultura seja ela qual for, temos que pensar que esse trabalho deve ser feito, sem que haja uma total dominação desses instrumentos por grupos monopolistas interessados apenas no retorno que o produto cultural possa oferecer, o que deve ser feito a partir da criação de mecanismos que visem uma distribuição igualitária das formas de produção e reprodução culturais em todos os seus aspectos, sejam eles econômicos, sociais ou políticos.
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