Acabo de falar com Ronaldo Bianchi, secretário-adjunto de cultura do Estado de São Paulo, que esteve presente na reunião de secretários semana passada em Belém do Pará. Ele traz de lá duas notícias importantes. A primeira é a declaração do secretário de fomento do MinC, Roberto Nascimento, que garantiu o fim dos atrasos na análise dos projetos da Lei Rouanet até agosto, com a contratação, pelo MinC, de 40 novos pareceristas. E a melhor notícia veio diretamente de Juca Ferreira, ainda hoje, por telefone: “nada muda no mecenato”, diz o secretário-executivo.

“O telefonema de Juca foi tranqulilizador”, respira Bianchi, após um longo período de tensão no mercado por conta das especulações sobre o fim do mecenato. “Nós sempre confiamos na palavra do Juca. Ficamos muito contentes com sua declaração”, comemora o secretário-adjunto.

Acredito que o novo posicionamento de Juca se sobreponha às recentes declarações registradas em ata de reunião com o setor teatral, dia 19 de maio no Rio de Janeiro, em que afirma preparar alterações no julgamento dos projetos. Juca aponta três encaminhamentos necessários à moralização da Lei: o julgamento de mérito; o alinhamento com a política de Estado e; a coerência entre o projeto e seu orçamento. Segundo o secretário, o percentual de renúncia sofreria variação conforme a pontuação do projetos nos critérios acima.

A discussão de mérito já foi alvo de muita discórdia no setor cultural, por ocasião da promulgação da Lei Rouanet, no início da década de 90 e é considerado o maior sustentáculo democrático do mecanismo, já que não cabe ao Estado julgar qual a cultura interessa e qual será descartada.

Para o dramaturgo e produtor teatral Paulo Pélico “a decisão pelo mérito artístico em mãos erradas poderá se constituir também em instrumento de alinhamento político, ideológico e até partidário em casos mais extremos”. “Mérito é algo essencialmente subjetivo. Mesmo que se constitua um conselho ou uma comissão o grau de subjetividade e o resultado deste julgamento poderão se tornar bem mais nocivo para o fazer cultural do que o seu contrário. Tomemos como exemplo o Nelson Rodrigues. Há 50 anos era tido e havido como um autor pornográfico, superficial que se ocupava dos baixos instintos humanos em suas peças. Hoje ocupa o honroso lugar de maior dramaturgo brasileiro contemporâneo”, lembra.

A declaração de Juca a Ronaldo Bianchi, porém, promete botar panos quentes na maior crise já vivida pelo setor em relação à Lei Rouanet, que se consolida a cada dia como o maior instrumento de financiamento à cultura do país.

O mecanismo merece um olhar mais cuidadoso do Ministério, que deve procurar compreender melhor os impactos econômicos e sociais da Lei sobre a atividade cultural, para não correr o risco de desqualificá-lo com frases de efeito, que apenas expõem o desconhecimento que o próprio MinC e toda a sociedade têm da efetiva importância do mecenato para o país.

E precisa ter maturidade e consenso para promover mudanças desse tipo, sob o risco de sofrer desgaste político e desviar a atenção de pautas mais relevantes, como a do Plano Nacional de Cultura, que avança a passos largos.

Quem não quer um fundo de R$ 1 bi para investimento direto na cultura? E se a moeda de troca for o problemático mecenato, que financia campanhas publicitárias com dinheiro público? Melhor ainda. Mas quem já ouviu inúmeras promessas não cumpridas de fundos, em vários estados e capitais brasileiras, não aceita essa ladainha, esse discurso populista e ilusório. Já vimos outras tantas leis de incentivo definharem por conta dessas promessas. Ou seja, tira-se o dinheiro certo do mercado para um dinheiro mais que duvidoso, utópico.

O fato concreto é que a cultura, como atividade organizada, não atingiu a maturidade necessária para a conquista desse fundo. Pelo contrário, com o episódio da discussão da Lei Rouanet, enfraqueceu ainda mais, pois o povo da cultura, que já não era unido, engalfinhou-se publicamente, como ainda o faz aqui mesmo em Cultura e Mercado.

Leio textos de hoje e os comparo com os que li e escrevi há uma década e não vejo qualquer avanço. Pelo contrário, há um enorme retrocesso em relação a discussões já superadas, como a questão do mérito, que me soa anti-democrática, anacrônica e despropositada.

Mas também vejo um desvio de atenção, que pode ser proposital, para as questões que realmente importam. E embora reconheçamos que este ministério foi reinventado e tenha qualidades indiscutíveis, o fato é que falhou e falha gravemente na questão do mecenato. E como não quer admitir que errou, põe a culpa nos ombros do mercado, o que é covarde e não condiz com todo o grande serviço público prestado até aqui pela equipe liderada por Gilberto Gil e Juca Ferreira.

Fez-se pública uma discussão interna e mesquinha, que diz respeito apenas a quem vive do fazer cultural. Uma inabilidade política a mais para um setor desorganizado e sem agenda setorial definida e deflagrada. Quanto mais uma agenda pública mais ampla. Nesse sentido, prefiro voltar as atenções para o PNC, que está recheado de questões importantes e partiu de um processo coletivo, com o envolvimento de todas as instâncias representativas e diretas da sociedade. E tem o que há de melhor deste ministério: a coragem de propor pautas polêmicas, a visão ampla e estratégica de cultura, o espírito republicano (que lhe falta na discussão do mecenato).

O bom exemplo disso que tento expor é o cinema, que se organizou e estabeleceu uma pauta ampla, para toda a sociedade, de maneira inconteste. O restultado é que a Lei do Audiovisual (mais absurda que a Rouanet do ponto de vista moral) funciona e foi prorrogada sem qualquer contestação pública. Todos estão convencidos que ela é essencial para este momento de aquisição de musculatura do cinema. Até mesmo o artigo terceiro, que beneficia as majors norte-americanas, tem seu lugar nesse composto.

A Ancine vai bem, obrigado. A opinião pública gosta cada vez mais e comemora os avanços do cinema nacional. E isso se deve a um movimento social. Pouco tem a ver com o Ministério da Cultura. Pelo contrário, as pessoas que ocupam cargos importantes no ministério e na Ancine, vem desse movimento. É claro que existem críticas a esse processo, pois o poder público acabou por desarticular o próprio movimento que o alçou ao poder. Mas a eficiência do sistema sobrepõe essa questão.

Por isso, mais do que nunca, faz-se necessária uma ampla pesquisa com a cadeia econômica influenciada pela Lei Rouanet. As soluções para os desvios de finalidade, que gritam e regurgitam no próprio mercado e na política de financiamento à cultura como um todo, com certeza saltarão aos olhos. Do conhecimento técnico, pragmático, de um sistema minado por uma esquizofrenia crônica, provocada sobretudo por uma esquizofrenia maior, que é do Estado brasileiro, que não define entre sua orientação ideológica, tampouco sobre o seu papel diante da cultura (muito embora o MinC se posicione a respeito, o governo como um todo insiste em jogar a cultura para escanteio). A recente demissão da ministra Marina da Silva é o melhor exemplo disso. 

Outro dado nesse sentido é o desnecessário embate entre o MinC e o setor produtivo. Na mesma reunião com a classe teatral, Juca declarou ter inveja do Ministro da Agricultura, que tem os produtores do seu lado. Ouvi do lado do mercado a mesma reclamação: “em vez de acusar o mercado de ganhar dinheiro, o Juca devia comemorar a pujança econômica da cultura e não jogar a opinião pública contra os produtores que trabalham em condições adversas e com mínimos recursos”, afirma um grande produtor de espetáculos. “E olha que os incentivos para a indústria cultural são ínfimos em comparação com o que se gasta com o agrobusiness”, arremata.

De fato, falta diálogo, sobretudo entre a indústria cultural e o MinC, que elegeu a cultura popular como sua aliada, abrindo mão do apoio dos setores estabelecidos. Cada um precisa reconher os avanços, a importância e a interdependência do outro.

E vamos discutir o Plano Nacional de Cultura, ou então vamos passar os próximos 10 anos discutindo esquizofrenicamente a Lei Rouanet.


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

4Comentários

  • Carlos Henrique Machado, 5 de junho de 2008 @ 1:05 Reply

    Leonardo, permita-me só uma observação: concordo que o espaço hoje, com o apoio quase irrestrito do MinC, com uma série de programas de fomento para o audiovisual, tem sim, um trabalho dentro e fora, de pessoas ligadas diretamente a este segmento para se construir uma nova política que lhes dê mais dinamismo. No entanto, existe uma absurda urgência do Ministério da Cultura em muitas outras áreas, pois ele assumiu o audiovisual como um estandarte em suas ações e, com certeza, tem as suas razões para isso. Mas a minha insistente crítica, é que ele deixou anêmica uma série de outras questões também urgentes. A música brasileira, por exemplo, ficou ao relento sem o mínimo de política para ela, o que transforma o dia-a-dia do músico brasileiro, em quase uma guerrilha urbana. Ações corajosas que tentam buscar bravamente alternativas que construam um mercado, um espaço nos meios de comunicação, são ignoradas pelo Minc. É aí que vai a minha crítica ao Ministro Gil, crítica que já expus inúmeras vezes. O fato é que, mesmo sendo o ministro um representante direto da própria música brasileira, não tivemos uma única política voltada para musica em nenhum dos seus inúmeros segmentos. A luta é muito desigual contra o mercado do jabá,com as gravadoras independentes ou mesmo dos trabalhos de musicos independentes e o ministro Gil sabe disso. O MinC simplesmente se ausentou dessa necessária discussão, pois, para a música brasileira fez uma pequena e mal feita maquiagem com o projeto Pixinguinha e mais nada. Não abriu um fórum de discussão sobre avanços para a música que, como todos sabemos, é a expressão cultural mais presente na vida do brasileiro. As últimas pesquisas feitas pelo IBGE mostram que o povo brasileiro é mais apaixonado pela sua música do que pelo futebol, o que foi ignorado pelo MinC. No entanto, a música brasileira ainda é, com expressiva vantagem, a grande representante do Brasil no exterior e, ao contrário do massacre que ela sofre dentro do país, ela amplia o espaço lá fora de forma excepcional.

    Segue abaixo mais uma das bravas tentativas de amigos guerreiros em prol da dignidade da música e do músico brasileiros, e o MinC sequer é citado. Isso é um sinal claro da descrença que os músicos têm em relação ao MinC.

    ENCONTRO DE CURITIBA

    Em Curitiba, com o apoio do Governo do
    Estado, através da Secretaria de Cultura e da Rádio e Televisão
    Educativas do Paraná, realizou-se o 1º Encontro Nacional de Música
    Independente, convocado pela ABMI (Associação Brasileira de Música
    Independente), AMAR (Associação dos Músicos, Arranjadores e
    Regentes) e UBC (União Brasileira de Compositores).

    Além dos dirigentes de cada uma destas entidades, estiveram no
    Encontro representantes de rádios públicas de Aracajú, Belo Horizonte, Brasília e Salvador, advogados especialistas em Direito Autoral, os jornalistas Mauro Dias e esta que ora escreve, a cantora Ana de Hollanda e os músicos e compositores Edmundo Souto, Ednardo, Léa Freire, Luciana Rabello, Nei Lopes e Ruy Quaresma, entre outros.

    Durante o Encontro foram discutidas as questões que envolvem a
    produção de música independente no Brasil, principalmente no que diz respeito às dificuldades de distribuição e difusão enfrentadas por esta que tem sido o principal suporte da qualidade daquilo que se cria musicalmente no País.

    Para que se tenha uma idéia do massacre a que a produção
    independente tem sido constantemente submetida, peço ao leitor a
    atenção ao que se segue.

    Em 2007, as quatro gravadoras multinacionais que atuam no Brasil
    lançaram, no total, 130 novos discos, dos quais, 75 são licenciamentos de música estrangeira. A EMI lançou 9 novos títulos nacionais e 11 licenciamentos; a Sony-BMG, 17 nacionais e 25 licenciamentos; a Universal, 24 nacionais e 25 licenciamentos; e a Warner, 5 nacionais e 14 licenciamentos.

    Enquanto isso, 63 gravadoras independentes lançaram 784 novos
    discos. Estão excluídos deste número aquelas que trabalham
    principalmente com licenciamentos internacionais e os músicos que se auto produzem, estes últimos pela impossibilidade de ser contabilizados.

    No entanto, a grande indústria do disco ocupou 87,37% do espaço das rádios comerciais brasileiras, contra apenas 9,82% do espaço dado à música produzida pelas independentes. O cálculo final não fecha em 100% porque os dados referentes à gravadora Som Livre não estão contabilizados. Mas, os números disponíveis são eloqüentes e falam por si.
    A relação inversamente proporcional entre produção e veiculação é, no mínimo, perversa e revela os mecanismos nada honestos utilizados, de um lado, pela grande indústria e, de outro, pelas emissoras comerciais que vendem seu espaço, forjam o “sucesso” e, como se isso não bastasse, não pagam os direitos autorais. Mais da metade das emissoras comerciais brasileiras não está cumprindo seus deveres em relação ao ECAD. Ou seja, estão fora da lei, motivo mais do que suficiente para que suas concessões sejam cassadas.

    Temos, assim, um modelo em que impera a ditadura do mercado em
    detrimento da cultura e da identidade nacionais e no qual,
    normalmente, o mau gosto impera.

    Diante deste triste cenário e depois de dois dias de discussões, ora acaloradas, ora de total consenso, tal como devem ser esses encontros, foi redigido um documento final que convido todos a ler. Ao tratar da música – nosso mais valioso bem cultural, reconhecido em todo mundo – o documento trata, também, de ética, educação, cultura,honestidade e transparência.

    CARTA DO PARANÁ
    TOQUE O BRASIL

  • Adil da Silva Penalva, 5 de junho de 2008 @ 9:35 Reply

    gostei dos comentários do produtor Paulo Pelico, o mesmo demonstrou bastante conhecimento de causa e muita lucidez crítica.

  • Janine Fraga, 5 de junho de 2008 @ 14:48 Reply

    Concordo plenamente quando dizes que temos que resolver, pois fazem 24 anos que atua na área da cultura, pelo menos 20 como produtora independente, pessoa física.E, exceto, com a recente criação da lLei Sarney.Não houve mais nenhum momento em que nós produtores nos sentíssemos seguros em relaçaão aos reais benefícios ou na real possibilidade de alcançá-los. Uma vez que toda vez que muda o governo as diretrizes de avaliação mudam, muda o foco da cultura do Ministério e atrás disso muda tudo.
    Precisamos de mecanismos que nos assegurem fazer cultura independente da ideologia reinante.
    Deixemos a ideologia para o plano cultural do governo, para investir em suas políticas públicas de cultura. Não concorda?

  • Annelise Godoy, 16 de junho de 2008 @ 11:36 Reply

    Esta discussão que remonta anos deixa passar uma questão de extrema importância: quando o MINC irá avaliar o pós-evento? quando estaremos efetivamente verificando se aquele produtor ou projeto já se tornou de fato um projeto autônomo e auto-suficiente, sem necessidade de novos incentivos renováveis a cada ano? O resultado financeiro do projeto (bilheteria, relacionamento, investidores diretos e indiretos) não deveria ser contabilizado para empreendimentos que anualmente se repetem e já contam com o governo como seu fiel sócio?
    Estamos sempre discutindo como criar procedimentos que dificultem a solicitação e aplicação dos recursos, mas não há no MINC qualquer operação de avaliação de resultados, análise de aplicação efetiva dos recursos, acompanhamento dos contratos firmados entre produtores e investidores, etc.
    Ou seja, depois que passa pelo processo truncado de aprovação, o projeto fica liberado, apenas contando com um sistema de prestação de contas bastante efeciente quanto a números e NFs, mas não a contextos mais amplos, atendimento das necessidades e de públicos, eficiência na difusão pública, execução dentro dos critérios propostos, etc.
    Será que empreendedores que captam acima de R$ 2/3milhões não deveriam ter uma atenção direta do MINC ou de algum outro organismo fiscalizador? Podemos de fato permitir que os recursos públicos fiquem tão a revelia de nosso controle? Homens públicos se utilizam de recursos públicos, muitos com grandes desmandos, mas um dia eles serão ou não re-eleitos pela sociedade…e os projetos que há mais de 13 anos atuam de maneira inadequada quando se repetem, não deveriam também ser eleitos por um pleito do meio cultural? Isto não é imprimir uma censura ou uma aplicação de valor cultural, mas de eficiência de resultado e bom uso do recurso público.
    O que é público deveria ter em toda a sua extensão um tratamento responsável e público. Talvez se assim fosse, o cenário já pudesse ser outro agora, com muitos projetos (e produtores) ruins já desaparecidos(e não enriquecidos) e outros ótimos empreendimentos surgindo com força total. Esta ação também geraria muitos investidores melhor equipados para companhar e se dedicar aos projetos incentivados, sem meramente liberarem os recursos sem a cobrança devida de ações e valores neles contidos.
    Um novo sistema surgiria, naturalmente, com a real perspectiva de profissionalismo que é pressuposto de um “incentivo”.

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