“A interferência no mérito da atividade cultural, sem que sejam estabelecidos critérios objetivos por lei, é típica de um regime ditatorial” avalia a procuradora Ana Cristina Bandeira Lins. Na avaliação do Ministério Público Federal (MPF), o projeto que altera a lei Rouanet apresenta pontos ilegais e inconstitucionais.
A procuradora lista também como inconstitucional a pena de um ano prevista para fraudes e a obscuridade do projeto. “Muitas normas, algumas delas importantíssimas, serão criados por meio de decretos ou portarias do próprio Ministério, ou seja, dependem de uma regulamentação posterior”, explica Ana Cristina, completando que há desproporcionalidade na penalidade prevista para fraudes: “crimes semelhantes, como peculato (pena de 12 anos) e estelionado contra o patrimônio público (5 anos mais 1/3) têm penas muito mais duras que as previstas no projeto do MinC, de apenas um ano”.
O grande mérito do MinC, segundo o MPF, é suscitar o debate público sobre a lei Rouanet. “De fato, a lei Rouanet precisa sofrer alguns ajustes. No entanto, ao nos depararmos com o projeto que está sendo proposto pelo MinC, nós tivemos a convição de que ele não consegue suprir as deficiências da lei vigente”, afirma a procuradora Lívia Tinoco.
As falhas na lei vigente observadas com exatidão pelo próprio MinC não são sanadas no novo projeto, avalia o Ministério Público Federal. “É importante que se incentive toda a produção artística. A cultura não sobrevive única e exclusivamente dela própria, ela precisa de incentivos, sejam públicos ou privados. Mas o que vemos como falha não está sendo alterado neste projeto, apesar do próprio MinC considerar os mesmos pontos importantes. Vê-se falta de critério na aprovação de projetos que não atendem a toda sociedade e uma demora pela administração pública em analisar a contabilidade apresentada, o que permite que recursos sejam desviados ou aplicados de forma irregular”, afirma Ana Cristina.
“A lei Rouanet precisa sofrer alguns ajustes. No entanto, o projeto proposto pelo MinC não consegue suprir as deficiências da lei vigente”, diz o relatório.
O ministério chega a levar cinco anos para fiscalizar a prestação de contas dos beneficiários da lei Rouanet. “Quando a notícia de fraude chega ao Ministério Público, o crime muitas vezes já prescreveu”, diz.
‘Projetos incentivados devem atender a toda sociedade’
Para a promotora, a nova lei deve deixar claro que os projetos incentivados sejam importantes para a sociedade como um todo, que se invista em atividades culturais que tenham temporadas populares ou gratuitas para garantir que a população tenha acesso a esses projetos culturais. “O que vemos é que há artistas consgrados que não precisam de apoio, mas que também estão recebendo. Um exemplo hipotético: para se fazer um show gratuito do Caetano Veloso em uma praça pública, teria sentido o incentivo público, pois se trata de um evento ao qual toda a população pode ter acesso. Agora não tem o menor sentido ter incentivo público para um show do Caetano Veloso no Baretto (bar do hotel Fasano em São Paulo, cujo ingresso custou R$ 500)”.
Fundo Nacional de Cultura pode resolver a centralização de recursos no sudeste e sul
Para o MinC, uma das falhas lei atual e principal motivação para a criação de uma nova legislação é a centralização de recursos destinados em sua maioria a projetos das regiões sudeste e sul do Brasil. Para o MPF, o novo projeto não cria nenhum mecanismo para corrigir esta distorção.
A lei vigente prevê que os recursos do Fundo Nacional de Cultura sejam usados para corrigir esta distorção. Enquanto em 2008 foi arrecadado R$ 1,2 bilhão pelo mecenato (incentivo fiscal), o Fundo Nacional de Cultura, que é composto exclusivamente por recursos públicos, arrecadou R$ 300 milhões, o que corresponde a 1/4 do valor vindo da renúncia fiscal. “O ministério não aplica os recursos do Fundo Nacional de Cultura nas regiões em que não há verba para produção cultural. Ao analisar a destinação deste fundo no ano passado, observa-se que o próprio MinC, com recursos exclusivamente públicos, concentrou a maior parte das alocações no sul e no sudeste. Era só obedecer a lei vigente para corrigir este tipo de distorção”, lembra a promotora.
Inúmeros dispositivos precisarão ser esclarecidos por meio de decreto regulamentador ou por decisões da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), o que fere o princípio da legalidade. “Atualmente a composição da CNIC está prevista na lei. Não há motivo para que ela seja estabelecida por decreto, como prevê a nova lei. Por que vamos depender da cabeça do ministro de plantão para definir como vai ser formada esta comissão que terá todos os poderes para decidir o que fazer com estes recursos?”, questiona Ana Cristina Bandeira Lins.
Vem daí mais uma falha considerada grave pelo MPF, que é a falta de uma regra de transição que sirva para incentivar a cultura no período em que a nova lei entre em vigor, mas ainda esteja sendo regulamentada. O documento do MPF apontando as falhas no projeto já foi enviado ao MinC.
Em nota oficial, o ministério informou que “assim como as outras cerca de duas mil propostas, o documento será analisado (…). Algumas mudanças, sugeridas no documento, serão incorporadas – como já anunciado pelo Ministério da Cultura. É o caso dos critérios de análise dos projetos e o processo de escolha dos integrantes da Comissão Nacional de Incentivo Cultural (CNIC). No entanto, o Grupo de Trabalho do MPF considera que as penas previstas para fraudes no uso da Lei Rouanet – artigo 42 – são inconstitucionais, por serem mais brandas que o previsto para estelionato. O Ministério da Cultura lembra que as penas são mais duras que as previstas na atual Rouanet. De qualquer forma, a avaliação do Ministério Público Federal será analisada.”
O MinC não comentou a acusação de utilizar critérios típicos de regimes ditatoriais.
* com informações do jornal O Globo.
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