Gilson Schwartz é um dos pesquisadores mais articulados e instigantes da economia da cultura, pois consegue transformar o ambiente acadêmico em lugar de aplicação de conhecimento e não apenas de produção. Entre suas inúmeras iniciativas está a Cidade do Conhecimento, que promove este mês o evento “Mesh com Moedas Criativas”. Gilson fala sobre o tema e as atuais discussões sobre propriedade intelectual que sacodem a política cultural no país.
Leonardo Brant – O que são moedas criativas e qual sua relação com o mercado cultural?
Gilson Schwartz – Em 2003, comecei um projeto de pesquisa com foco em inovações nos modelos de inclusão digital. Na época, falava-se muito em “telecentros” e ainda não existiam “pontos de cultura”. O projeto foi realizado pelo grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento em convênio com o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, eram os primórdios do programa “Casa Brasil” e o Sérgio Amadeu comandava o ITI. Do projeto, destaco duas inovações cujo pioneirismo rendeu vários prêmios ao nosso grupo de pesquisa. A primeira foi olhar menos para telecentros e formas convencionais de inclsuão digital para investir na inclusão social pela produção cultural para telefones celulares. Fizemos o piloto em comunidades no Centro-Oeste, Norte e Nordeste, em parceria com índios xavante, com o Jorge Bodanzky no Pará e com a comunidade local na Praia da Pipa, no Rio Grande do Norte. A segunda inovação foi a criação de uma moeda local emitida pelo telecentro. Instalamos uma antena GESAC e criamos junto com artistas, empresários, professores, estudantes e turistas o “garatuí”. Transformamos o telecentro num banco central local e imprimimos as cédulas, que passaram a circular no setor de turismo e entre estudantes da rede pública municipal. Nessa mesma época, o Banco Palmas dava seus primeiros passos em Fortaleza. Em 2009, no I Forum de Inclusão Financeira, o Banco Central finalmente reconheceu essas iniciativas e hoje falar em moedas sociais, ou seja, meios de pagamento criados de baixo para cima, cujo lastro é o capital social local, deixou de ser tabu. Moedas criativas são moedas cujo capital ou “lastro” é cultural. São as moedas da economia criativa. Podem ser vistas ainda como uma forma tecnologicamente avançada de “vale-cultura”.
LB – Como você avalia a criação da nova secretaria de economia criativa no âmbito do Ministério da Cultura?
GS – Para minha surpresa, a nova gestão do Ministério da Cultura criou uma Secretaria da Economia Criativa. Já confirmamos a presença da Secretária Cláudia Leitão no evento “Moedas Criativas” (final de março na USP) e vejo essa frente de pensamento e prática com otimismo, como um caminho de retomada de projetos inovadores no próprio MinC.
O projeto “Moedas Criativas” recebeu dois prêmios do MinC: o “Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura” em 2009 e o “Cultura e Pensamento”, em 2010. Nos projetos, como fazia de modo pioneiro em 2003, aponto para as moedas criativas como uma excelente oportunidade para a inovação e o desenvolvimento de formas tecnologicamente avançadas de gestão nos pontos de cultura.
De modo geral, falar em moedas cujas funções estão integradas à criação é pensar e desenvolver novos potenciais de financiamento, geração de renda e ocupação nos mercados culturais, em especial os mercados da cultura digital. Embora o debate público até o momento tenha radicalizado a oposição entre a gestão Gil-Juca e a nova gestão Ana de Hollanda, a criação da Secretaria de Economia Criativa é uma oportunidade para levar adiante o protagonismo do Ministério da Cultura na formulação de políticas públicas inovadoras sem que haja ruptura radical com as muitas ideias renovadoras da gestão anterior. No Fla-Flu do “creative commons”, a economia criativa desponta como um time que pode levar o campeonato mesmo sem ter as maiores e mais galvanizadas torcidas.
LB – Qual a relação entre economia criativa e propriedade intelectual?
GS – No final de março, organizo na USP o evento “Mesh com Moedas Criativas”. Esse novo passo no projeto de pesquisa-ação em torno de novas formas do valor e práticas de mercado na economia da cultura, do audiovisual e do conhecimento digital coloca em primeiro plano a emergênca da “mesh” (em inglês, significa malha, rede, trama).
Um novo capitalismo surge no século 21 animado por uma redução radical nos custos de coordenação numa variedade impressionante de atividades humanas. A colaboração no mercado chegará a níveis inéditos, privilegiando o acesso compartilhado em detrimento da propriedade pura e simples. O capitalismo se reinventa valorizando uma nova forma de coletivismo.
No entanto, em opoisição ao coletivismo totalitário que predominou até a queda do Muro de Berlim, trata-se a partir de agora de um novo modelo de relacionamento humano que busca inspiração na cooperação livre e na criatividade responsável.
No centro dessa nova formação social e econômica está a “mesh”, ou seja, um tipo de colaboração que se torna viável e ganha potência por meio da rede digital, das tecnologias de informação e comunicação (a “network assisted sharing”). A coordenação, privada ou pública, substituirá a propiedade privada de um número enorme de ativos por parte dos individuos, das familias e das empresas.
A “mesh” revoluciona profundamente a atividade humana gerando disrupção na maior parte das industrias e instituições, não apenas na chamada indústria cultural ou economia criativa. Para os emprendedores criativos será uma oportunidade histórica sem precedentes para gerar valor reinventando setores e abrindo novas fronteiras de mercado. Do jovem que ainda está nos bancos da faculdade aos dirigentes das grandes empresas globalizadas, quem ficar fora da “mesh” será incapaz de competir, por não saber compartilhar.
LB – Quais os objetivos do evento Moedas Criativas e os destaques da programação?
GS – O objetivo mais imediato é concluir o ciclo de pesquisa, debate e experimentação que se iniciou naquele projeto-piloto com o ITI em 2003 e culminou com os dois prêmios recebidos em editais do MinC em 2009 e 2010. São praticamente sete anos de aprendizado, ou seja, muitos erros e alguns acertos. Levei a proposta de realizar esse ciclo ao BNDES, que patrocina uma semana com oficinas, debates, conferências e um concurso de projetos inovadores na economia do audiovsual, o iPEA 2011, que a Cidade do Conhecimento organiza com a GVcepe (área de pesquisa em mercado de capitais da FGV-SP) e a empresa Aceleradora (uma incubadora de projetos inovadores também com foco no investimento privado em empresas nascentes).
Além do BNDES, a Mozilla (Firefox) e a União Européia participam como patrocinadores, colocando o projeto numa escala de visibilidade e articulação global. Ou seja, trata-se de concluir um ciclo e ao mesmo tempo iniciar uma nova etapa em que as parcerias estratégicas incluem o setor privado e ultrapassam as fronteiras nacionais.
Assim, acontece uma ponte entre a pesquisa acadêmica e o diálogo tanto com as autoridades públicas quanto com empreendedores e investidores privados. A própria Cidade do Conhecimento consolida-se portanto como uma “mesh”, uma rede público-privada com foco no compartilhamento de conhecimento, tecnologia e potência de captação de recursos financeiros para a cultura audiovisual digital. É importante lembrar que a base do projeto, que teve início em 1999 no Instituto de Estudos Avançados da USP, tornou-se a partir de 2005 o Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola de Comunicações e Artes da USP.
O objetivo menos imediato é colocar em circulação moedas da cultura e do conhecimento, emitidas por pontos de cultura, ONGs, escolas e universidades com o apoio da Cidade do Conhecimento da USP. No evento, lançamos de cara três moedas. Para quem se envolver nas atividades do Pensar, vamos remunerar com Saberes. Iniciativas práticas no campo do Fazer, ou seja. da produção, da realização, do ativismo e da mudança social e política serão remuneradas coma moeda Talento. No evento, serão 21 oficinas em produção audiovisual, invenção de moedas, inovação empresarial e criação de vários tipos de empreendimentos “meshy”. Finalmente, teremos oficinas de capoeira e visitas orientadas ao Paço das Artes. São atividades no campo do Brincar (esporte, entretenimento) e serão remuneradas com Alegrias. A circulação das novas moedas é um objetivo menos imediato, pois quem aceitar esse tipo de remuneração estará compartilhando com a Cidade do Conhecimento os benefícios e os riscos de investir em atividades ligadas a educação, cultura, ciência e tecnologia para o desenvolvimento local. Esse é um processo que sabemos lento, nunca linear, surpreendente, ou seja, ele próprio criativo.
LB – O que o Brasil precisa fazer para avançar nessa área?
GS – Acredto que estamos já na era da iconomia, ou seja, a economia dos ícones. Criei essa disciplina de graduação na USP que é oferecida para alunos de engenharia, estatística, computação, economia, administração, contabilidade, comunicações e artes, direito. Ou seja, para que possamos avançar, busco uma nova perspectiva teórica, novos conceitos de educação profissionalizante, uma nova prática nas áreas de cultura e extensão na universidade, uma aproximação não apenas entre áreas do conhecimento mas também entre práticas sociais no setor privado, no setor público, na academia e no chamado terceiro setor. Mas criar uma disciplina nova na USP, ainda que difícil, é bem mais fácil do que ver essas convergências conceituais e práticas avançarem na prática. Ainda estamos presos no Fla-Flu em torno da propriedade privada, de um lado, e do aparelhamento ideológico do Estado, de outro. A mudança cultural e prática ocorre aos poucos e, sempre é bom lembrar, com recuos, fracassos e desv ios. O anjo da História avança olhando para trás, o progresso se faz a contrapelo.
Além da questão teórica e política, o Brasil está muito atrasado no investimento em infra-estrutura tecnológica e formação profissionalizante voltadas para a emancipação digital (ou seja, a inclusão digital que gera riqueza, identidade e conhecimento, não apenas oportunidade de consumo de máquinas ou serviços de massa). Os episódios se sucedem numa longuíssima novela em que ora se fala do FUST, ora da banda larga, outrora foi o GESAC – para tudo se acabar na quarta-feira. Temos que superar a carnavalização da inclusão digital e crescer com políticas públicas e empreendedorismo digital.
Finalmente, do ponto de vista estritamente financeiro, estamos ainda engatinhando no mundo da inclusão. Foi somente em 2009 que o Banco Central organizou o I Forum de Inclusão Financeira. No ano passado ocorreu o segundo. A chave da expansão econômica contemporânea está na chamada “base da pirâmide”, os dois mandatos do governo Lula colocaram esse modelo em evidência e a percepção de que a lógica do desenvolvimento de baixo para cima exige novos modelos ganha espaço em todo mundo. Passamos da globalização financeira para uma nova era de financiamento à sustentabilidade da inclusão social que nem economistas, nem engenheiros e menos ainda cientistas sociais se prepararam para estudar e influir. No ciclo “Moedas Criativas” queremos discutir esse conjunto de temas, não apenas a moeda em si, mas o sistema tecnológico, político e ético necessário para integrar o Brasil na sociedade do conhecimento e na economia dos ícones digitais. Convido todos os leitores a visitar o nosso blog e participar, inclusive pela internet, do ciclo que acontece entre 22 e 26 de março (www.cidade.usp.br).