Debaixo de uma chuva de balas. Foi assim que o filme Dona Flor e Seus Dois Maridos (Bruno Barreto) foi desalojado da sua posição de recordista de público do cinema brasileiro por Tropa de Elite 2 (José Padilha). A ação foi rápida. O violento comandante do BOPE despejou chumbo grosso já na estreia e em oito semanas destroçou a supremacia da rival, no topo havia 34 anos. Flor tombou em 7 de dezembro de 2010, logo, o atual líder está celebrando o segundo aniversário.
Ao se enfrentarem nas bilheterias os oponentes ligaram dois momentos recentes da sociedade brasileira e deixaram um rastro de significados dentro e fora das salas escuras.
A Retomada. Não faltam estudos tratando a chamada Retomada do Cinema Brasileiro como movimento estético. Porém, o mais provável é que o período passe à história pela nova modalidade de financiamento ao cinema que inaugurou no país e também aqui as duas obras voltam a se posicionar em terrenos opostos. Ambas foram financiadas com dinheiro público, contudo, se diferenciam no tipo de subvenção recebida. O filme de Barreto foi favorecido por um modelo centralizado de distribuição de recursos (Embrafilme) enquanto o filme de Padilha se valeu de uma distribuição descentralizada (renuncia fiscal). Embora haja virtudes e defeitos nas duas opções, esta última trouxe uma novidade ainda pouco discutida: a ascensão dos “aspiras”. De Carla Camurati a José Padilha, passando por três dúzias de bons diretores, todos estrearam na referida fase o que contrasta com a era Embrafilme quando a renovação era penosa.
O descompasso. Temos de lidar com o incômodo fato de recorde de Dona Flor ter durado inacreditáveis 34 anos, a despeito de a população do país ter dobrado nesse intervalo, ocorrência improvável em outros setores da economia. As últimas quatro décadas foram boas para o Hardware Brasil e de nítida deterioração do Software Brasil não sendo de se espantar que a nação tenha visto a sua economia chegar a 6ª posição no mundo enquanto o seu IDH -Índice de Desenvolvimento Humano- permanece na 83º posição. Mesmo com gargalos na infraestrutura a atividade econômica do país dinamizou-se, mas a educação, a cultura e a pesquisa científica estagnaram ou pioraram, fruto de erros culposos e abandonos dolosos cometidos por sucessivos governos. O resultado é um hardware de alta performance tentando rodar programas com pontos de semipane, alguns deles terminando por dar uma trabalheira danada ao Capitão Nascimento e seu saco plástico.
O confronto. O cenário de Flor é a Bahia dos anos 1940 de um Brasil agrário, oligarca e, claro, sensualíssimo. De sua parte Nascimento encontra-se mergulhado nas favelas do Rio de Janeiro dos nossos dias num país industrial, brutalizado por uma urbanização acelerada que atraiu brasileiros de todas as regiões sem políticas públicas correspondentes. Assim, não é trivial que em Tropa 1 o derradeiro “presunto” produzido pelo BOPE seja justamente um conterrâneo de Flor, o traficante Baiano, que desafiou a autoridade do batalhão. Ferido e dominado antes de morrer o dono do morro faz um único pedido aos seus executores: “na cara, não”. Não é atendido. A última coisa que vê são as bordas de um cano calibre 12. Termina sem rosto e longe de casa.
Difícil prever por quanto tempo Tropa 2 se manterá na dianteira, mas não será bom para o país se ele repetir o feito de Dona Flor e permanecer no topo até 2044. É urgente, portanto, que desobedeçamos às ordens do abusado Capitão Nascimento: “não vai subir ninguém, vai ficar todo mundo quietinho [aí em baixo]”.