“No confronto entre ideologias de classes, se dá o aparecimento de novas possibilidades para que haja concorrência de uma ideologia, que almeja a ser dominante”Situações: passos tranqüilos; lei que obriga os profissionais à filiação; trabalhar em conjunto é mais forte; Dança é patrimônio universal da humanidade e tem formação própria/ institucionalização.
A Dança caminhava a passos tranqüilos até o ano de 1998: os profissionais de Dança ensinavam, formavam, dançavam sossegadamente, defendidos pela Lei 6.533/78, que regulamenta a atividade de bailarino, coreógrafo, mâitre e ensaiador. O sindicato que respondia pela classe é o Sindicato de Técnicos e Artistas ? SATED, e a associação que respondia pela classe é a Associação Gaúcha de Dança ? ASGADAN. Em setembro de 1998, a Lei 9696/98, que regulamentava a profissão de Educação Física, foi implantada. Esta lei contém um parágrafo que subjuga a todos os profissionais que trabalham com atividades físicas (e aí está incluída também a palavra Dança) a filiarem-se ao Conselho Regional de Educação Física ? CREF.
Iniciou-se então, o movimento de autuação às Academias e Escolas de Dança no Estado e no País, dos CREFs/CONFEF, fazendo com que os profissionais de Dança, Yoga e Artes Marciais unissem seus esforços para discutir o que e como fazer para não serem arrebanhados por tal lei.
A partir do ano de 2001, as discussões se avolumam durante o I Congresso Nacional de Dança ? CONDANÇA, de um lado o professor Jorge Steinhilber e de outro as classes artística e das artes marciais, rebatiam a lei e sem entender porque o termo atividades físicas era assim tão abrangente a ponto de garantir a seguridade de qualquer atividade que se utilize o corpo, seja fiscalizada pelo Conselho de Educação Física.
Começaram a aparecer os Fóruns de Dança: o Regional e o Nacional. No Rio Grande do Sul, a Comissão Permanente de Dança foi se tornando cada vez mais presente, com suas reuniões quinzenais, discutindo políticas para a dança, contatando advogados e deputados no intuito de revogar tal lei. A Comissão foi legitimada e reconhecida pelo Secretário da Cultura Luiz Marques.
Aparentemente a Dança se encontrou numa situação desprotegida. Essa situação não corresponde a todo trabalhador da Dança que paga seus impostos e sobrevive dessa arte, podendo contar com o seu direito adquirido.Aqui se abre uma fissura: nesse mesmo instante, no confronto entre ideologias de classes, se dá o aparecimento de novas possibilidades para que haja concorrência de uma ideologia, que almeja a ser dominante. Dalal Aschcar faz uma proposta de um Conselho Federal de Dança em nome do Conselho Brasileiro de Dança ? CBDD, com sede no Rio de Janeiro e surge também o Movimento Nacional Contra a Regulamentação ? MNCR, oriunda dos profissionais de Educação Física que discordam da disposição da lei.
O Fórum Nacional de Dança toma a dianteira e cria Fóruns de discussão e uma página na internet e, com uma reunião na Bahia em março de 2003, lança os estatutos da Associação Nacional de Dança e propõe que no dia internacional da Dança, 29 de abril de 2003, inicia-se um movimento de abaixo assinado, buscando a aprovação do Projeto de Lei 7370/2002, do Deputado Luis Antônio Fleury, que visa ao impedimento da fiscalização da Dança pelo CREF. O Fórum Nacional de Dança busca um fortalecimento maior, nomeando alguns representantes e constituindo um estatuto, tornando-se, agora, uma associação sem fins lucrativos, com sede e foro na cidade de Brasília-DF. Os objetivos da Associação são amparar os legítimos interesses na área da dança e representá-los.
O Rio Grande do Sul sempre foi conhecido como ?celeiro? de bailarinos, o qual tem exportado para outros estados brasileiros e outros países, o que tem de melhor em termos técnicos. Isso já não acontece quando se fala em politização da classe. A maioria dos bailarinos vive com a seguinte ideologia: condições ideais de trabalho, sinônimo de ter sala e professores; teatros disponíveis para dançar durante o ano e a existência de cachê. Existe ainda a máxima que rege a dança aqui no Estado: ?bailarino não assiste dança?. Bom: se a própria classe não se ?assiste? (no sentido de comparecer e também de ajudar) e se os critérios de condições ideais de trabalho são tão simplórios, deixando a desejar, posso afirmar que a maioria partilha de uma despolitização total.
Os bailarinos não encontram condições dignas de desenvolver a arte da Dança. Esses profissionais ao saírem, ganham dignidade de trabalho e acabam percebendo o potencial latente que possuímos aqui no sul, assim como os olhos fascinados de todo país fixam-se nos bailarinos gaúchos, e inexplicavelmente, afirmam que o público daqui é muito crítico, acabando por escolher o Rio Grande do Sul para a estréia de seus espetáculos, mas não para criar ou fundar nada. Para que serve então?
No ano de 2002, a Universidade de Cruz Alta ? UNICRUZ consegue formar sua primeira turma de graduados em Dança; a Universidade do Estado do Rio Grande do Sul ? UERGS inicia sua primeira turma do curso de Pedagogia da Arte, sendo um dos aprofundamentos a Dança; e a Pontifícia Universidade Católica ? PUCRS inicia a formação de especialistas em Dança, estando em 2003, na sua segunda turma. Isso revela que há um forte movimento rumando à Institucionalização do patrimônio universal, que é a Dança, no Estado do Rio Grande do Sul.
A classe, que viveu um período de ?tranqüilidade? até determinado momento, logo após se vê obrigada a se reunir para não perder as poucas coisas que obteve. Muitos desconheciam o que era preciso para se profissionalizar. A organização forçada da classe da Dança deu-se como um processo natural de resistência perante o perigo de morte de sua ideologia. As normas, regras até então existentes, tiveram de ser repensadas e reorganizadas. Trabalhar em grupo tornou-se uma alternativa importante. Para isso, montaram-se novas estratégias de funcionamento da classe a fim de discutir, com maior freqüência, políticas para a Dança.
As novas idéias contaminam, viajam pelos Fóruns Regionais e, mais marcadamente, pelo Nacional, cuja diretriz corre o risco de ser a dominante ? até porque reside no famoso pólo cultural-monopolista de São Paulo e Bahia, (esta última tem um foco importante, porque abrigou a primeira graduação em Dança do Brasil na década de 50).
Suposição: a gorda saúde dominante, da qual fala Peter Pal Palbert, citando Deleuze, talvez resida nesse eixo que tem produzido profissionais capacitados em nível de graduação e pós-graduação em Dança, pioneiramente, e a resistência exista por parte da Comissão Permanente de Dança, que tem demarcado território tanto no sul, quanto nas reuniões do Fórum Nacional. Talvez aqui se confirme o que diz Althusser, citado por Helena Brandão (2002): ?a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos?, que, nesse corre-corre, foram obrigados a sair de seu ostracismo e tomar pé da situação, para fazer algo em grupo, para mudá-la.
A presença do slogan ?Dança é arte!?, no movimento de Dança, mostra o esquema que Ricoeur aponta, e, além disso, que ?a função geral de toda ideologia é ser mediadora na integração social e coesão do grupo?. Nesse sentido, a avaliação desses dois anos de Fóruns é de que a classe, por um lado, se sente representada pela existência e resistência da Comissão Permanente, e, por outro, busca através das fissuras, constituir outras associações da mesma classe, especializando o foco de discussão (como é o exemplo dos Contemporâneos em Dança e dos profissionais de Dança do Ventre).
O fato de buscar que as discussões ganhem registro através de fóruns pela internet, encontro dos fóruns e elaboração de estatuto da Associação Nacional, tem ajudado a compreender melhor a produção de sentidos e a relação com a gorda ideologia dominante, a resistência e as fissuras no corpo que dança.
O assujeitamento aos fatores históricos, à discursividade e à experimentação, faz com que o sujeito seja afetado e, assim, tente mudar a situação na qual vive, mas não garante mudanças constitucionais, pois pode estar trabalhando, simplesmente, em sua superfície, hibridizando ou polinizando, como fazem os pássaros quando tocam com seus bicos as flores cheirosas e coloridas.
Pode, também, estar trocando alhos por bugalhos de uma ideologia coercitiva, com outra forma de dominação. Identificados estão os dois processos: o de comodidade, por parte de alguns (aceitando, sem ler as letrinhas miúdas do estatuto, seja ele do CREF, MNCR ou do Fórum Nacional) e o de resistência (que faz o profissional de Dança ocupar um lugar difícil, porém digno, onde é senhor de seus atos e assume o compromisso com a sua própria realidade).
Uma coisa é certa: se existe a gorda ideologia que insiste em dominar, significa que existe também um movimento de grupo, uma resistência, e, mesmo que haja permanências, existe um movimento mas também fissuras, e ambos existe a possibilidade de mudança.
Fontes:
Brandão, Helena Negamine. Introdução à Análise do Discurso. 8ª edição. Campinas: Unicamp 2002.
Orlandi, Eni. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 3ª edição. Campinas: Pontes 2001.
Peter Pal Palbert. A vertigem por um fio.
Site: www.forumdedanca.yahoo.com
Ana Luiza Gonçalves Freire é pesquisadora em dança e terapeuta corporal.
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Ana Luiza Gonçalves Freire